segunda-feira, 6 de maio de 2019

A Filha do Papa. Luís Miguel Rocha. «Ele do lado esquerdo, ela do direito. Foi assim, estão a ver? Há sete séculos, neste preciso local, nestas posições. Foi aqui que casaram… Romeu e Julieta»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Matteo irritava-se quando pensava nos pais. Quem seriam? O que lhes acontecera? Por onde andariam? Porque o abandonaram? As perguntas naturais de um jovem adulto à procura da sua história. Sentia que eram um insulto à memória de Úrsula, que fizera por ele mais do que dezasseis pais funcionais, estáveis e afectuosos, mas não o conseguia evitar. Alguém o trouxera ao mundo e o largara. Ironicamente, Matteo ganhava a vida a contar a história dos outros, embelezada pela prosa e pelos bardos, pelos poetas, pelos séculos e pelos milénios. Para ele o mundo estava dividido entre os patifes e os simplórios, e os primeiros eram muito mais numerosos que os segundos. Como a mãe, Úrsula, só houvera uma. As suas visitas guiadas à cidade de Verona tornaram-se famosas. Das nove da manhã até às seis da tarde, o autocarro turístico de Matteo andava apinhado maioritariamente de japoneses, alemães, ingleses, dinamarqueses e alguns compatriotas. Os grupos eram, na sua maioria, femininos, o que não era surpreendente. Insólito era ver o mesmo homem, solitário, repetir a visita pelo terceiro dia consecutivo. Quando isso acontecia só podia significar uma coisa… Era gay.
O dia começava com uma entrada a matar. Guias, panfletos, mapas, tudo era recolhido e guardado. Tinham apenas duas obrigações naquela viagem, e apenas duas: a de abrir bem os olhos e a de se concentrarem na voz dele. O resto era emoção pura, era deixarem levar-se pela narrativa. Começavam por Castelvecchio, o velho castelo gótico que defendia a cidade na Idade Média, com as suas sete torres e o fosso que outrora estava cheio com águas do Adige, o rio que banhava a cidade, mas que agora estava seco. Para o voltar a imaginar cheio era necessário ouvir a voz teatral de Matteo que, por vezes, se colocava atrás de alguma turista mais absorta, numa das rampas ou na ponte que ligava ao castelo, e lhe propunha o exercício de recuar alguns séculos. Depois visitavam a Arena, um anfiteatro romano do século I, que apesar de se estar a desfazer ainda funcionava. Não havia muitos exemplares daqueles que tivessem resistido ao tempo e aos homens.
Matteo não se limitava a contar as histórias nem as curiosidades que deixavam os turistas deslumbrados e aprisionados à sua voz. Dava sugestões para quando ele não estivesse ali, para quando deambulassem pela cidade sozinhos ou com a sua cara-metade. Dizia-lhes que atravessassem a ponte Pietra e subissem ao castelo de San Pietro. Dali, gratuitamente, podiam assistir a um pôr-do-sol mágico, mesmo em dias de frio como aquele. Deviam também subir a torre Lamberti, a maior da cidade, para uma vista panorâmica invejável. Ainda de manhã, levava-os ao Duomo, claro, depois a Sant’Anastacia e, já que ali estavam, a uma pequena capela, por vezes esquecida, que se chamava San Giorgetta. Depois da história e da religião vinha o amor, da parte da tarde. Primeiro, nos arredores da cidade, a Basílica de San Zeno e a sua fachada romanesca em travertino. Centro de peregrinações durante séculos, era o local onde o santo patrono da cidade, Zeno, repousava para a eternidade. Mas não era essa a razão por que os levava lá. Ninguém queria saber desse San Zeno. Baixavam à cripta, onde estava o sarcófago do santo, o rosto coberto com uma máscara de prata. Tinha uma nave e oito corredores com quarenta e nove colunas. A atmosfera respirava vida e história e mais qualquer coisa, inidentificável. Uma sensação de mistério pairava no ar. Havia bancos de madeira em dois corredores exteriores à pequena nave central onde Matteo pedia que se sentassem. A seguir, caminhava para o altar, lentamente, alongando o suspense, e colocava-se em frente a ele, de costas para o sarcófago.
Foi aqui, limitava-se a dizer com um timbre misterioso como se estivesse a contar um segredo. Os turistas olhavam para ele pasmados. Foi aqui o quê? O turista repetente já sabia o que tinha acontecido naquele espaço mas não ousava perturbar o silêncio sagrado dos mistérios e estragar o ambiente. Era engraçado preservar aquela sensação de desconhecimento por mais alguns segundos. Matteo aproximava-se da primeira fila de bancos e olhava para o tecto, a pouco mais de meio metro. Foi aqui. Exactamente neste local onde me encontro. E deixava o silêncio espraiar-se mais uns segundos inofensivos. Depois pedia a um casal da fila da frente para se levantar e se colocar à frente dele…, como dois noivos. Ele do lado esquerdo, ela do direito. Foi assim, estão a ver? Há sete séculos, neste preciso local, nestas posições. Foi aqui que casaram… Romeu e Julieta». In Luís Miguel Rocha, A Filha do Papa, Porto Editora, 2013, ISBN 978-972-004-411-2.

Cortesia de PEditora/JDACT