domingo, 2 de maio de 2021

Adoecer. Hélia Correia. «Se subo agora o matagal da encosta não é porque me falte o seu horror. É que, tornando-se isto numa história, precisarei de uma noção de fim. À cripta dos Rossetti não se acede de modo confortável»

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Highgate Cemetery,2005

«Se a pátria assinalar uma pessoa como um cão assinala um candeeiro, a minha condição de portuguesa transporá os portões antes de mim e uma espécie de aviso subirá, fazendo com que as aves estremeçam. A lembrança do outro português que uma noite aqui veio abrir a campa pode ser acordada pelos meus passos? Conhecerá a terra o parentesco que liga a minha carne à carne dele, uma composição de sol e enchidos, de subserviência e fantasia? Esta não é a hora das visitas. Erguendo os olhos para a subida, vejo que a hostilidade do lugar levanta, exactamente como um nevoeiro. Precisa de repouso, a terra, e engana-se, supondo que fechou a sua entrada. No interior do círculo, estou eu. Passo furtivamente, receando que alguma identidade, não a minha, mas a do meu país, informe os mortos. O tempo andou aqui com o seu peso, esmagou, quebrou os selos. As encostas abriram fendas. E os caminhantes que parecem rezar dizem apenas em voz baixa a si próprios que a camada do solo superior ainda os protege, ainda isola os seus pés. Que não há perigo de comunicação.

O que está lá no fundo é transtornado pela luz, pelo ar onde circulam pequenas formações da biologia. Os roedores conhecem com certeza modos de comportar-se quando encontram esse súbito vácuo. Mas nós não. Um piedoso corte quebra a linha que vai dos olhos para o pensamento. E os turistas refugiam-se no grupo, amparam-se no braço do vizinho, antecipando algum desequilíbrio. Há um princípio de obscenidade que logo se recolhe sobre si. Se falam sobre Drácula, já baixam ligeiramente a voz. Mas incomodam. Têm um calor próprio, uma espantosa intensidade metabólica. Interpõem-se. Por isso eu espero que eles se retirem, que tomem o caminho para a vila, levando tudo o que não quero aqui, a carne, os seus recursos de alegria.

Eu venho a um encontro pessoal, desses que não consentem testemunhas. Na verdade, conheço esta mulher. Não a criei. Sei mais a seu respeito do que sei sobre as minhas personagens. Pisei já muito chão que ela pisou, toquei em coisas onde teve as mãos. Dormi junto a lugares onde dormiu. Nada dela me é estranho. De algum modo, as nossas vidas já se confundiram pois o tema do duplo, o doppelganger, estava inscrito em nós como um padrão. Se subo agora o matagal da encosta não é porque me falte o seu horror. É que, tornando-se isto numa história, precisarei de uma noção de fim. À cripta dos Rossetti não se acede de modo confortável. Eu não sei se o teixo que a ensombra é ainda o mesmo que foi plantado para o primeiro enterro. Os teixos são longevos, isso é certo. As inscrições nas lápides mantêm os nomes dos seus mortos bem legíveis. A humidade inglesa não foi tão implacável como é do seu costume. As chuvas deslizaram pelas pedras como se as respeitassem. Com excepção da que assinala Lizzie. O texto que o buril afundou nela ganhou alguma qualidade orgânica. Águas e águas se depositaram, chamando os musgos para a reprodução. Está deitada na terra, a sua laje, muito verde, marcando uma diferença na família que nunca foi a sua. Apesar de italianos, os Rossetti podiam dar lições de frieza aos londrinos, em especial no modo de tratar noras indesejadas. O único Rossetti que a amou, e, ainda assim, de singular maneira, foi sepultado longe, frente ao mar. Não quis que o enterrassem junto dela. Tinha a certeza de que não se morre e não era a certeza dos cristãos». In Hélia Correia, Adoecer, Relógio D’Água Editores, 2010, ISBN 978-989-641-160-2.

Cortesia de RD’Água/JDACT

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