quarta-feira, 22 de maio de 2019

Caçando Carneiros. Haruki Murakami. «Até chegar ao meu destino, eu já tinha perdido a conta dos maços de cigarro comprados em troca de informações»

Cortesia de wikipedia e jdact

O piquenique das tardes de quarta-feira
«Soube da sua morte por um amigo. Ele viu a notícia quando passava os olhos pelas páginas de um matutino, e a leu lentamente para mim ao telefone. Texto simples. Tipo de artigo em geral delegado a repórteres recém-formados à guisa de treino. No dia tanto do mês tal, um caminhão dirigido por alguém, atropelou outro alguém, em certa esquina. Alguém estava sendo investigado por homicídio involuntário. Parecia um poema curto, desses de primeira página de revista. Onde vai ser o enterro?, perguntei. Não faço ideia, respondeu. Para começo de conversa, ela tinha casa e família? Tinha, é claro. Liguei no mesmo dia para a esquadra de polícia e obtive o seu endereço e o número do telefone. Liguei para o número e informei-me a respeito dos detalhes do enterro. Quase tudo se consegue com um pequeno esforço, já disse alguém.
A sua casa ficava na parte baixa da cidade. Abri um mapa regional de Tóquio e marquei a área com esferográfica vermelha. Típico bairro de cidade baixa. Linhas férreas, de metropolitano e de autocarro entrecruzavam-se como fios de uma teia tecida por aranha desnorteada. Incontáveis ruas e canais atulhavam a área e agarravam-se à crosta terrestre como rugas em casca de melão. No dia do enterro tomei um carro eléctrico em Waseda. Saltei perto do fim da linha e consultei o mapa, que, naquelas condições, me foi quase tão útil quanto o mapa-múndi. Até chegar ao meu destino, eu já tinha perdido a conta dos maços de cigarro comprados em troca de informações.
Era uma casa velha de madeira circundada por uma cerca de tabuinhas marrom. À esquerda do portão havia um jardim minúsculo, de utilidade discutível, e a um canto, abandonado, um velho fogareiro portátil de cerâmica com quase quinze centímetros de água de chuva estagnada. A terra do jardim era preta e húmida. Ela tinha saído de casa aos dezasseis anos. Isso podia explicar o clima melancólico do funeral. Estavam presentes apenas os familiares, gente idosa na sua maioria. A cerimónia foi presidida pelo irmão mais velho, ou quem sabe cunhado, um homem aparentando pouco mais de trinta anos. O pai devia andar pela casa dos cinquenta. Era miúdo e usava faixa de luto na manga do casaco preto. Em pé, ao lado do portão, manteve-se quase imóvel durante todo o tempo. O seu aspecto lembrava asfalto depois que a água da enchente escoa.

Conheci-a no Outono de 1969. Eu tinha vinte anos na época, e ela, dezassete. Havia uma pequena cafeteria perto da faculdade onde eu costumava reunir-me com colegas. Não era grande coisa de estabelecimento, mas ali V. podia sempre tomar um café horroroso ao som de hard rock. Ela se sentava sempre no mesmo lugar, cotovelos fincados na mesa, absorta na leitura de um livro qualquer. Usava óculos que lembravam aparelho ortodóntico e tinha mãos esqueléticas, mas conseguia ser de algum modo atraente. O seu café estava sempre frio, e o cinzeiro, sempre cheio de pontas de cigarro. As únicas variantes eram os livros. Ora Mickey Spillane, ora Kenzaburo Oe, ora Allen Ginsberg. Não lhe importavam autores ou temas, bastava-lhe apenas que fossem livros, quase sempre emprestados de estudantes que frequentavam o local. Ela os lia vorazmente de cabo-a-rabo, como se roesse uma espiga de milho. Naquela época as pessoas emprestavam com prazer, de modo que nunca lhe faltou material para leitura. Eram tempos também do The Doors, dos Stones, dos Byrds, do Deep Purple e dos Moody Blues. Havia certa dose de tensão e instabilidade no ar, dando a impressão de que um bom pontapé seria capaz de deitar abaixo quase tudo. Passávamos os dias bebendo uísque barato, praticando um sexo chocho, discutindo sem chegar a conclusão alguma ou emprestando livros uns aos outros. Enquanto isso, a cortina caía rangendo sobre a década de sessenta, de incómoda memória.

Esqueci o nome dela. Posso procurar o recorte do jornal e verificar, mas nome é o que menos importa agora. Eu o esqueci. Só isso. Uma vez ou outra acontece de me reunir com velhos amigos e de, por acaso, ser ela o assunto da conversa. Ninguém se lembra do nome dela. Dizem, naqueles velhos tempos tinha uma garota que dormia com qualquer um, lembra, como era mesmo o nome dela?, esqueci completamente, eu mesmo dormi com ela algumas vezes, por onde andará agora, ia ser engraçado topar com ela de repente no meio da rua. Era uma vez uma garota que dormia com qualquer um. Eis o seu nome». In Haruki Murakami, Caçando Carneiros, 1982, Alfaguara, 978-857-962-308-0, Casa das Letras, 2007, ISBN 978-972-461-715-2.

Cortesia de Alfaguara/CasadasLetras/JDACT