sexta-feira, 24 de maio de 2019

O Último Papa. Luís Miguel Rocha. «Estou sendo mortificado por uma grande tempestade, afirmou para o outro. Sabemos que Deus ouve todas as preces à Sua maneira…»

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Conclave
26 de Agosto de 1978
«(…) Não se encare isso como uma competição, mas um meio para se chegar a um fim; o procedimento criado pelos homens para escolher o mais santo, o interlocutor de Cristo com os fiéis na Terra. Por mais que pareça um pacto político, trata-se de algo espiritual feito de forma política, desde Pedro, apóstolo de Cristo, sepultado algures debaixo desse país sacratíssimo. Os restantes dezanove votos foram dispersos, alguns para os italianos Bertoli e Felici, para o polaco Karol Wojtyla, para o argentino Pironio, o paquistanês Cordeiro e o austríaco Franz Koenig. A luta, se assim se pode dizer sem ferir susceptibilidades, entenda-se como o significado mais puro do termo, ocorreu entre Siri e Luciani, um com vontade de exercer, outro com vontade de fugir antes do término do Conclave. Este último, antes de entrar, dissera aos assistentes, familiares e amigos que, se fosse escolhido, probabilidade muito remota para ele e para todos: basta consultar os livros de apostas para ver que ninguém sabia da existência de um tal cardeal Albino Luciani, de Veneza, diria Peço desculpas, mas recuso. Tratava-se daquele a quem Paulo VI, de visita à Rainha do Adriático, ofertara uma estola e a colocara nos seus ombros, à frente de todos, coisa pouco usual em Sua Santidade, nessa especificamente, que fique bem claro, e que tinha interpretações mais profundas, como o reconhecimento da lealdade do cardeal veneziano, nomeadamente na sua defesa (mais por obrigação que por aprazimento) à Encíclica Humanae Vitae, uma das mais infelizes da história. Coisas antigas que não interessam aqui; ou interessam, já que Paulo VI é um dos principais responsáveis por Albino Luciani ter-se ajoelhado para rezar com medo de ser eleito pelos seus pares e pelo Espírito Santo. Uma coisa é falar quando algo é mera suposição; outra é quando se pode tomar realidade, como era o caso. Votem em Siri, pedia ele ao Criador. Tenho tanto para fazer em Veneza! Se não fosse por Paulo VI ele não estaria ali. Foi quem o fez cardeal. Mas, se pensasse assim, se João XXIII não o tivesse nomeado bispo, também não estaria ali; assim como não estaria se sua mãe, Bortola, não o tivesse dado à luz em Canale d'Agordo, no dia dezassete de Outubro de mil novecentos e doze. São pensamentos que mais valem se afastar, pois tudo é o que tem de ser. O talento estava dentro dele, porque de outra forma o cura da aldeia, Filippo Carli, não o teria incitado a entrar no seminário de Feltre.
A primeira votação fora o prenúncio de que as coisas não seriam tão fáceis como esperava. O despercebimento pelo qual estava habituado a passar malograra de forma incompreensível: como explicar que tivesse vinte e três votos logo de início, dois a menos que Siri e cinco a mais que Pignedoli? São os desígnios do Além que interferem cá e lá. No final, juntaram os votos dos dois escrutínios e colocaram-nos no incinerador. Paulo VI previra todo o Conclave, nada lhe escapara em termos de segurança externa e interna, pois era o papa anterior que ditava as regras para a escolha do seu sucessor; tudo porque, pela primeira vez, proibira os cardeais com mais de oitenta anos de participar do Conclave, e todo o cuidado era pouco; nenhum podia se infiltrar. Caso estranho, pois trata-se de homens espirituais, cristãos, crentes em Deus Pai Todo-Poderoso, mas, acima de tudo, homens, com as limitações físicas que isso acarreta. Contudo, não previra a possibilidade dos seus cardeais morrerem asfixiados; isso quase acontecia, pois ninguém se lembrara de limpar a chaminé. O resultado foi que pouca fumaça negra saiu para o exterior da Capela Sistina, e a maior parte inundou o interior. Se não fossem alguns valentes que se expuseram à excomunhão abrindo as janelas seladas, o Conclave teria terminado ali mesmo. Depois da suplicação, Luciani levantou-se e saiu da cela. Joseph Malula, cardeal do Zaire, cumprimentou-o efusivamente assim que o viu e deu-lhe os parabéns, mas Luciani abanou a cabeça entristecido enquanto se dirigiam para a capela, para proceder à terceira votação.
Estou sendo mortificado por uma grande tempestade, afirmou para o outro. Sabemos que Deus ouve todas as preces à Sua maneira, atende a tudo e a todos com o Seu amor irrestrito, que, como muitos dizem, prevalece sempre, seja qual for a nossa forma de agir, acreditemos ou não Nele; e assim, ao fim da terceira votação, Luciani desgrudou do seu rival, entre aspas; embora não as tenha, nem precise, sabemos bem a vontade que o outro tinha de vencer aquela corrida. Somou sessenta e oito votos contra quinze de Siri. Luciani estava a meros oito votos do Pontificado. Não, por favor, não... Alguns cardeais sentados ao seu lado ouviram o desabafo do amigo. Willebrands tentou acalmá-lo. Coragem. O Senhor dá o fardo, mas também concede a força para carregá-lo. Felici aproximou-se do nervoso Luciani e entregou-lhe um envelope. Uma mensagem para o novo papa, disse; uma frase curiosa para quem sempre havia votado em Siri». In Luís Miguel Rocha, O Último Papa, Saída de Emergência, 2006, ISBN 978-972-883-969-7.

Cortesia SEmergência/JDACT