quinta-feira, 27 de maio de 2021

As Luzes de Leonor. Maria Teresa Horta. «Travo que guardo na boca desde o terramoto, numa premonição de desgraça vil que de mim não se afasta em momento algum, a tornar pesados e sem remédio os lentos dias arrastados das matinas às completas…»

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1754-1758

«(…) Quando se aproxima devagar do fim do álbum, dá-se conta de que a madrugada fizera esmorecer a luz cada vez mais fraca da vela, não sabendo há quanto tempo a distracção a impede de ouvir os ruídos da casa que desperta: os sons abafados vindos do sótão onde fica a ala dos criados, a água que corre do jarro para uma bacia de louça, um objecto caindo no desamparo do chão, o chiar áspero de gonzos a amordaçar o cochicho das vozes à mistura com os frouxos de riso mal contidos pela palma das mãos gretadas, logo seguido de um demorado arrastar de pés descalços, pesados de sono. Escuta depois o estalar dos degraus que levam à cozinha, de onde não tardará a subir o cheiro acre do café amargo, do leite fervido e das natas, das papas de aveia e da aletria, do pão escuro aquecido em cima das brasas tiradas do borralho das cinzas. Apercebendo-se de como começa a ficar tarde, Leonor fecha a contragosto A Revolução Dos Orbes Celestes de Nicolau Copérnico, escorrega da cadeira, agarra o xaile e embrulha-se nele. Apaga em seguida o que resta do coto da vela, agarra no castiçal com a mão miúda e, silenciosa, corre de volta ao quarto onde Maria ainda dorme, enrolada nas mantas, cabeça debaixo da almofada de penas.

Desde sempre as mulheres da família dos Távora foram dadas a pressentimentos, a anjos e a cintilações, a negrumes e visões, a premonições, a adivinhamentos e sonhos; dom maligno que, ao longo dos anos tendo trato com as profecias, vêem sem rebuço entretecer a realidade em que vivem com o lado sombrio do seu mundo interior: o quotidiano que habitam, o futuro que intuem, adivinham, antecipando caladas mais as desgraças e os desgostos do que os aprazimentos e as alegrias. A verdade, aceite por quem as rodeia e de certo modo as teme, é terem conhecimento das raízes de tudo o que nasce e brota das tempestades a montante do nada, daquilo que acontece antes de ter acontecido, evitando todavia passar essa premonição aos outros, neles não desejando acrescentar o receio e a angústia que eternamente cai sobre quem prevê a queda, a morte, a vertigem. Franja de espuma nocturna, obstinada na tentativa de invadir a mente e o coração dos que pressagiam os estigmas da alma, os espinhos do cardo, as silvas da torpeza, o ocaso que a febre levanta nos abismos do peito, as garras do mal gerado por Satanás na sua ronda em torno das mortes e dos partos, no uso de manhas e artes, feitiços e artifícios; insidiosa tentativa de nos convocar, de nos rodear, de nos fascinar, até nos afastar por completo da brancura e da maior pureza, dos caminhos do bem. Eu, Mariana Bernarda Lorena, condessa de Atouguia e filha dos marqueses de Távora, jamais soube separar a visitação dos arcanjos da aparição dos negrumes, nem destrinçar a plenitude onde reside o adormentado gosto do mel, do êxtase onde explode o acre sabor a fel e a salitre, salobre e amaro. Travo que guardo na boca desde o terramoto, numa premonição de desgraça vil que de mim não se afasta em momento algum, a tornar pesados e sem remédio os lentos dias arrastados das matinas às completas, de sol a sol rastejando a demorar-se pelos hortos, pelos vinhedos, pelos cemitérios, de rojo pelas sombrias matas onde vigiam as víboras. Pressentimentos de enredos maléficos que ultimamente não cessam um único segundo, apesar de eu tentar com empenhamento aliviar-me com missas e orações, rezas e terços, leitura de livros místicos, cabeceando de sono madrugada adentro, na vã tentativa de defender os meus e a mim própria naquilo que posso, e nesse sentido usando promessas e velas acesas às santas mais poderosas, exercícios de S. Ignácio, mandrágoras e incenso, água benta e Rosa Divina, esmolas e castigos do corpo, cilícios atados nas carnes macias da cintura. Pobre tentativa de silenciar as vozes que de noite me falam baixo ao ouvido. Mariana Bernarda!, chamam-me. E eu sobressalto-me, enquanto elas continuam: aproximam-se tempos sem misericórdia, desprovidos de compaixão e temperança: patíbulo e morte, grilhões de degredo, ferros de tortura e prisões fétidas, passarão por ti e encontram-se contidos nos destinos dos teus mais chegados! Sem forças vou cosendo o choro escondido de quem me rodeia, e diante da senhora minha mãe não consigo deixar de mil vezes indagar agoniada: encontra-se Vossa Excelência de boa saúde? E ela, desconfiando da mesma interrogação repetida infinito, olha-me no precipício dos olhos e, dando conta da minha aflição, contrapõe a sua igual resposta em forma de pergunta: qual é o desgosto oculto ou o segredo recolhido que a minha filha tanto guarda? E eu tento rir, a contragosto, evitando a resposta sustentada pela mais deslavada mentira, e para não a atormentar, em disfarce de invenção medíocre, digo-lhe, sonsa: ora, Vossa Excelência tem coisas…, apressando-me a discorrer de seguida sobre mesquinharias da Corte ou da justa apreensão dos jesuítas pelo manifesto ódio do ministro de Estado de El-Rei pela Companhia de Jesus, à conta do qual Sebastião José afastou o padre Malagrida, confessor da minha família. Agravando em muito o desassossego da alma, coração apertado pelos malfadados prenúncios que me assediam, ligando a um sonho de há semanas atrás onde vi o trágico fim dos dias de meu marido, pais e irmãos». In Maria Teresa Horta, As Luzes de Leonor, Publicações dom Quixote, 2011, Prémio D. Dinis I, ISBN 978-972-204-733-3.

Cortesia de PdQuixote/JDACT

JDACT, Maria Teresa Horta, Literatura, Saber, Cultura,