sexta-feira, 31 de maio de 2019

Quando Lisboa Tremeu. No 31. 1755. Domingos Amaral. «O chão tremia, as paredes abanavam e um rouco ruído nascia naquele espaço. Junto à porta, os dois espanhóis desapareceram. O barulho tornou-se ensurdecedor…»

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«(…) O Cão Negro acenou com a cabeça, confirmando a sua autoridade e acrescentou: E tu tiens de limpiar mi mier… Eu bufara e depois respondera: assim será. O Cão Negro ficou a observar-me uns segundos, e depois deu uma gargalhada, agradado com o resultado da conversa. Os correligionários riram-se também. Só Muhammed não se riu, e quando os espanhóis se afastaram avisou-me: Muhammed não ir limpar mer…! Dei-lhe um carolo no alto da cabeçorra e disse: não te preocupes. Vais ver a mer… que vou limpar... Uns dias depois, as celas do Cão Negro e de alguns dos castelhanos apareceram borrifadas de fezes e de urina. Possessos com tal acto de rebeldia e desafio, prometeram vingança. O Cão Negro avisou-me: cabrón, és um homem muerto! Sem mostrar medo, respondi-lhe: tens de comer melhor, a tua mer… cheira mesmo mal. Foi ousadia e inconsciência a mais. Quando, na manhã de sábado, Dia de Todos-os-Santos, levei aquele murro, senti a vida por um fio. Dois espanhóis levantaram-me do chão e arrastaram-me para uma antecâmara onde não podiam ser vistos pelos guardas. Atiraram-me de novo para o chão e pontapearam-me as costelas. Depois, pararam e ficaram em silêncio e o seu líder apareceu, com uma barra de ferro nas mãos. Contra aquele colosso, se ele estivesse desarmado ainda podia ter hipóteses, assim era difícil.
O Cão Negro sorriu, com raiva, mostrando os dentes castanhos. Vou-te enfiar isto in el culo, cabrón! Recordei-me de uma cena, nas masmorras árabes. Tinham-me magoado e humilhado, mas nunca baixara os braços e sobrevivera. Levantei-me e dei dois passos atrás, procurando ganhar tempo. Olhei rapidamente à minha volta. Era uma sala deserta, não via nada que me ajudasse a vencer aquele combate. E Muhammed também não iria aparecer, pois os dois espanhóis bloqueavam a entrada. Vais chiar até morrer, cabrón, rugiu o Cão Negro. O mastodonte avançou, a correr, com a barra levantada, mas esquivei-me com rapidez e dei-lhe um murro no estômago. Grunhiu de dor e investiu de novo. Desta vez não consegui afastar o corpo, e a barra acertou-me na coxa, magoando-me. O Cão Negro sentiu a sua superioridade e voltou a atacar. Consegui bater-lhe na cara, mas perdi o equilíbrio ao desviar-me, escorreguei e caí. O bruto golpeou-me num braço e no ombro, e depois saltou para cima de mim. Rolámos os dois pelo chão, aos murros.
Procurava o ferro com os olhos quando uma violenta pancada no nariz me deixou atordoado. O Cão Negro levantou-se, a barra na mão, e gritou: reza, cabrón. A princípio, não percebi o que se passava. De súbito, havia medo nos olhos do Cão Negro. O chão tremia, as paredes abanavam e um rouco ruído nascia naquele espaço. Junto à porta, os dois espanhóis desapareceram. O barulho tornou-se ensurdecedor, caíram bocados do tecto e o local encheu-se de pó. O chão, onde eu permanecia caído, saltou, e num dos cantos da divisão desabou parte do tecto. Esquecendo a luta, o Cão Negro escapou para o pátio, enquanto mais pedras caíam, e eu me dobrava, protegendo a cabeça com as mãos. Houve um breve interregno de calmaria e tentei levantar-me, afastando as pedras de cima do corpo. A poeira escurecera a sala e não via a saída. No tecto, abrira-se um buraco enorme, e um prisioneiro estava pendurado, de cabeça para baixo, preso pelas pernas nas traves que separavam os dois andares. Ouvi-o gemer: ajuda-me, ajuda-me... Em agonia, não iria durar muito tempo naquela situação. Olhei à minha volta, mas as madeiras no chão, a maior parte delas partidas, eram demasiado curtas para chegarem ao homem, que só poderia ser salvo a partir do andar de cima. Vou procurar ajuda, gritei. Nesse momento, o chão recomeçou a tremer. À minha volta tudo abanou, produzindo o estrondo mais assustador e tenebroso que ouvira em dias da minha vida. Sobre mim, o edifício da prisão caía, como se fosse um baralho de cartas, cuspindo pedras e madeiras e poeiras, e deixando-me encolhido de medo». In Domingos Amaral, Quando Lisboa Tremeu, Lisboa, 1755, O Dia de Todos os Santos vai mudar a vida de 5 pessoas para sempre, Casa das Letras, Oficina do Livro, 2010, ISBN 978-972-461-986-6.

Cortesia de CdasLetras/JDACT

No 31. Quando Lisboa Tremeu. 1755. Domingos Amaral. «Afinal, eu era português. Mesmo que tivesse dificuldade em prová-lo, teria de tentar. Para mais, sabia que Sebastião Carvalho Melo, o Carvalhão, que eu conhecia dos meus tempos de juventude»

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«(…) Nos quarenta anos que levo de vida, estive preso em três ocasiões. A primeira foi quando os piratas árabes atacaram o barco português onde era piloto, e me levaram refém para África, na esperança de conseguirem um bom resgate. Foram dois duros anos de cativeiro. A minha libertação teve um preço amargo e, ressentido como estava com o rei português, iniciei uma vida nova como pirata, em barcos árabes. Mais de uma década passou, entre abordagens, abalroamentos e viagens pelo mundo. Contudo, três meses antes do grande terramoto de Lisboa tive azar. O meu barco, pois ao fim de tanto tempo já era capitão de um barco-pirata, cruzou-se a sul do Algarve com uma esquadra francesa, que nos perseguiu e acabou por apanhar. Muitos dos meus companheiros árabes, como anos antes acontecera aos portugueses, foram chacinados à minha frente pelos franceses. Só eu e o meu ajudante, o meu amigo Muhammed, fomos poupados. Quando chegámos a Lisboa, o capitão francês revelou a sua boa vontade para com os portugueses entregando-nos como prémio. É sabido que as relações dos reinos de França e Portugal não eram, e não são ainda, as melhores. Sendo a França aliada da Espanha, e Portugal aliado da Inglaterra, temia-se uma guerra. A esquadra francesa tinha, pois, de cair nas boas graças lusitanas e diminuir as suspeitas quanto à sua presença. Que melhor forma do que entregar prisioneiros piratas, odiados e temidos por todos os reinos?
Pela segunda vez na vida, fui preso, desta vez no Limoeiro, onde o terramoto me apanhou. Nessa manhã, aliás, o meu dia já se revelava emocionante. Pouco passava das nove quando um violento murro me atingiu, e caí para trás desamparado, estatelando-me no chão do pátio da cadeia. Os espanhóis tinham-me surpreendido. Não estava à espera de que me apanhassem ali, nas latrinas, a céu aberto, à frente dos outros prisioneiros. Nas últimas semanas, a tensão entre mim e o chefe dos castelhanos era crescente. Na cadeia, embora existissem vários bandos, o dos espanhóis, composto por desertores da última guerra, era o maior e mais perigoso. O seu líder chamava-se Cão Negro, e era um homem enorme, de quase dois metros de altura, um colosso de força e maldade. Usava o cabelo negro longo a cair-lhe pelas costas e uma barba igualmente negra e igualmente longa, e impusera com violência a sua tirania sobre o estabelecimento. Ouviam-se relatos de gargantas cortadas, de homens asfixiados só por o terem confrontado, e até os guardas o temiam.
Quando eu e o meu amigo árabe chegámos, o Cão Negro deixou-nos em paz nas primeiras semanas. Muhammed não considerara, isso um bom prenúncio. Ele ir atacar nós, Santamaria ir ver. Muhammed, um pirata berbere, baixo e magro, há mais de uma década que me acompanhava nas aventuras marítimas. Várias vezes me desafiara para passar por Lisboa, mas eu nunca quisera voltar. Guardava um ressentimento congelado ao reino de Portugal por não ter pago o resgate que me salvaria das prisões árabes. Mas, agora que cá estava, nascera em mim um imparável desejo de justiça, uma necessidade urgente de corrigir o destino. Considerava que Portugal tinha uma dívida para comigo e que agora chegara o momento de a pagar, libertando-me do Limoeiro. Afinal, eu era português. Mesmo que tivesse dificuldade em prová-lo, teria de tentar. Para mais, sabia que Sebastião Carvalho Melo, o Carvalhão, que eu conhecia dos meus tempos de juventude, era secretário dos Negócios Estrangeiros e da Guerra do reino. Certamente que ele se lembrava de mim, tínhamos vivido juntos alguns episódios inesquecíveis. Assim, no final do primeiro mês de cativeiro, escrevera-lhe uma petição, apresentando-lhe argumentos em defesa da minha libertação. Muhammed ficara preocupado: E Muhammed? Se rei ir perdoar Santamaria, Muhammed ir ficar aqui sozinho? Dissera-lhe que, mal fosse libertado, trataria de safá-lo também a ele. Mas o árabe era desconfiado. Santamaria mentir! Santamaria ir deixar Muhammed com Cão Negro, e eles ir enra… e ir matar Muhammed! Para minha desilusão, as semanas tinham passado e a petição não obtivera resposta. Entretanto, o ambiente na prisão tornara-se hostil. Os espanhóis estimulavam as quezílias, e certo dia um dos tenentes do Cão Negro exigira que eu fosse despejar as latrinas. Recusara e o Cão Negro aproximara-se uma manhã, no pátio da prisão, acompanhado do seu gangue. A um metro de mim, ameaçara: cabrón, vais morrer aqui. És tu quem manda?, perguntei». In Domingos Amaral, Quando Lisboa Tremeu, Lisboa, 1755, O Dia de Todos os Santos vai mudar a vida de 5 pessoas para sempre, Casa das Letras, Oficina do Livro, 2010, ISBN 978-972-461-986-6.

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O Herege no 31. Bernard Cornwell. «O duque iniciou um protesto, mas naquele exacto momento uma trombeta soou e os besteiros iniciaram a descida…»

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«(…) Ele se recusara a desmontar do seu corcel, equipado com uma testeira de aço para proteger-lhe o rosto e um caparazão de malha brilhante para proteger-lhe o corpo dos arqueiros ingleses que, sem dúvida, estavam colocando as cordas nos arcos nas trincheiras. A auriflama, majestade, disse o duque. Devia ser um pedido, mas de algum modo parecia uma ordem. A auriflama? O rei fingiu não entender. Posso ter a honra, majestade, de levá-la na batalha? O rei suspirou. Vocês têm em relação ao inimigo uma superioridade numérica de dez para um, disse ele, e por isso praticamente não precisam da auriflama. Deixe-a aqui. O inimigo já deve tê-la visto. E o inimigo iria ver o que a auriflama enrolada significava. Ela instruía os franceses a não fazer prisioneiros, a matar todos, embora não houvesse dúvida de que qualquer cavaleiro inglês rico ainda seria capturado em vez de morto, porque um cadáver não rendia resgate. Ainda assim, a bandeira de três tiras, enrolada, deveria incutir o terror nos corações ingleses.
Ela vai ficar aqui, insistiu o rei. O duque iniciou um protesto, mas naquele exacto momento uma trombeta soou e os besteiros iniciaram a descida. Eles vestiam túnicas verde e vermelho, com o emblema do cálice de Génova no braço esquerdo, e cada qual era acompanhado por um infante segurando um pavés, um escudo enorme que iria proteger o besteiro enquanto ele recarregava sua desajeitada arma. A uns oitocentos metros de distância, à margem do rio, ingleses corriam da torre para as trincheiras de terra que tinham sido cavadas há tantos meses, que agora estavam cobertas com uma camada espessa de capim e algas. V. vai perder a sua batalha, disse o rei para o duque que, esquecendo o estandarte escarlate, girou o seu grande corcel protegido por armadura em direcção aos homens de sir Geoffrey.

Montjoie St. Denis!
O duque soltou o grito de guerra da França e os timbaleiros bateram os seus grandes timbales e uma dúzia de trombeteiros clamou seu desafio para os ares. Ouviram-se estalos quando as viseiras foram abaixadas. Os besteiros já estavam no sopé da encosta, espalhando-se para a direita a fim de envolver o flanco inglês. Então as primeiras flechas voaram: flechas inglesas, de penas brancas, adejando sobre a terra verde, e o rei, inclinando-se à frente na sua sela, viu que do lado do inimigo os arqueiros eram muito poucos. Em geral, sempre que os malditos ingleses combatiam, os seus arqueiros estavam em superioridade numérica em relação a seus cavaleiros e soldados, no mínimo de três para um, mas o posto avançado de Nieulay parecia estar guarnecido, na sua maioria, por soldados. Que Deus os acompanhe!, gritou o rei para os seus soldados. Ele fora tomado por um súbito entusiasmo, porque sentia o cheiro da vitória. As trombetas tornaram a soar, e agora a onda metálica de soldados despejou-se encosta abaixo. Berravam o grito de guerra e o som tinha a concorrência dos tambores, que martelavam as peles de cabra esticadas, e dos trombeteiros que tocavam como se pudessem derrotar os ingleses apenas com o som. Deus e São Denis!, gritava o rei». In Bernard Cornwell, O Herege, 2003, Editora Record, 2011, ISBN 978-850-106-867-5.

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No 31. O Herege. Bernard Cornwell. «Ele odiava os ingleses. Odiava. O duque de Bourbon havia delegado a organização do assalto…»

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«(…) Aquilo deixou Filipe melancólico. Seu novo astrólogo recusara-se a atendê-lo durante semanas, alegando estar febril, mas Filipe soubera que ele gozava de boa saúde, o que significava que devia ter visto algum grande desastre nas estrelas e simplesmente receava contar ao rei. Gaivotas gritavam sob as nuvens. Bem lá ao longe, no mar, uma vela desbotada enfunava-se em direcção à Inglaterra, enquanto outro navio ancorava ao largo das praias ocupadas pelos ingleses e, em pequenos barcos, transferia homens para terra, a fim de aumentarem as fileiras inimigas. Filipe olhou para trás, para a estrada, e viu um grupo de cerca de quarenta ou cinquenta cavaleiros ingleses cavalgando em direcção à ponte. Ele fez o sinal-da-cruz, rezando para que os cavaleiros fossem encurralados pelo seu ataque. Ele odiava os ingleses. Odiava. O duque de Bourbon havia delegado a organização do assalto a sir Geoffrey de Charny e Edouard Beaujeu, e isso era bom. O rei confiava em que os dois seriam sensatos. Ele não duvidava de que pudessem tomar a torre, embora ainda não soubesse do que aquilo adiantaria; mas achava que era melhor do que deixar seus nobres mais afoitos usarem as lanças numa carga alucinada pela ponte, para sofrerem uma derrota total nos pântanos. Ele sabia que nada lhes traria maior prazer do que um ataque daqueles. Eles pensavam que a guerra era um jogo, e cada derrota os deixava mais ansiosos por jogarem.
Tolos, pensou ele, e tornou a fazer o sinal-da-cruz, perguntando-se que funesta profecia o astrólogo estava escondendo dele. O que precisamos, pensou ele, é de um milagre. Algum grande sinal de Deus. Então estremeceu, assustado, porque um timbaleiro acabara de tocar o seu grande timbale. Uma trombeta soou. A música não pressagiava o avanço. Eram, isso sim, os músicos que faziam o aquecimento, prontos para o ataque. Edouard Beaujeu estava à direita, onde reunira mais de mil besteiros e outros tantos soldados, e era evidente que ele queria atacar os ingleses por um flanco, enquanto sir Geoffrey Charny e pelo menos quinhentos soldados atacavam montanha abaixo, contra as trincheiras dos ingleses. Sir Geoffrey percorria as fileiras mandando, em voz alta, que cavaleiros e soldados desmontassem. Eles obedeceram, relutantes. Acreditavam que a essência da guerra era a carga da cavalaria, mas sir Geoffrey sabia que cavalos de nada adiantavam contra uma torre de pedra protegida por trincheiras, e por isso insistia em que lutassem a pé. Escudos e espadas, gritou, nada de lanças. A pé! A pé! Sir Geoffrey aprendera as duras penas que os cavalos eram lamentavelmente vulneráveis às flechas inglesas, enquanto que homens a pé podiam avançar agachados, atrás de escudos compridos. Alguns dos homens de berço nobre recusavam-se a desmontar, mas ele não lhes deu importância. Um número ainda maior de soldados franceses apressava-se para participar da carga. O pequeno grupo de cavaleiros ingleses tinha atravessado a ponte agora. Parecia que pretendiam cavalgar pela estrada para desafiarem toda a linha de batalha francesa, mas em vez disso detiveram seus cavalos e olharam para a horda agrupada na crista do monte. O rei, observando-os, viu que eram comandados por um grão-senhor. Ele sabia disso devido ao tamanho do pavilhão do homem, enquanto que pelo menos uma dúzia dos outros cavaleiros levava as bandeiras quadradas de galhardetes nas suas lanças. Um grupo rico, pensou ele, que valia uma pequena fortuna em resgates. Ele esperava que cavalgassem até à torre e, com isso, ficassem encurralados. O duque de Bourbon voltou para perto de Filipe com o cavalo a trote. O duque vestia uma armadura que tinha sido raspada com areia, vinagre e arame até ficar branca de tanto brilho. O elmo, ainda pendurado no arção anterior da sela, tinha em cima penas tingidas de azul». In Bernard Cornwell, O Herege, 2003, Editora Record, 2011, ISBN 978-850-106-867-5.

Cortesia de ERecord/JDACT

quinta-feira, 30 de maio de 2019

O Herege. Bernard Cornwell. «O projéctil devia ter atingido o muro, mas Filipe estava muito longe para ver o efeito. Uma vitória aqui irá estimular a guarnição…»

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«Vinte mil franceses alinhavam-se nas colinas, os estandartes abundantes ao vento que soprava do mar. A auriflama, o sagrado galhardete de guerra da França, estava lá. Era uma bandeira comprida, com três caudas pontudas, uma ondulação vermelho-sangue de preciosa seda, e se a bandeira tinha uma cor viva era porque era nova. A antiga auriflama estava na Inglaterra, um troféu apanhado na larga montanha verde entre Wadicourt e Crécy no verão anterior. Mas a nova bandeira era tão sagrada quanto a antiga, e em torno dela tremulavam os estandartes dos grandes senhores da França: os estandartes de Bourbon, de Montmorency e do conde de Armagnac. Bandeiras menos importantes eram vistas entre as nobres, mas todas proclamavam que os maiores guerreiros do reino de Filipe tinham ido combater os ingleses. No entanto, entre eles e o inimigo estavam o rio Ham e a ponte em Nieulay, que era defendida por uma torre de pedra, em volta da qual os ingleses haviam cavado trincheiras, as quais tinham enchido de arqueiros e soldados. Do outro lado daquela força estava o rio, depois os pântanos, e no terreno mais elevado, perto do alto muro de Calais e seu fosso duplo, havia uma cidade improvisada, de casas e tendas, onde vivia o exército inglês. E um exército como nunca se vira na França. O acampamento dos sitiantes era maior do que a própria Calais. Até onde a vista alcançava havia ruas margeadas por lonas, com casas de madeira e cercados para cavalos, e entre eles havia soldados e arqueiros. A auriflama bem que poderia ter ficado enrolada. Nós podemos tomar a torre, majestade. Sir Geoffrey Charny, soldado valente como qualquer outro no exército de Filipe, fez um gesto para baixo da montanha, no ponto em que a guarnição inglesa de Nieulay estava isolada do lado francês do rio, com que finalidade?, perguntou Filipe.
Ele era um homem fraco, hesitante em combate, mas a pergunta era pertinente. Se a torre caísse e, com isso, a ponte de Nieulay ficasse em seu poder, de que serviria ela? A ponte simplesmente levava a um exército inglês ainda maior, que já se dispunha em ordem de batalha na terra firme à beira do acampamento. Os cidadãos de Calais, com fome e sem esperança, viram os estandartes franceses na crista sul e responderam pendurando as bandeiras deles nas suas defesas. Eles exibiam imagens da Virgem, retratos de S. Denis da França e, no alto da cidadela, a bandeira real azul e amarelo, para dizer a Filipe que os seus súbditos ainda viviam, ainda lutavam. Mas a brava exibição não conseguia esconder o facto de que tinham ficado sitiados por onze meses. Eles precisavam de ajuda. Tome a torre, majestade, insistiu Sir Geoffrey, e depois ataque o outro lado da ponte! Meu bom Cristo, se os malditos nos virem conseguir uma única vitória, poderão perder o ânimo! Um grunhido de concordância veio dos senhores reunidos.
O rei estava menos optimista. Era verdade que a guarnição de Calais ainda resistia, e que os ingleses praticamente não tinham danificado os muros da cidade, ainda menos encontrado um meio de atravessar os fossos gémeos. Mas também os franceses não haviam conseguido levar suprimento algum para a cidade sitiada. O povo de lá não precisava de estímulo, precisava de comida. Um jacto de fumaça surgiu do outro lado do acampamento e, poucos segundos depois, o som de um canhão ecoou pelos pântanos. O projéctil devia ter atingido o muro, mas Filipe estava muito longe para ver o efeito. Uma vitória aqui irá estimular a guarnição, insistiu lorde de Montmorency, e implantar o desespero nos corações ingleses. Mas por que iriam os ingleses perder o ânimo se a torre de Nieulay caísse? Filipe achava que aquilo iria apenas enchê-los de vontade de defender a estrada no lado oposto da ponte, mas também entendia que ele não poderia manter seus cães contidos quando um inimigo odiado estava à vista, e por isso deu a permissão. Tomem a torre, disse, e que Deus lhes conceda a vitória. O rei permaneceu onde estava enquanto os senhores reuniam homens e se armavam. O vento que vinha do mar trazia um cheiro de sal, mas também um odor de decomposição talvez proveniente de algas que apodreciam nos longos alagadiços que recebiam a maré». In Bernard Cornwell, O Herege, 2003, Editora Record, 2011, ISBN 978-850-106-867-5.

Cortesia de ERecord/JDACT

quarta-feira, 29 de maio de 2019

A Catedral de Lamego. Séculos XII a XX. Anísio Sousa Saraiva. «O domínio cristão da cidade permitiu que as suas estruturas eclesiásticas se reactivassem e a igreja conhecesse um verdadeiro florescimento…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Espaço. Poder. Memória
Construir e Organizar
«(…) Para melhor se compreender a história da diocese de Lamego, inserida primeiro no reino suevo, depois no visigodo, em seguida no Condado de Coimbra e, finalmente, no Condado Portucalense e no emergente reino português, forçoso é recuar até ao mais antigo passado de Lamego como sede de bispado. Foi ainda durante o Império Romano que a religião cristã foi introduzida na Península Ibérica e se começaram a organizar, neste extremo ocidental da Europa, as primeiras comunidades de seguidores de Cristo (sobre os mais recuados tempos do cristianismo na província da Lusitânia, onde se integrava Lamego) assim também sucedeu na região de Lamego, onde sabemos que a romanização se fizera fortemente sentir. O desenvolvimento do cristianismo na zona levou a que Lamego se tornasse sede episcopal no século VI, durante o domínio suevo da parte norte do território futuramente português, e no tempo da acção missionadora levada a cabo por S. Martinho de Dume, a partir do mosteiro, próximo de Braga, ao qual o seu nome ficou para sempre associado. É nas actas do II Concílio realizado nesta cidade, em 572, que surge a mais antiga subscrição de um bispo de Lamego, Sardinário. Existem referências a anteriores prelados, que relevam provavelmente apenas do domínio da lenda ou, pelo menos, não têm qualquer comprovação documental; por isso, devemos considerar Sardinário como o primeiro bispo de Lamego de que há certeza, de acordo com as investigações mais seguras e recentes acerca desta difícil temática5.
Difícil, essencialmente, porque as fontes ao dispor dos investigadores são poucas e lacunares. Até ao final do século VII, provêm quase sempre, e unicamente, das subscrições episcopais conservadas nas actas dos concílios realizados pela Igreja hispânica; por esta via conhecemos oito prelados, de 572 a 693 (vid. Quadro I), cujos nomes, quase todos germânicos, formam uma sequência a que não podemos ter a certeza de não faltar alguém. É possível que Fiôncio tenha tido um ou mais sucessores, antes da queda da cidade em poder dos muçulmanos, poucos anos volvidos sobre a travessia do estreito de Gibraltar pelas tropas de Tarique, em 711. O seu rápido avanço em direcção ao norte peninsular provocou a desorganização das estruturas do reino visigodo, não apenas civis, mas também eclesiásticas; não admira, pois, que deixe de haver menções a prelados, tanto em Lamego como em grande parte dos bispados hispânicos, sobretudo à medida que iam ficando sob domínio muçulmano (sobre a forma como, rapidamente, as tropas árabes dominaram o território peninsular). À semelhança de outras dioceses, Lamego talvez tenha mantido durante a ocupação sarracena bispos não residentes, que se acolhiam mais a norte, em terras cristãs, como indiciam as notícias das décadas iniciais do século X (que cita um diploma de Ordonho II de 915, referindo a presença dos bispos de Lamego e Tui no norte da Galiza). Mas os seus nomes permanecem-nos desconhecidos, só voltando a haver referências a bispos na diocese depois de a cidade ter regressado a mãos cristãs, no último quartel do século IX, graças às acções militares do rei Afonso III (866-910), que permitiram devolver aos cristãos vastas zonas, desde o Minho ao Mondego (relativamente à conjuntura vivida no tempo de Afonso III e às suas conquistas). O domínio cristão da cidade permitiu que as suas estruturas eclesiásticas se reactivassem e a igreja conhecesse um verdadeiro florescimento, bem patente nos fragmentos de importantes códices dessa época que ainda hoje se conservam  (arciprestado de Vila Nova de Foz Côa, diocese de Lamego: breve ensaio sobre o território e as comunidades eclesiais)». In Anísio Sousa Saraiva, Coordenação, Espaço, Poder, Memória, Faculdade de Teologia, Centro de Estudos de História Religiosa, Universidade Católica Portuguesa, Fundação para a Ciência e a Tecnologia, 2013, ISBN 978-972-836-157-0.

Cortesia de CEHR/UCP/FCT/JDACT

terça-feira, 28 de maio de 2019

A Catedral de Lamego. Séculos XII a XX. Anísio Sousa Saraiva. «O esforço de contextualização e de síntese impresso neste evento científico ganha agora a sua forma definitiva e ampliada, através de uma organização temática…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Espaço. Poder. Memória
«Construído a partir da segunda metade do século XII em sucessivas etapas, o complexo catedralício da Sé de Lamego constitui um dos monumentos históricos mais emblemáticos não apenas da cidade de Lamego, mas de toda a região do Douro, razão pela qual sempre despertou grande interesse e tem sido objecto frequente de investigação e de problematização. No entanto, apesar deste lugar de relevo que ocupa no panorama patrimonial e historiográfico local e nacional, verificamos que os estudos até hoje dedicados a este edifício e às suas sucessivas fábricas construtivas resultam em grande parte de investigações pontuais e dispersas, na sua maioria realizadas a partir de leituras parciais e lacunares da documentação e do próprio edifício, que não concorrem para uma sólida interpretação de conjunto no tempo longo. Com este livro, Espaço, poder e memória: a catedral de Lamego, séculos. XII a XX, pretendemos, de algum modo, colmatar essa lacuna, infelizmente ainda comum à maioria das catedrais portuguesas, procurando promover a investigação e o debate interdisciplinar em torno destes monumentos nacionais, assim como incentivar a elaboração de sínteses coerentes e actualizadas sobre estes edifícios, neste caso concreto sobre a Sé Duriense e os seus mais de 800 anos de história. Ao aliarmos o rigor da informação, a interligação temática e cronológica das diferentes abordagens por nós selecionadas, a um discurso rigoroso mas ao mesmo tempo acessível, procurámos não só elaborar uma monografia de interesse científico, mas também uma actualizada e abrangente fonte de estudo e de informação, escrita e gráfica, adequada ao público em geral e à população escolar em particular, tão carente entre nós de obras com conteúdos simultaneamente apelativos e bem fundamentados do ponto vista científico.
A divulgação consistente do percurso histórico e artístico deste complexo monumental junto do grande público abre um caminho seguro para que este o possa melhor compreender, valorizar e preservar. Esta preocupação assume particular pertinência e oportunidade pela dinamização cultual e promoção histórico-cultural que recentemente têm recebido as catedrais portuguesas, enquanto espaços de religiosidade, arte e poder, quer no âmbito do turismo religioso, quer dos vários programas de musealização e de conservação em curso. Dando seguimento ao nosso propósito, considerámos importante reunir neste livro as contribuições de um leque de nove investigadores nacionais e estrangeiros, especialistas em diferentes áreas de trabalho, como a História, a História da Arte, a Arquitectura, a Conservação e o Restauro, e em diferentes períodos históricos, desde a Idade Média à Época Contemporânea, que na sua maioria foram sumariamente apresentadas pelos respectivos autores no Encontro Internacional Espaço, Poder e Memória: a Sé de Lamego em oito séculos de história, realizado no Museu de Lamego, em Abril de 2010, sob nossa coordenação e de Alexandra Braga, técnica superior deste mesmo Museu.
O esforço de contextualização e de síntese impresso neste evento científico ganha agora a sua forma definitiva e ampliada, através de uma organização temática, representativa dos principais momentos da história da catedral de Lamego: desde a nebulosa e pouco estudada fase inicial de restauração da diocese e de construção da catedral românica e gótica; passando pelo período áureo de renovação renascentista da Sé, fortemente impulsionada pela actividade mecenática dos bispos de então, até aos séculos da Contra-Reforma e ao impacto que tiveram na organização da estrutura da diocese e na sua praxis governativa, plasmada na reformulação arquitectónica e artística que a catedral então sofreu e que lhe conferiu a forma e a projecção que ainda hoje apresenta, sem esquecermos o período da sua história recente marcada pelas sempre interpeladoras intervenções da Direcção Geral de Edifícios e Monumentos Nacionais e abordagens técnicas de restauro que a catedral conheceu ao longo do século XX. […] Coimbra, 26 de Março de 2013

In Anísio Sousa Saraiva, Coordenação, Espaço, Poder, Memória, Faculdade de Teologia, Centro de Estudos de História Religiosa, Universidade Católica Portuguesa, Fundação para a Ciência e a Tecnologia, 2013, ISBN 978-972-836-157-0.

Cortesia de CEHR/UCP/FCT/JDACT

segunda-feira, 27 de maio de 2019

A Biblioteca Secreta de Leonardo. Francesco Fioretti. «Foram mandados pelos venezianos e são famosos pela sua ferocidade: armados à turca, decapitam os inimigos com mais facilidade do que tu a cortar um caciocavallo»

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Milão. Corte Vecchia. 7 de Fevereiro de 1496
«(…) Gian Giacomo levantou-se e aproximou-se da mesa, ainda titubeante. Depois voltou a fechar o embrulho e desceu ao piso inferior. Voltou poucos minutos depois, com o membro na mão, sem o cartucho ensanguentado. Leonardo pegou nele e observou-o atentamente. Bela mão, disse. Não tem calos, não é uma mão de camponês, nem de guerreiro. Mas também não é de um príncipe. A menos que... Já sei: é a direita de um canhoto. Um canhoto como o mestre, disse o rapaz, sabe do que fala. Ao contrário de mim, é um canhoto que foi obrigado a corrigir-se, que para escrever, mas provavelmente só para escrever, usa precisamente esta mão: tem um resto de tinta no indicador; sinal de que sabia escrever, e devia fazê-lo com frequência… Talvez, disse Gian Giacomo, quem a perdeu ainda esteja lá. Se nos despacharmos, procuramos o proprietário e podemos devolvê-la. Mas também podemos esbarrar com o seu perseguidor, que, ao que parece, está armado com machado ou cimitarra: o corte é limpo, como o de um carrasco experiente ou de um estradiota albanês, conheces? Há vários na cidade, sobreviventes da guerra contra os franceses de Carlos VIII. Foram mandados pelos venezianos e são famosos pela sua ferocidade: armados à turca, decapitam os inimigos com mais facilidade do que tu a cortar um caciocavallo. E depois, diz-me uma coisa, o que faz agora o ex-proprietário com a sua direita? Guarda-a numa caixa como recordação? Mas a nós, pode-nos ser útil.
Salai não lhe perguntou para quê, já percebera. Aquela mania do seu mestre de desmontar as coisas, de as abrir, até os mortos, homens, cavalos ou pássaros que fossem, para lhes perceber (ou arrancar) o funcionamento. Mania que ele não compreendia. Ao menos ele roubava, a sua fixação não exigia particulares explicações, o ganho de um furto era evidente. Mas o que se ganhava ao abrir cadáveres? Era só uma coisa nojenta, uma paixão mórbida, pior do que a sua. Por outro lado, contudo, nunca se poria a dar lições de moral ao seu mestre. O seu mestre era bom e não tinha culpa alguma de tudo o que lhe acontecera, motivo pelo qual não conseguia ter paz, nem nunca conseguiria.
Investigaremos com calma, continuou Leonardo, talvez para tranquilizá-lo. Um homem sem mão, se ainda estiver vivo, não passa despercebido, nem um estradiota armado com uma cimitarra. Dito isto, trabalhou a mão como se fosse de barro, colocou-a numa pose lisonjeira, depois pegou na sanguina e desenhou-a numa folha de papel. Desenhava tudo, com extrema rapidez». In Francesco Fioretti, A Biblioteca Secreta de Leonardo, 2018, Marcador Editora, Editorial Presença, 2019, ISBN 978-989-754-394-4.

Cortesia de MarcadorE/EPresença/JDACT

As Sombras de Leonardo da Vinci. Christian Gálvez. «E um pouco de silêncio, per favore. Estou a tentar concentrar-me. Não é fácil para alguém iletrado como eu manter a serenidade de pensamento…»

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2 de Maio de 1519
Mansão de Clos Lucé, Amboise
«(…) O que vai ser de nós?, perguntou, mais preocupado com a sua integridade do que com o resto dos acompanhantes. Não acredito que por esta altura nos vão passear pela rua de capuz com a palavra sodomita, cosida. Vão torturar-nos. E, por mais falsa que seja a acusação, qualquer indício de verdade será motivo suficiente para nos castrarem. Ou isso ou levar-nos-ão directamente para a fogueira. A voz era firme. Os olhos não acompanharam o sentido das palavras que acabava de pronunciar. Continuava suspenso das alternativas que se desvirtuavam na sua mente e se restauravam em várias oportunidades, a maioria das quais com resultado funesto. Bartolomeo trocou a preocupação por medo.
Vão torturar-nos e queimar-nos?! Por uma simples acusação anónima, sem provas?! A sua reclamação podia ouvir-se a metros de distância, mas não interessava nem aos novos inquilinos dos subterrâneos nem aos escassos Oficiais da Noite e Guardas da Moralidade dos Mosteiros. Baccino pôs-se a rezar. Estava tão certo da sua inocência que sabia que o fim só podia ser o Paraíso, mas uma prece nunca era demais. Só receio uma coisa, interrompeu Tornabuoni, tentando transmitir uma serenidade que não acompanhava os sentimentos que lhe percorriam o corpo. Se os guardas subornarem Saltarelli e este fizer declarações contra nós, considerar-se-á verdadeira a calúnia lançada sobre nós, e aí teremos graves problemas. Jacopo é um imberbe de dezassete anos, e não acredito que aceite que o apontem na rua como um cão que gosta de ser açoitado com a verga. Achas que se venderá por alguns florins?, apressou-se a indagar Bartolomeo.
Não me parece, respondeu Tornabuoni, hesitante. Baccino interrompeu a oração. Os olhos saíam-lhe das órbitas. Não dava crédito à conversa que os companheiros de cela, não amigos, entabulavam enquanto aguardavam um castigo que consistia em flagelos e sabe Deus que coisa pior. Ignorantes!, gritou, como se de repente quisesse iniciar um ritual cristão. Não percebeis? Se Judas atraiçoou Nosso Senhor por um punhado de moedas, o que não fará este jovem por quem ninguém dá nada! Maldito seja, seremos executados na praça! Meu Deus, tende piedade... Deus é surdo.
De novo, a voz do engenheiro que sulcava a pedra com um punção metálico interrompeu cortante a discussão tão inútil quanto acalorada que se travava nos escassos metros quadrados que lhes serviam de sala. Registava um tom calmo e seguro, e não só na aparência. A convicção das suas palavras e a serenidade da entoação não eram próprias de uma situação tão preocupante.
E um pouco de silêncio, per favore. Estou a tentar concentrar-me. Não é fácil para alguém iletrado como eu manter a serenidade de pensamento se só disserdes disparates. Disparates?, perguntou, ofendido, o crente Baccino. Pelo menos procuramos adivinhar o futuro em conjunto. Não tentamos agarrar avaramente o destino com as mãos e um punção ou apropriarmo-nos dele ignorando a companhia que, tão injustamente acusada como vós, nos rodeia. Apesar de não existir uma relação profunda entre ambos, nunca se haviam falado daquela maneira, tudo fora cortês e educado. Mas o medo e a incerteza pouco a pouco faziam mossa entre os mais frágeis e inseguros, como era o caso de Baccino. A boca matou mais gente do que a espada, caro Baccino, pronunciou a voz. E acrescentou: a liberdade é o maior dom da natureza. Logo que a virtude nasce, a inveja vem ao mundo para a atacar; e, lembrai-vos do que vos digo, meus amigos, mais cedo haverá corpo sem sombra do que virtude sem inveja. Vamos, meu amigo, não é a altura certa para filosofar, afirmou Bartolomeo. O que pensais fazer?
Por alguns segundos, o único som que quebrava o silêncio que se produzia na sala eram as lascas de pedra a saltar para o solo, atingidas por um incansável punção. Ninguém estava à espera do que iam ouvir. Não era uma proposta. Era uma sentença. Eu, Leonardo da Vinci, penso fugir desta prisão. Antes estar morto do que não ter liberdade. Entretanto, a cento e vinte quilómetros dali, estava prestes a surgir a encarnação do novo representante do Céu na Terra para desencadear o seu próprio Juízo Final». In Christian Gálvez, As Sombras de Leonardo da Vinci, 2014, Clube do Autor, 2018, ISBN 978-989-724-367-7.

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As Sombras de Leonardo da Vinci. Christian Gálvez. «… fragilidade da cela em forma de cúpula em que se encontravam. Muito pequena, mesmo para quatro ocupantes. É desumano, pensou»

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2 de Maio de 1519
Mansão de Clos Lucé, Amboise
«(…) Vira-o a criar, da mesma maneira, na oficina Via Bufalini, onde uma vez por mês levava as indumentárias remendadas dos aprendizes por ordem do mestre Andrea. O ateliê era fácil de localizar, pois pelo menos quinze pequenos edifícios haviam sido demolidos em volta para a iminente construção do futuro Palazzo Strozzi, e ele tinha de proteger a roupa que transportava do pó que se erguia. Mas essa informação escapava a Baccino, visto que, para ele, crente no Todo-Poderoso, havia apenas um destino e, no momento e no lugar em que se encontravam, este parecia muito próximo. Aceitá-lo-ia com resignação, se fosse o que o Senhor houvesse decidido. Embora, para quê negá-lo, parte do seu espírito desejasse regressar ao Bairro de Or San Michele, onde recentemente abrira a sua própria loja. Tentou ajudar à sua maneira, esquadrinhando qualquer indício de fragilidade da cela em forma de cúpula em que se encontravam. Muito pequena, mesmo para quatro ocupantes. É desumano, pensou.
De repente, os seus olhos pousaram em Tornabuoni, que, envergando o habitual hábito negro, descansava no canto oposto, com as mãos apoiadas na cabeça, como se lamentasse cada um dos minutos de vida que lhe escapavam sob as camadas infinitas de rocha e humidade. Não queria que aquela falsa acusação manchasse o imaculado apelido que carregava, familiar de nada mais nada menos que Lucrecia Tornabuoni, esposa de Piero Médici e mãe de Lorenzo Médici. Em suma, aparentado com a mulher mais influente da família mais poderosa dos Estados italianos. Tudo remontava a dois meses antes, a quatro dias do vigésimo quarto aniversário de Leonardo. Uma mão tão anónima quanto cobarde abriu a caixa de Pandora numa pequena arcada lateral do Palazzo Vecchio. Não se conheciam as motivações desse indivíduo, mas, efectivamente, espoletou a guerra. Deixou uma falsa acusação no pior sítio onde esta podia ser deixada em toda a cidade de Florença. O depósito de pedra, a boca da verdade, o tamburo. Uma simples nota com uma acusação detalhada com nomes e apelidos era suficiente para dar início à perseguição dos caluniados e para os pôr, no mínimo, na presença da justiça. O documento notarial seria desprezado em algumas semanas se não surgissem provas definitivas e testemunhas de peso sem cortinas de anonimato para reafirmar a acusação.
Absoluti cum condizione ut retamburentur.
O encarceramento fora grotesco. A recepção no palácio representara uma guerra psicológica permanente. Logo que entraram pela porta da inexpugnável fortaleza, o pátio acolheu-os com uma série de murais difamatórios explícitos, onde os criminosos eram atormentados pelos seus pecados e os diabos os torturavam a caminho do inferno. Lá dentro, a dúvida revoava pelo reduzido tecto da prisão. Apareceria alguém? Seriam condenados? Ou, pelo contrário, seriam absolvidos do crime imputado? Fosse como fosse, ninguém questionava que a dúvida semeada mancharia a reputação de mais de uma pessoa. Bastava que corresse de boca em boca o texto da acusação entregue no tamburo:

Notifico-os, signori Officiali, de um facto certo, ou seja, que Jacopo Saltarelli, irmão de Giovanni Saltarelli, vive com este último na ourivesaria de Vacchereccia, frente ao tamburo: veste de negro e tem cerca de dezassete anos. Este Jacopo foi cúmplice em muitos actos vis e consente em agradar às pessoas que lhe peçam tal iniquidade. E deste modo teve muitos entendimentos, quer dizer, serviu várias dezenas de pessoas a respeito das quais sei muitas coisas e aqui nomearei algumas: Bartolomeo di Pasquino, ourives, que vive em Vacchereccia; Leonardo di Ser Piero da Vinci, que vive com o Varrocchio; Baccino, o alfaiate, que vive em Or San Michele, na rua onde há duas grandes lojas de cortadores de panos e que dirige a Loggia dei Cierchi; recentemente abriu uma alfaiataria; Lionardo Tornabuoni, chamado il teri, veste de negro. Estes cometeram sodomia com o dito Jacopo, e isto testemunho eu diante de vós.

Dois meses de interrogatórios, torturas e vexames que, aos poucos, minaram o moral dos acusados, Bartolomeo, o ourives vizinho da localidade de Vacchereccia, foi o primeiro a cortar o ambiente com a sua voz apreensiva». In Christian Gálvez, As Sombras de Leonardo da Vinci, 2014, Clube do Autor, 2018, ISBN 978-989-724-367-7.

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domingo, 26 de maio de 2019

Aos Olhos de Deus. José Manuel Saraiva. «Mas em vésperas da chegada da comitiva portuguesa a Roma, já as ruas da cidade começavam a ficar limpas e coloridas de flores, aconteceu o imprevisto»

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«(…) Estais na casa de Deus, benzeu-se, de imediato, e, como podeis testemunhar, aqui também trabalhamos por Ele. E depois, aos berros. Por Ele, pela Santa Madre Igreja, pelo Santo Padre, que é o nosso embaixador do Céu, e pelo vosso piíssimo e sacratíssimo rei Manuel I. Mas eu não faço falta nenhuma, senhor, disse ela, baixinho, quase atemorizada. Com a cota de uma mão o clérigo limpou a escuma dos cantos da boca, fixou os olhos da rapariga e, já então em sérias dificuldades para controlar a costumada histeria e o tradicional mau-humor, concluiu peremptório, ruborizado: só eu e Deus sabemos a falta que fazeis. Por isso, amanhã espero por vós. E saiu à pressa, batendo a porta com enorme estrondo.
As palavras assim proferidas pelo bispo, quase tão vigorosas quanto ameaçadoras, associadas ao modo rude como se despediu, deixaram os portugueses num estado de sofrido silêncio e a jovem judia em doloroso pânico. Os próprios romanos, que assistiram atónitos àquele desvario endemoninhado, encolheram-se de medo e só depois acorreram a confortar Raquel, caída entretanto em inconsolável pranto e desespero. Não quero voltar aqui!, exclamou ela, soluçando. Apanhados de surpresa, mal sabendo o que dizer, os homens rodearam a rapariga de afectos, com os seus capotes protegeram-na do frio cada vez mais cortante. Alguém exclamou Já falta pouco para isto acabar, e, juntos, acompanharam-na, temerários, à casa das Seculares Reparadoras. E prometeram que na tarde seguinte lá estariam todos, vigorosos, afoitos, talvez mesmo armados de punhais, para a levarem a Sant’Angelo e a protegerem de qualquer malfeitoria tentada pelo celerado bispo. Porém, nada de extraordinário veio a ocorrer no dia seguinte e nos que o sucederam. Mas em vésperas da chegada da comitiva portuguesa a Roma, já as ruas da cidade começavam a ficar limpas e coloridas de flores, aconteceu o imprevisto. Como de costume, o grupo de trabalho, que integrava a companhia de Raquel Aboab, desnecessária é certo, mas requerida pelo bispo, compareceu à hora marcada no anexo do palácio apostólico onde, para surpresa geral, se encontravam já à conversa Francesco Petrini, Paris de Grassis, o novo mestre-de-cerimónias da cúria romana, uns tantos diáconos e, a um canto da sala, enroladas nos seus beatíficos hábitos, meia dúzia de religiosas. Tratava-se da última reunião de trabalho e isso justificava a presença de Paris de Grassis; quanto às religiosas e aos padres, ninguém percebeu porque estavam ali, silentes, de pé, em aparente estado de abstracção e melancolia. A reunião acabou cedo e Paris de Grassis foi o primeiro a sair. Depois, e por sugestão de Francesco Petrini, abalaram os romanos que desde a primeira hora haviam trabalhado na organização; minutos mais tarde o homem dispensou os diáconos; depois juntou Raquel Aboab ao bando das religiosas e despachou os portugueses sob o argumento de que precisava das mulheres para o acompanharem à Capela Sistina onde, àquela hora, algumas monjas procediam à ornamentação e ao arranjo dos altares. Senhor, interveio o tabelião português, quando Francesco Petrini acabou de dar as ordens, a portuguesa não é monja nem nunca fez parte deste grupo. Por isso é nosso desejo vê-la a abandonar este aposento e voltar para casa. Espantado pela intervenção do estrangeiro, Petrini arregalou os olhos e, de dedo em riste, exclamou que não admitia qualquer interferência nas suas decisões. Que já falara com os secretários do Sumo Pontífice para que o autorizassem a dispor dos vedores enviados, semanas antes, pela coroa de Lisboa. A jovem não veio nessa qualidade, retorquiu o tabelião, usando de esforçada calma. Mas assumiu-a aqui, nesta casa, prosseguiu o bispo, cada vez mais irritado. Uma das religiosas, a mais velha, deu nesse momento um passo em frente e proclamou: junto a nós e a Nosso Senhor essa mulher ficará em segurança. Um silêncio de morte abateu-se na sala.
Pois então que nada lhe aconteça, advertiu o português ao fim de prolongados segundos, enquanto Raquel Aboab se encostava a uma parede chorando e soluçando. A Capela Sistina situava-se a curta distância do anexo de Sant’Angelo. E foi para lá que Petrini, as religiosas e a portuguesa se dirigiram de seguida». In José Manuel Saraiva, Aos Olhos de Deus, Oficina do Livro Editor, 2008, ISBN 978-989-555-364-8.
                                                                                                                 
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Aos Olhos de Deus. José Manuel Saraiva. «Raquel Aboab não disse nada, nem sequer se moveu até que o cardeal, depois de fazer o sinal da cruz com a mão direita aberta e de lhe conferir a bênção, a mandou sentar»

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«(…) Pois então tentai ir ao encontro dela e dizei-lhe que venha com todos vós à próxima reunião, na santa paz de Deus, pediu o eclesiástico com um sorriso aparentemente benigno. Não quero que por minha culpa ela se sinta mais estrangeira em Roma do que já é. Tentai-a; tentai convencê-la a vir na vossa santificada companhia. E se ela não quiser vir?, perguntou, intrigado, o tabelião. Se Deus quiser, há-de querer, insistiu. Convencei-a vir com doces palavras, porque ela terá aqui o nosso apoio; e eu próprio, humilde servo de Nosso Senhor Jesus Cristo cá na Terra, saberei dar-lhe todo o meu conforto. Com ar de inexcedível bondade mas de alguma desconfiança, o tabelião menenou várias vezes a cabeça em sinal de assentimento, e proclamou em tom definitivo: pois se assim é, que Deus vos ouça. Ele já está a ouvir-nos, garantiu o clérigo, impúdico, cínico, insuportavelmente calmo.

Decorrida uma semana, numa tarde embaciada de intenso nevoeiro, Raquel Aboab deslocou-se finalmente ao castelo de Sant’Angelo na companhia dos amigos portugueses. Ao princípio ainda se recusou a voltar ao grupo de onde fora expulsa pelo clérigo, mas depois de muita insistência por parte do tabelião, na presença da própria madre abadessa das Seculares Reparadoras, a jovem acabaria por ceder à proposta do eclesiasta por interposta pessoa, na convicção plena de que se lhe faltasse o apoio divino haveria seguramente de contar com a ajuda humana. Quer a abadessa, quer os portugueses e os romanos estariam sempre a seu lado e nem a madre nem os outros a deixariam cair como vítima da desgraça ou da insídia. Disso tinha ela a certeza. Ou, pelo menos, julgava tê-la. De modo que foi com um certo alívio e algum sentimento de segurança que Raquel reintegrou o grupo e, acompanhada por todos, se dirigiu naquela tarde ao castelo de Sant’Angelo para assistir, como dantes acontecia, ao trabalho de organização das festas. Bem-vinda sejais de novo a esta pobre mas santificada casa, mulher de Deus!, clamou o bispo, logo que viu a jovem a entrar na sala. Obrigada, senhor, respondeu ela, titubeante, sem olhar de frente para ele.
Francesco Petrini tinha uma figura medonha. Era um homem de estatura média, de gestos quase sempre rudes e a voz agreste, o pescoço grosso como um tronco, o rosto coberto de pústulas, as sobrancelhas arqueadas e muito peludas, e os lábios tão finos que, entreabertos, mal escondiam a falta dos dentes incisivos. Além disso, fedia a igreja. Chamei-vos porque não quero que vos sintais mais estrangeira do que já sois nesta cidade santa, prosseguiu o eclesiasta num registo de voz invulgarmente manso. Julgo que a vossa família está aqui toda. Com o dedo e um gesto de cabeça apontou na direcção dos portugueses. E por isso não quero que a bela jovem que tenho à minha frente se sinta só, desprotegida, desamorada. Aqui, minha jovem, estais na paz do Senhor.
Raquel Aboab não disse nada, nem sequer se moveu até que o cardeal, depois de fazer o sinal da cruz com a mão direita aberta e de lhe conferir a bênção, a mandou sentar, mas em silêncio, a um canto da sala. Durante as duas horas de reunião e conversas circulares, Francesco Petrini raramente desviou os olhos da judia. Fazia-o com disfarçada cautela, aparente indiferença, mas os outros depressa se aperceberam de que o clérigo estava mais atento à beleza inquietante da rapariga do que aos assuntos ali discutidos. No final do encontro, virou-se para ela e, na frente do grupo, pediu que voltasse no dia seguinte por suspeitar que a sua presença ajudava à criação de uma espécie de clima de paz celestial. Vinde, criatura de Deus, vinde amanhã e sempre, exigiu o eclesiástico, à despedida. Porém, desconfiada do súbito interesse do homem e de tão generosas intenções, Raquel Aboab esclareceu, sem jamais olhar para o sinistro clérigo, que era seu desejo manter-se na sede da Ordem, em clausura e orações penitenciais, até à chegada da embaixada portuguesa a Roma. Não façais isso, porque desgosta a todos, gritou Petrini, tomado entretanto por um sentimento de descontrolada insatisfação pessoal». In José Manuel Saraiva, Aos Olhos de Deus, Oficina do Livro Editor, 2008, ISBN 978-989-555-364-8.
                                                                                                                 
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sábado, 25 de maio de 2019

Aos Olhos de Deus. José Manuel Saraiva. «Ide embora na santa paz de Deus Nosso Senhor, e num tom ainda mais alto, e orai pelos vossos pecados e a salvação do homem»

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«(…) E foi decerto pela sua irreprimível entrega à Igreja e às populações mais miseráveis de Roma que o Sumo Pontífice, reconhecendo ao homem razoáveis capacidades de esperteza e um teatral afecto na relação com os desgraçados, o designou para dirigir o grupo organizador da recepção à embaixada portuguesa. Nesse dia, o dia da nomeação papal, Francesco Petrini ficou radiante. E logo tomou a decisão de ir na mesma tarde ao anexo das traseiras do castelo de Sant’Angelo, onde, sabia-se, por costume se reuniam uns tantos profanos e alguns clérigos da cúria para discutir e proceder ao arranjo das festas de acolhimento às comitivas estrangeiras. No entanto, ao chegar ao anexo, não encontrou ninguém. Voltou no dia seguinte, e no outro, e no outro ainda, até que à quarta tentativa sem resultados foi ter com um subdiácono da Santa Sé, ordenando-lhe que mandasse convocar os elementos, já antes escolhidos pelo secretariado da chancelaria, para uma reunião de trabalho. Estava com pressa de mostrar serviço e de zelar pelo sucesso da obra. E para quando quereis que os convoque?, perguntou o padre. Quero-os amanhã lá, às três horas da tarde, respondeu o outro, sem hesitar. Todos: romanos e portugueses.
Raquel Aboab, a judia que em Dezembro partira de Lisboa por decisão e vontade de Diogo Pacheco, não fazia parte do grupo, mas, como se tornara amiga e protegida dos portugueses enviados a Roma pelo rei Manuel, com vista a ajudarem os romanos na preparação dos festejos, criou o hábito de os acompanhar para toda a parte. Por isso, foi sem cuidados nem reservas que a jovem compareceu ao encontro do dia seguinte, solicitado por Francesco Petrini. Quem vos convocou, mulher de Deus?, berrou o homem, estupefacto, quando viu a jovem a entrar na sala. Quem sois vós? Porque estais aqui? Apanhada de surpresa pela infeliz e agreste intervenção do eclesiasta, Raquel Aboab corou ligeiramente, e tentando a custo dominar a raiva e o medo, respondeu que era portuguesa, amiga dos portugueses enviados pela coroa de Lisboa para auxiliarem os romanos nos trabalhos de acolhimento à embaixada que dentro de poucas semanas haveria de chegar à Cidade Santa. E qual é a vossa graça?, perguntou ele, no mesmo tom boçal. Raquel. E que mais? Chamo-me apenas Raquel, mentiu. Tendes nome de judia...
Num completo estado de desassossego, já quase a chorar, a jovem negou a origem e propôs-se imediatamente sair do compartimento e regressar sozinha à casa que lhe dava abrigo desde a chegada a Roma. Esperai, esperai um pouco, ordenou D. Petrini, impositivo. E aproximando-se lentamente da mulher, quis saber onde ela morava e o que fazia. Moro perto daqui, num pobre casebre das Seculares Reparadoras da Virgem das Dores. E aí não fazeis trabalho de oração? Não devíeis estar lá numa atitude de constante penitência, de vigília consagrada a Deus e à Virgem? Estou de passagem por Roma, sou estrangeira, esclareceu a jovem, e só por isso as outras religiosas me concedem o favor de uma liberdade diferente da delas. Mas não deviam..., gritou o clérigo, reprovativo. Ide embora na santa paz de Deus Nosso Senhor, e num tom ainda mais alto, e orai pelos vossos pecados e a salvação do homem.
Uma chuva miudinha começava a cair sobre a cidade, a cidade de todos os vícios, como era conhecida na Europa cristã. Raquel Aboab assomou à porta, cobriu a cabeça com um véu oferecido por Diogo Pacheco e desatou a correr, chorando e soluçando em direcção à casa onde morava. A residência destinada à sua estada e segurança fora escolhida, a pedido de Diogo Pacheco, por João Faria, que, dizia-se em segredo, mantinha há vários meses uma relação íntima e secreta com a madre abadessa daquela Ordem religiosa. E era decerto por causa desta cumplicidade pecaminosa que Raquel, protegida de João Faria, dispunha de uma liberdade de movimentos jamais consentida a qualquer outra residente. A partir desse dia, o da expulsão da estrangeira, nunca mais as reuniões, mesmo as impontuais, decorreram como até aí. Os romanos já se haviam habituado a gostar da jovem e os portugueses adoravam-na. Além disso, pouco ou nada havia já para discutir ou organizar, e, no entanto, às três horas da cada tarde lá estava  Petrini a dar instruções e a tecer ideias mais do que gastas sobre a importância do acontecimento de alto relevo para a Igreja e Sua Santidade. Mas certo dia, tomado por um invulgar estado de boa disposição, ou talvez possuído por um retábulo de intenções poucos claras, o bispo quis saber pelos portugueses o que era feito da jovem das Seculares Reparadoras. E até se manifestou vagamente arrependido pelo tom agreste como a excluíra da assistência deles. Nunca mais a vi e julgo que nenhum de nós voltou a ter contacto com ela, respondeu o mais velho e responsável do grupo, tabelião de ofício e homem de extrema confiança da corte do rei português». In José Manuel Saraiva, Aos Olhos de Deus, Oficina do Livro Editor, 2008, ISBN 978-989-555-364-8.
                                                                                                                 
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Rosa Brava. José Manuel Saraiva. «O que eu quero e aprecio é ter um homem perto de mim, mesmo que esse homem me não pertença, conforme o caso, que me dê atenção e me trate como uma rainha»

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«(…) Não lhe saía da cabeça o olhar elangues cente do professor, o modo como sempre lhe falou e se lhe dirigiu num tom de respeito quase idêntico ao que o próprio manifestara por el-rei Fernando, quando ele e os comensais discutiam as qualidades e os defeitos do monarca. Sentia-se impressionada com o saber e os bons costumes do homem, cuja discrição o tornava diferente dos demais. A tamanho sentimento correspondia a felicidade de vir a tê-lo como hóspede a breve prazo, na suave suspeita de que entre ambos haveria de florescer, se Deus quisesse, uma relação harmoniosa e saudável. O único temor que ainda assim a perturbava naquela hora era a hipótese de o marido, ao despertar na manhã seguinte do estado de bebedeira em que se deixou adormecer, questioná-la acerca do significado que ela atribuíra à história da terra e da estaca na discussão ao jantar. Mas se porventura ele voltasse no assunto, pensou, haveria de lhe dizer então que reflectisse melhor sobre o episódio e que o tomasse como exemplo para a vida inteira, porque depois do acontecido jamais lhe admitiria novas faltas de respeito à honra própria e à da família donde provinha. De nada, porém, terá valido a Leonor tanta preocupação: por medo ou esquecimento, João Lourenço nunca mais se referiu ao caso.
Quem se referiu a ele, isso sim, foi ela mesma em conversa com Briolanja Mendes na manhã do dia seguinte. Contou tudo. Descreveu os convidados um por um, exceptuando naturalmente o tio e o irmão que a ama já conhecia; relatou o teor das conversas que ouviu, excluindo, porém, as de natureza política ou as que envolviam a apreciação de alguns convidados a certas atitudes do rei; confidenciou, enfim, que um professor de Coimbra, que dentro de alguns dias voltaria a Pombeiro para se instalar lá em casa, tinha passado o tempo a olhar para ela num doce e sedutor enlevo.
Não é perigosa a vinda do professor para aqui, senhora?, perguntou Briolanja, desconfiada com o entusiasmo da jovem. Por que é que há-de ser perigoso?, respondeu Leonor com outra interrogação, como se não tivesse compreendido a extensão das palavras da velha ama. Pode haver problemas... Não há problemas nenhuns. E não os há por duas razões: primeira, porque sou casada e porque a fidelidade que devo ao meu esposo vem do voto de princípio que fiz no dia do meu desgraçado matrimónio; segunda, porque estou a caminho de ser mãe e, embora ninguém o saiba nem se dê por isso ainda, não me sentiria em paz comigo mesma se me per desse nos braços de outro homem. Mas eu não disse que a senhora pode vir a correr o perigo de se ocupar do homem que aí vem; o homem é que pode vir a ficar encantado com a senhora, prosseguiu Briolanja, tentando disfarçar o sentido da sua primeira observação.
Leonor ficou pensativa por alguns instantes, passeou a mão pelo rosto, e acrescentou: isso seria problema dele. O que eu quero e aprecio é ter um homem perto de mim, mesmo que esse homem me não pertença, conforme o caso, que me dê atenção e me trate como uma rainha. Briolanja Mendes sorriu com afecto, aproximou-se da dama, acariciou-lhe os cabelos e, a propósito da última expressão, confidenciou: por acaso sonhei esta noite que a senhora ia ser rainha de um rico trono... A jovem, que até aí mantivera o acostumado ar entristecido, abriu-se de repente num largo sorriso e interrompeu. Ai sim? E como era o meu rei? Um belo homem, respondeu a aia, voltando a alisar-lhe as tranças com os dedos. Um rei de bom porte e de melhores costumes, generoso e destemido. Já falaste com as estrelas por causa disso? Não, senhora, apenas tive um sonho e sobre os sonhos as estrelas nada dizem. Elas só nos sabem dar conselhos». In José Manuel Saraiva, Rosa Brava, Oficina do Livro, 2005, ISBN 978-989-555-113-2.
                                                                                                              
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Rosa Brava. José Manuel Saraiva. «O próprio achacadiço, depois de ingerir dois vasos de chá quente de carqueja, levantou-se aliviado e, com os outros já prontos a partir, gracejou: ainda não foi desta que me fui!»

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«(…) E ainda que o conde de Barcelos e os amigos considerassem o jovem rei muito voluntarioso, nenhum, porém, deixou de fazer veladas críticas ao facto de ele nunca ouvir conselhos de quem quer que fosse, sendo até regra pessoal proceder ao contrário do que lhe era sugerido. Um exemplo desse péssimo hábito foi dado pelo alcaide de Castelo Branco, com o aval de todos, ao lembrar a simpatia com que o rei Fernando observava a entrada diária em Portugal de numerosos estrangeiros, rebeldes e tresloucados, mercadores e criminosos, sem atender ao protesto dos portugueses em geral, e à advertência dos conselheiros em particular, receando que a desajustada transmigração que se verificava viesse a constituir, mais cedo ou mais tarde, um sério perigo para a segurança de vilas e de cidades, de pessoas e de bens. Outro assunto igualmente discutido respeitou à ideia que todos tinham sobre a tentação mal disfarçada de o monarca se intrometer nos negócios políticos de Castela. Era um capricho antigo, um desejo obsessivo que o rei nunca escondeu desde que subira ao trono. Sobre este complexo problema, debatido com extraordinária paixão, a maioria considerava que, a materializar-se tal desígnio, Portugal e os portugueses poderiam vir um dia a pagar caro o preço da aventura. Opinião contrária foi no entanto defendida com fervor por João Afonso Telo e Gonçalo Teles. Até o lente Vicente Esteves, apesar de se mostrar mais interessado nos movimentos de Leonor do que nas discussões ali travadas, se manifestou de acordo com a tese de que o rei devia intervir nas lutas internas do país vizinho antes que alguém, designadamente o bastardo Henrique de Trastâmara, usurpasse o legítimo trono a Pedro de Castela. Só Leonor Teles, que passou o jantar a insinuar-se, a entrar e a sair da sala, passeando-se pela frente e por trás do professor, não participou na conversa. Nem o tio, de resto, lhe consentiria isso, porque o estatuto de uma mulher entre homens, mesmo que fosse nobre e bela, não chegava a tanto.

Ao queixar-se de que não dispunha em Coimbra de um espaço ideal de concentração para escrever um comentário jurídico aos nove primeiros livros do Corpus Juris Civilis e ao Digesto Velho, que lhe fora pedido pelo cónego Gonçalo Migueis, bacharel da Universidade, Vicente Esteves acabaria por ver realizado na mesma hora o desejo de ser convidado a regressar a Pombeiro e lá permanecer por tempo indeterminado. Foi o próprio João Lourenço Cunha que o desafiou a instalar-se em sua casa, considerando que o sossego e os ares da Beira o ajudariam no trabalho e na inspiração. A conversa sobre o assunto decorreu já ao fim do jantar na presença da mulher, que nada disse, e do conde, que de imediato apoiou a ideia sob o argumento de que melhor local do que aquele não havia para o fim pretendido pelo lente. Sensibilizado com o convite, Vicente Esteves curvou-se respeitosamente e, levando a mão ao peito, disse: se a minha presença não for desonrosa para o senhor João Lourenço e sua dilecta esposa, senhora Leonor Teles Menezes, aceitarei com todo o prazer o convite que me fazeis. Só terei de ir a Coimbra buscar o material de trabalho e regressar depois.
Para mim é que é uma honra a presença de tão ilustre lente de Coimbra em minha casa, respondeu o morgado numa linguagem desacertada, sem conseguir disfarçar o excesso de álcool que havia consumido. Leonor Teles, essa, lúcida e serena, apenas acrescentou: por quem sois, senhor.
Nesse momento, e quando já estavam todos prontos a regressar, João Afonso Telo foi vítima de um súbito achaque que só não o fez cair desamparado no lajedo da cozinha por que o sobrinho e o arcebispo de Viseu conseguiram segurar-lhe a tempo o pesado corpo. Arrastado para a sala e observado no mesmo instante pelo médico, concluiu-se que a indisposição terá sido causada pelos excessos do jantar. Nada de cuidados, portanto. O próprio achacadiço, depois de ingerir dois vasos de chá quente de carqueja, levantou-se aliviado e, com os outros já prontos a partir, gracejou: ainda não foi desta que me fui!
Nessa noite, na sua câmara solitária, Leonor Teles demorou a adormecer». In José Manuel Saraiva, Rosa Brava, Oficina do Livro, 2005, ISBN 978-989-555-113-2.
                                                                                                              
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