domingo, 12 de maio de 2019

A Mentira Sagrada. Luís Miguel Rocha. «Eu pergunto e o senhor responde. Qualquer alteração a este princípio terá consequências, entendido?, bradou-lhe agressor»

Cortesia de wikipedia e jdact

Vaticano. 19 de Abril de 2005
«(…) Um baque violento empurrou a porta para trás. Alguém abrira com pontapé juntando mais essa amolgadela às mazelas incontáveis. A lâmpada deixou de iluminar nesse preciso momento como um protesto solidário. Raios, praguejou o agressor, ligando e desligando o interruptor, colado na parede ao lado da porta, com impaciência. Às tantas, a caprichosa lâmpada condescendeu às intenções do homem. Estava a ver que não, rezingou. Entrou na sala numa afirmação de pujança. Eu quero, posso e mando. Atitudes muito acertadas, pois desconhecia-se alguém que estivesse a controlar os passos dele. Acercou-se da cadeira, pegou nas costas e ergueu-a uns centímetros. Depois deixou que as pernas da cadeira batessem no chão em uníssono. Aguentaria. Ao lado da cadeira estava um pequeno saco negro para o qual o agressor se limitou a olhar. Tudo pronto. Saiu durante alguns minutos e deixou a porta aberta. A lâmpada ameaçou extinguir-se mas quando o homem regressou iluminava a cadeira como era o seu dever. Arrastava alguém que parecia inanimado e sentou-o na cadeira. Era um homem de idade, bastante maltratado. A princípio foi difícil mantê-lo sentado, pois nem sequer tinha forças para se segurar e tendia a cair para a frente. O agressor segurava-o com uma mão na testa. Tinha tempo. À medida que o idoso recuperava a consciência ia também conseguindo equilibrar-se melhor. Estava em muito mau estado.
Uma venda impedia-o de ver o local bem como o carrasco. Sangue seco pintava-lhe a comissura dos lábios, uma réstia de agressões recentes. Um hematoma marcava o pescoço e indiciava asfixiamento. Este velhote fora torturado metódica e barbaramente. Tossiu um pouco para desobstruir as vias respiratórias mas até isso lhe custava. Estava dorido um pouco pelo corpo todo. O agressor encarou a tosse como um regresso à consciência. Estava pronto. Debruçou-se sobre o saco e abriu-o. Quem está aí?, questionou o velho com uma voz alvoroçada. Porque me estão a fazer isto? Fora tão ingénuo. Atendera a um pedido de um amigo que conhecera que precisava da tradução de um pergaminho. Na manhã seguinte enfiara-se num avião e, quando aterrou no local indicado, vira estrelas em vez de caracteres impressos num pergaminho amigo. Uma pancada forte na nuca que o deitou por terra. Nunca chegou a ver quem o atacou. Vendaram-no e continuaram a maltrata-lo. Não saberia dizer quantos eram os vândalos, podia até ser apenas um, nem qual o motivo. Oferecera dinheiro, o pouco que tinha, mas aparentemente não era dinheiro o que queriam. No meio do desespero tentou manter a serenidade. As faculdades mentais eram a única coisa que lhe restava, mas até isso perdeu momentaneamente com uma pancada mais forte. Acordou sentado na cadeira e pressentiu alguém a remexer em qualquer coisa junto aos seus pés.
Eu não tenho nada que possa ser de interesse. Sou professor, levo uma vida honesta. Tenham dó. O agressor levantou-se. Na mão trazia uma seringa e um frasco. Espetou a agulha no topo plástico do frasco e sugou o líquido incolor. Retirou o ar pressionando o manipulo até sair uma gota pela ponta da agulha. Deixou cair o frasco que se estilhaçou em mil pedaços de vidro. Fitou o velho vendado que se calou como que prenunciando o pior. As regras são simples. Eu pergunto e o senhor responde. Qualquer alteração a este princípio terá consequências, entendido?, bradou-lhe agressor.

Dois livros publicados?, perguntou-lhe Francesco, enrolado nos lençóis da cama da suite do oitavo andar do Grand Hotel Palatino, em Roma. É. Agora deixam qualquer um publicar livros, brincou ela retirando importância à pergunta. Como é que arranjaste informações tão importantes sobre o Vaticano?, questionou o italiano a olhar o tecto branco. Tens de conhecer alguém com excelentes relações lá dentro. Sarah pensou nos dois anos anteriores e em como haviam sido demasiado intensos. Descobrira coisas que nunca imaginara sobre assuntos que, até essa altura, não lhe despertavam o mínimo interesse. Podia considerar-se douta sobre assuntos do Vaticano, versada em João Paulo I e II, Albino Luciani e Karol Wojtyla, sem que tivesse levantado um dedo para que isso acontecesse». In Luís Miguel Rocha, A Mentira Sagrada, Porto Editora, 2011, ISBN 978-972-004-325-2.

Cortesia de PEditora/JDACT