sábado, 15 de maio de 2021

Aos Olhos de Deus. José Manuel Saraiva. «Recuperado do susto, tranquilizado posteriormente pelo seu médico particular e bom amigo, o soberano quis dar a todos um sinal de confiança e vigor físico…»

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«(…) Nesse dia não houve jogos de péla, nem lançamento de foguetes, nem cortejo real entre a Sé e o cais, sequer manifestações iguais ou idênticas às que marcaram, dias antes, a chegada a Lisboa das naus da Índia. A festa concentrou-se essencialmente nas margens do rio, numa extensão que uniu a zona dos paços reais à praia de Nossa Senhora de Belém. E foi em Nossa Senhora de Belém, ao ar livre, num espaço lamacento e irregular, quase defronte ao local onde decorriam as obras de construção do mosteiro dos Jerónimos, que o arcebispo de Lisboa presidiu a uma missa em glória a Deus e à Virgem, em honra do papa e do rei, e, por questões de economia, de homenagem aos ilustres enviados do monarca português à cúria romana. A oblação durou duas horas e só não demorou mais tempo porque Sua Alteza teve, a dado momento, um ligeiro achaque, com certeza por causa do frio e de uma noite mal dormida, ou pelo choque da emoção, ou, hipótese também provável, por todas as circunstâncias associadas.

Recuperado do susto, tranquilizado posteriormente pelo seu médico particular e bom amigo, o soberano quis dar a todos um sinal de confiança e vigor físico: desajeitou dos ombros o manto de carmesim rendilhado a peloticas de ouro, ergueu a espada ao céu para disfarçar o sobressalto e bradou com a voz firme, poderosa: Deus está com o rei dos portugueses! Todos responderam em coro: e os portugueses estão com o rei! Amén, agradeceu. Amén, rejubilaram os fiéis. Junto ao altar-mor improvisado, assente em troncos aplainados de madeira coberta por uma espessa camada de gravilha e areia grossa, o arcebispo Martinho Costa assistia comovido àquela súbita manifestação de culto ao rei e de fé em Cristo. De abraços abertos, ligeiramente arqueados, como se quisesse com esse gesto de exagerado amaneiramento envolver os crentes no mesmo espasmo de amor e redenção, o clérigo semicerrou os olhos e, com lágrimas deslizando sobre o rosto, exultou: Deus seja louvado! Louvado seja o Senhor!, responderam outra vez os fiéis, emocionados.

O espaço para a celebração da missa havia sido reservado exclusivamente a Sua Alteza Real, a um restrito grupo de fidalgos da sua imensa corte, talvez os mais próximos, os mais queridos, aos membros do alto clero da simpatia do soberano, aos ilustres representantes do rei na comitiva ao Papa e aos capitães e capitães-mor dos navios com destino a Roma. Os restantes, pilotos e sota-pilotos, mestres e contramestres, pajens e despenseiros, barbeiros e cirurgiões, artífices e carpinteiros, marinheiros e grumetes – foram colocados à parte e mantidos a considerável distância da selecta assistência, pelos guardas do imperante. Acabámos de assistir a um milagre, continuou o prelado do cimo do púlpito, afirmando-se na ideia de que Deus estava ali, observador, vigilante, sempre atento a qualquer investida demoníaca contra o sucesso da empresa do piíssimo Manuel I, se não mesmo contra a saúde e o bem-estar do soberano. Ao ouvirem as palavras do clérigo, carregadas de certeza, emoção e fé, os homens ajoelharam-se de imediato na terra lamacenta para rezar o Pater noster, todos de mãos postas, numa comovente união de afecto e testemunho. E até o monarca, depois de o alferes-mor da corte lhe ter estendido aos pés um manto emprestado na mesma hora por um monge hieronimita que assistia o arcebispo, se prosternou como os outros e, como os outros, orou pela salvação própria e agradecimento ao Altíssimo. Finda a oração, já com os fiéis de novo aprestados, o arcebispo Martinho Costa ainda tentou prosseguir a litania, mas o barulho era tanto e tamanho o desalinho da multidão que apenas se limitou a proferir um simples voto: ide em paz e segurança! Que o Senhor vos acompanhe à Cidade Santa e lá possais encontrar de boa saúde o sapientíssimo e Santíssimo Padre, clementíssimo Leão, magnânimo príncipe da cristandade. Amén, acrescentaram alguns devotos, os que ainda conseguiram ouvir as últimas palavras do arcebispo. Ad perpetuam rei memoriam concluiu o eclesiástico, desenhando no espaço o sinal da cruz com a mão direita. E a missa acabou». In José Manuel Saraiva, Aos Olhos de Deus, Oficina do Livro Editor, 2008, ISBN 978-989-555-364-8.

Cortesia de OdoLivroE/JDACT

JDACT, José Manuel Saraiva, Literatura, Cultura e Conhecimento,