domingo, 19 de maio de 2019

A Ronda da Noite. Agustina Bessa Luís. «Os Cunhas eram bons tocadores de viola e cavaquinho, sabiam cantigas completamente graciosas e cozinhavam muito bem»

Cortesia de wikipedia e jdact

Dia de Finados
«(…) Mas Maria Rosa Nabasco, a avó de Martinho, limitou-se a dar à luz um rapaz e uma rapariga a quem pôs o nome de Paula, nome que ainda não existia na família e que ela, a avó, achava indispensável numa genealogia católica. S. Paulo era, entre outros, o seu amigo preferido por razões que ela, dificilmente abordava mas que não eram as mais canónicas. Até aos nove anos, Martinho Nabasco esteve convencido que o mundo era partilhado por pessoas inteligentes, inventivas e criadoras. Quando se apercebeu que havia muita gente parada, como a avó Maria Rosa dizia, isso perturbou-o. Numa família em que até os deficientes mentais eram bem servidos de massa cinzenta que dava origem a anedotas, ditos de espírito e calembures geniais, o facto de se perceber que aquilo não era tudo e que podia haver verdadeiras hordas de brutos e de melancólicos activos e passivos, teve grande efeito em Martinho. Até os Cunhas, que eram por tradição criados dos Nabasco, constituíam uma elite de gente apurada de gostos e de entendimento. Os Cunhas eram sete irmãos e uma irmã chamada Ana. Muito feia, ao contrário dos outros, que eram elegantes e bonitos rapazes, ela detinha o espírito mais elevado e a graça correspondente. Nunca casou e Maria Rosa chamava-a muitas vezes para lhe alegrar o coração, que era dado a súbitas apreensões, como o rei David.
Acho que somos parentes. Também eu gosto de música como remédio e não como prazer, dizia. Os Cunhas eram bons tocadores de viola e cavaquinho, sabiam cantigas completamente graciosas e cozinhavam muito bem. Durante duas gerações foram presentes na casa dos Nabasco e contribuíram para a felicidade dos dias que nem sempre eram de aproveitar. Atrás de Maria Rosa e do neto Martinho ia uma herdeira dos Cunhas e que carregava as flores do dia de finados. Simples crisântemos, novelo, brancos e redondos como nuvens brancas e redondas. A Elisa era uma mulher robusta que vestia um uniforme azul-marinho, ou o que ela fazia parecer um uniforme, com colarinho e um gilet cinzento a completar. O efeito era sóbrio mas parecia uma extravagância numa época em que os costumes eram ditados pelos espaços de pronto-a-vestir. Ela orgulhava-se de não se converter aos jeans, se bem que ao preferir as saias de pregas estava a valorizar o porte de matrona. Ainda havemos de ver o dia em que os homens usem saias. São mais cómodas e mais arejadas, dizia. Estabeleciam-se grandes discussões em volta de questões pequenas, e aquilo despertava o espírito e tornava-o incandescente. Na hora perto do jantar, quando se entrava na cozinha para destapar as panelas e provar os molhos, acontecia aquela variada conversa sobre palavras, hábitos e o que os explicava. Martinho já não conhecera a casa da Rua de Belomonte que tinha a cozinha e a sala de jantar no terceiro andar voltado ao rio. Ao que parecia, era uma casa mítica. Às seis horas da tarde abria-se a porta do quintal aos cães e eles subiam pelas escadas como um esquadrão da guarda. Iam para a cozinha, derrubando cadeiras, abanando as caudas como chicotes. Ganindo de alegria. Eram cães de caça; e embora não houvesse mais caçadores em casa, alimentava-se essa tradição com os setters bonitos, cor de fogo cujo pêlo luzia ao lume do fogão de lenha. Porque até muito tarde se cozinhava a lenha e se usava a lenha para os fogões de sala. Ouvia-se o crepitar das achas secas como um ruído de bom augúrio na manhã enevoada. O rio tinha ainda humores de estação, crescia no Inverno e acumulava nas margens laranjas e traves partidas; e algum cabrito morto vinha na corrente, rápido na flor das ondas já invadidas pelo mar aberto. Tudo isso Martinho não tinha conhecido. Nem a mãe dele, Paula, que se distinguia por ser dessas mulheres enclausuradas ainda, e que aprendem equitação para o caso de ir viver em grande estilo com um senhor das lezírias ou com um lorde inglês. Imaginações que se desvaneciam ao primeiro baile de debutantes, já em declínio mas ainda consultoria de casamentos». In Agustina Bessa Luís, A Ronda da Noite, Guimarães Editores, 2006, ISBN 972-665-513-7, Relógio d'Água, 2017, ISBN 978-989-641-811-3.

Cortesia de GuimarãesE/Rd’Água/JDACT