segunda-feira, 24 de maio de 2021

Por Amor a uma Mulher. Domingos Amaral. «Virou as costas ao filho e, com um gesto pomposo, ofereceu o braço direito à rapariga, ordenando-lhe: acompanhai-me, bela Chamoa»

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1126

Viseu, Sexta-Feira Santa, Abril de 1126

«(…) Uniam-se assim as duas regiões que o rio Minho separava e dona Teresa e o seu Trava tornavam-se ainda mais poderosos, e candidatos a preencherem o vazio criado pelo recente falecimento da rainha Urraca de Castela, Leão e Galiza, que entregara a alma ao criador no mês anterior. A infame rainha, meia-irmã de dona Teresa, deixara feridas espalhadas pelos reinos da Hispânia, daquelas difíceis de sarar. Embora o seu óbvio sucessor fosse o filho, Afonso Raimundes (que em breve seria coroado como Afonso VII), havia dúvidas quanto ao destino final da Galiza e do Condado Portucalense. Seria possível unirem-se, num novo reino, como os irmãos Moniz de Ribadouro juravam ser o sonho do falecido conde Henrique? Ou submeter-se-iam em separado ao novo rei? Fosse qual fosse o futuro, os casamentos arranjados por dona Teresa fariam parte dele. E, no meu caso, não me posso queixar disso, embora haja quem possa.

O pobre Ramiro estava paralisado de deslumbramento em frente à bela moça. Sem qualquer embaraço, Chamoa deu-lhe um meigo beijo na cara e exclamou: não nos víamos há meses, desde Ponte de Lima! A vila organizava a maior feira de Entre Douro e Minho, onde as gentes iam trocar tecidos e alimentos. Alguma permuta devia também ter acontecido por lá entre aqueles dois, pois mal ouviu o nome da povoação, Ramiro corou fortemente. Estais mais magro, meu amigo, apreciou Chamoa, observando-o, preocupada. Estais doente? Paio Soares mantinha-se silencioso e intrigado, olhando à vez para o seu bastardo e para a rapariga. Já Mem Rodrigues Tougues fingia sorrir, evitando revelar o seu óbvio incómodo. De súbito, Paio Soares perguntou ao filho: não me apresentais esta bela flor?

Chamoa corou, batendo as pestanas. Uma coisa eram elogios de primos ou de rapazolas bastardos, outra, uma lisonja daquelas, disparada por um dos nobres mais poderosos do Condado! A filha de Gomes Nunes Pombeiro e de Elvira Peres Trava fez o que mandavam as regras: dobrou o joelhinho e executou uma pequena vénia, agarrando a sua dalmática azul-clara com ambas as mãos. Paio Soares sorriu e apontou para as nuvens cinzentas que carregavam o horizonte. Não há sol no alto do céu, mas há aqui na terra! Vós sois deslumbrante, Chamoa Gomes, deixai-me contemplar-vos! Deu a sua mão direita à esquerda dela e obrigou-a a dar uma volta completa à sua frente, enquanto nos seus olhos se via agrado, ao examinar os peitos da moça e o seu colar. A visada corou de novo e Ramiro, agastado com o piropo paternal, falou finalmente. Conhecemo-nos em Ponte de Lima. O pai, desagradado, olhou-o como se mira um tonto. Julgais que sou surdo? A Chamoa acabou de o dizer!

Virou as costas ao filho e, com um gesto pomposo, ofereceu o braço direito à rapariga, ordenando-lhe: acompanhai-me, bela Chamoa. Ela pousou o seu braço no do nobre e, quatro passos adiante, olhou para trás rapidamente, rindo-se, divertida, para o seu primo, Mem Tougues, que ficara junto a Ramiro. Depois, voltou-se de novo para o distinto rico-homem e avisou-o: fiquei de esperar por meus pais à porta da igreja! Paio Soares acenou a cabeça e os dois pararam no sopé da escadaria do templo, a conversar, até aparecerem os familiares de Chamoa, que cumprimentaram o senhor da Maia, enquanto Mem Rodrigues Tougues se acercava deles». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras, LeYa, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.

Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT

JDACT, Domingos Amaral, A Arte, Literatura,