quarta-feira, 5 de maio de 2021

Os Mistérios da Coroa. Nancy Bilyeau. «Eu me recostei numa lateral da carroça. Passámos por um pequeno mercado que parecia não vender outra coisa que não especiarias e ervas. Agora que havia parado de chover, os vendedores retiravam as mantas que mantinham secas as suas bancadas estreitas»

Cortesia de wikipedia e jdact

Londres, 25 de Maio de 1537

«Quando uma execução na fogueira é anunciada, as tabernas de Smith eld encomendam barris extras de cerveja, mas quando a pessoa a ser executada é uma mulher, e ainda por cima pertencente à nobreza, a bebida chega em carroças lotadas. Eu iria andar numa dessas carroças na sexta-feira de Pentecostes, no ano do reinado do rei Henrique VIII, para rezar pela alma de lady Margaret Bulmer, a traidora condenada. Pude ouvir o chamado do carroceiro enquanto seguia para a Cheapside Street, apertando na mão o mapa de Londres que, duas noites antes, eu copiara em segredo de um livro. Agora que eu tinha chegado a uma rua grande e calçada com pedras, conseguia andar mais depressa, mas minhas pernas latejavam. Havia passado a manhã inteira caminhando com dificuldade na lama. Smithfield! Está indo para Smithfield? A voz soava alegre, como se o destino ao qual se referia fosse uma feira do Dia de São Jorge. Logo à frente, diante de um curtume, vi quem tinha gritado: um homem grandalhão que açoitava o lombo de quatro cavalos atrelados a uma grande carroça. Meia dúzia de cabeças espiavam por cima da borda.

Espere!, gritei o mais alto possível. Eu quero ir para Smithfield! O carroceiro se virou e seus olhos vasculharam a multidão. Acenei, e seu rosto se iluminou com um sorriso caloroso. Conforme eu me aproximava, minha barriga se contraía. Eu tinha prometido não falar com ninguém naquele dia, nem pedir ajuda. O risco de ser descoberta era enorme. Mas Smith eld cava a norte e a oeste de Londres, fora dos limites da cidade, e ainda faltava muito para chegar lá. Quando me aproximei, o carroceiro me olhou de cima a baixo e seu sorriso desapareceu. Eu estava usando uma pesada túnica de lã, a única que consegui para a viagem. Era feita para o mais rigoroso dos invernos, não para a primavera, muito menos para um dia em que a névoa mantinha o clima abafado. A bainha amarfanhada da túnica estava encharcada de lama. Mas pelo menos eu me sentia grata por ninguém conseguir ver, através do tecido grosso, minha combinação molhada de suor.

Mas eu sabia que não eram apenas as roupas desarrumadas que estavam fazendo o carroceiro pensar duas vezes. Muitas pessoas achavam minha aparência estranha. Meus cabelos são negros como ônix polido e meus olhos são castanhos, salpicados de verde. Minha pele morena não era vermelha em Julho, nem pálida em Dezembro. Minha pele é como a de minha mãe espanhola, mas não tenho os seus traços delicados. O meu rosto puxou ao do meu pai, que era inglês: testa larga, malares saltados, queixo marcado. É como se a incompatibilidade do casamento dos meus pais travasse uma batalha no meu rosto, bem à vista de todos. Em uma terra de moças rosadas e brancas, eu me destaco feito um corvo. Houve um tempo em que isso me incomodava, mas agora, aos 26 anos, eu já não me preocupava com coisas tão bobas. Um xelim pela viagem, moça, disse o carroceiro. Pague e vamos indo.

Seu pedido me pegou de surpresa, embora eu devesse estar preparada para a cobrança. Estou sem moedas, gaguejei. O carroceiro soltou uma risada que foi como um latido. Acha que eu faço isso por diversão? Escute aqui, moça, me restou pouca cerveja... Ele deu um soco no barril de madeira atrás de si. …e tenho que ganhar o suficiente para pagar pela carroça. Por trás do barril, eu podia ver seus passageiros espichando o pescoço para me olhar. Espere, falei, levando a mão à bolsinha de pano dentro do bolso que eu havia costurado na parte interna da roupa. Agitando os dedos lá dentro, encontrei um anel. Não queria dar a ele nada de mais valioso. Tinha subornos importantes pela frente. Estendi o anel. Isto aqui serve? Num segundo, a cara feia do carroceiro se transformou numa expressão de deleite, e o anel de ouro de minha falecida mãe sumiu na palma suja da sua mão.

Ao subir na traseira da carroça, pude distinguir pena e desprezo no rosto dos outros viajantes. Meu anel devia valer bem mais do que o percurso. Encontrei um monte de palha limpa num canto, sentei-me e baixei os olhos, tentando evitar os olhares curiosos, enquanto a carroça retomava o seu curso. Senti um cotovelo me cutucar nas costelas. Uma mulher corpulenta escorregou para mais perto de mim. Era uma senhora de meia-idade, a única outra pessoa do sexo feminino naquela carroça. Sorrindo, ela me estendeu um pedaço de pão. Eu não comia nada desde a ceia da véspera. Em geral apreciava a sensação de fome, o facto de dominar minha carne mortal e fraca, mas aquela missão exigia certo vigor. Peguei o pão com um meneio agradecido da cabeça. Um bocado de comida e um gole de cerveja aguada do cantil de madeira da mulher fortaleceram meu corpo entorpecido.

Eu me recostei numa lateral da carroça. Passámos por um pequeno mercado que parecia não vender outra coisa que não especiarias e ervas. Agora que havia parado de chover, os vendedores retiravam as mantas que mantinham secas as suas bancadas estreitas. O odor de uma rica mistura de borragem, sálvia, tomilho, alecrim, salsa e cebolinha se espalhou pelo ar e se dissipou depois que passamos. Os cheiros da cidade voltaram a predominar. Avistei umas construções de quatro andares, mais prósperas do que quaisquer outras que eu já vira antes. A placa de um ourives pendia numa esquina». In Nancy Bilyeau, Os Mistérios da Coroa, Editora Arqueiro, 2012, ISBN 978-858-041-082-2.

Cortesia de EArqueiro/JDACT

JDACT, Nancy Bilyeau, Literatura, Londres,