sábado, 8 de maio de 2021

Ian McEwan. Serena. «Os dois homens riram e eu fiquei pensando se a minha piada tinha insinuado mais do que eu tinha entendido»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Canning tinha modos grandiosos algo contidos, talvez para combinar com os seus modestos papéis públicos. Eu percebi o cabelo ondulado, delicadamente repartido, e lábios carnudos húmidos e uma fendinha no meio do queixo, que eu achei bonitinha porque dava para ver, até com aquela luz ruim, que ele tinha dificuldade para fazer a barba direito. Uns pelos escuros ingovernáveis se projectavam do sulco vertical na pele. Era um homem bonito. Quando as apresentações acabaram, Canning me fez algumas perguntas, sobre mim. Eram coisas educadas e bem inocentes, sobre o meu curso, Newnham, o diretor, que era grande amigo dele, a minha cidade, a catedral. Jeremy entrou na conversa com umas amenidades e aí Canning também o interrompeu para agradecer por ele ter mostrado os meus últimos três artigos na ?Quis? Ele se voltou novamente para mim. Uns textinhos excelentes. Você tem talento, querida. Você quer entrar para a imprensa?

A ?Quis? era um pasquim de estudantes, que não pretendia ser lido por gente séria. Fiquei agradecida pelas palavras generosas, mas era novinha demais para saber aceitar um elogio. Resmunguei alguma coisa modesta, mas pareceu que eu não estava levando aquilo a sério, e aí eu tentei me corrigir de um jeito meio atabalhoado e fiquei toda afobada. O professor ficou com pena de mim e nos convidou para um chá e nós aceitamos, ou Jeremy aceitou. E assim nós fomos atrás de Canning, voltando pelo mercado, na direcção da faculdade em que ele trabalhava.

Os aposentos dele eram menores, mais encardidos e mais caóticos do que eu esperava, e fiquei surpresa ao ver ele fazer tudo errado com o chá, mal enxaguando as canecas lascadas e manchadas de marrom e derramando a água quente de uma chaleira eléctrica imunda em cima dos livros e dos papéis. Ele sentou-se atrás da escrivaninha, nós sentamos em poltronas e ele continuou a fazer perguntas. Parecia um encontro de orientação académica. Agora que eu estava roendo os seus biscoitinhos de chocolate Fortnum & Mason, me sentia obrigada a responder em mais detalhes. O Jeremy estava-me encorajando, balançando a cabeça que nem um bobo com tudo que eu dizia. O professor perguntou dos meus pais, e de como tinha sido crescer à sombra de uma catedral, eu disse, espirituosamente, eu achei, que não havia sombra porque a catedral ficava ao norte da nossa casa. Os dois homens riram e eu fiquei pensando se a minha piada tinha insinuado mais do que eu tinha entendido. Nós passámos às armas nucleares e às propostas do Partido Trabalhista, de um desarmamento unilateral. Fiquei repetindo uma frase que eu li em algum lugar, depois percebi que era um clichê. Depois de solto é impossível botar o génio de volta na garrafa. As armas nucleares teriam de ser gerenciadas, e não proibidas. Fim do idealismo da juventude. A bem da verdade, eu não tinha grandes opiniões a respeito. Noutro contexto, teria falado a favor do desarmamento nuclear. Teria negado, mas estava tentando agradar, dar as respostas certas, ser interessante. Gostava do jeito de Tony Canning se inclinar para a frente quando eu falava, o seu sorrisinho de aprovação me encorajava, esticando mas sem chegar a separar direito aqueles lábios carnudos, e aquele jeito de dizer Sei ou É isso mesmo... toda a vez que eu fazia uma pausa». In Ian McEwan, Serena, Companhia das Letras, 2012, ISBN 978-853-592-121-2.

Cortesia da CdasLetras/JDACT

JDACT, Ian McEwan, Literatura, Narrativa,