segunda-feira, 31 de maio de 2021

No 31, a Arte de Maria Teresa Horta. As Luzes de Leonor. «Escutam-me estas penhas animadas, que as expressões do brando sentimento, como sonhos de enferma reputadas, insultam, por dobrar o meu tormento»

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1754-1758

«(…) Peço-te calma, meu amor! Peço-te calma!, ouvi-o gritar, afastado de mim à força. E dobrada sobre o corrimão fiquei a vê-lo descer a escada até sair a porta lá em baixo, voltando-se antes a despedir-se, com um demorado olhar triste mas infinitamente frio, onde se recolhia o brilho acerado do gume de uma ardente faca. Enquanto isto, escondida atrás de mim, Leonor observava o Pai a ser levado aos empurrões cobardes; foi ela que me impediu de cair, arrastando-me primeiro para a casa de fora e em seguida amparando-me até ao quarto onde me deitou na cama gelada. Só bastante mais tarde me dei conta de ela ter agido não como uma menina de oito anos, mas como uma mulher. Lembro-me do seu semblante extremamente pálido e de como tremia ao afastar-me os cabelos da testa encharcada pelo suor frio, ao secar-me na face as lágrimas constantes, ao compor-me no peito o decote esgarçado da camisa rasgada.

Na verdade, pouco guardo dos dias e dos meses que se seguiram, estendida na minha cama gelada de mulher solitária a quem abruptamente lhe fora arrancado sem qualquer motivo o homem amado. De seguida, como se não chegasse, num rasto de negrume vieram todas as outras terríveis desgraças a que julguei esquivar-me pelo lado do meu nada, embora continuando viva. E ao despertar das minhas perdições e torpores, estava a cumprir num convento não sei que pena, dentro de uma clausura que não era minha; num tempo do qual pretendi a todo o custo anular os sinais, os anseios, as pegadas, as vertigens.

Escutam-me estas penhas (de Epístola a Tirce)

Escutam-me estas penhas animadas,

Que as expressões do brando sentimento,

Como sonhos de enferma reputadas,

Insultam, por dobrar o meu tormento.


Aqui a seva mão do Fanatismo

Serve as leis execrandas do meu fado;

Aqui geme o legítimo heroísmo,

De uma falsa razão atormentado.

Raízes

Desembarcados que são da armada da Índia no porto de Lisboa, beijada a família, afagados os netos que ainda não conheciam e cumprimentados os fidalgos que os esperam, distrai-se Leonor Távora, demorando o passo, a olhar o céu de Portugal, azul-cobalto naquela manhã de estio, antes de aceitar a mão desenluvada de Francisco Assis para subir os dois degraus da carruagem enviada pela Coroa a fim de os levar ao Paço. Haviam partido a caminho da Índia com as despedidas solenes e a confiança de el-rei dom João V, entretanto morto, e no regresso deparam-se com a ausência da Corte, sinal da hostilidade gélida de dom José I entretanto coroado Rei de Portugal, que encontram na companhia do seu secretário de Estado Sebastião José Carvalho Melo. Homem baixo, ainda novo, lábios de lâmina afiada, olhos pequenos, argutos e escuros que neles se fixam, como se pretendessem ler-lhes a alma; particularmente atento à marquesa de Távora, que estremece ao sentir a sua atenção fascinada, arrepio a subir-lhe no corpo delgado vestido de seda natural cor de amora selvagem, plumas tom da aura dos anjos a temperarem-lhe o toucado com langores imprudentes». In Maria Teresa Horta, As Luzes de Leonor, Publicações dom Quixote, 2011, Prémio D. Dinis I, ISBN 978-972-204-733-3.

Cortesia de PdQuixote/JDACT

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