sexta-feira, 24 de maio de 2019

O Último Papa. Luís Miguel Rocha. «Já havia muito, sabia que uma obra de responsabilidade o esperava, e assim foi: um telefonema no meio da noite para a Rua Chmielna, seis anos atrás…»

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Anno Domini MMVI
«(…) Não me surpreende. Existem homens com percepções extra-sensoriais muito fortes. Espera mais alguma coisa? Pablo faz o sinal-da-cruz e se levanta, fitando sem temor os olhos negros do homem; ou assim parece. Meu futuro a Deus pertence, assim como o seu e o de todos. O que é meu está guardado, não se preocupe. Não me veio dar nada que não fosse meu por direito. Ou tirar. Isso depende do ponto de vista de cada um. Onde estão? Felipe não lhe disse onde estavam? Infelizmente, não o encontrei com vida. Teve o atrevimento de não esperar que eu a tirasse por ele. Bem, não se pode ganhar sempre... Vou perguntar uma segunda vez. Onde estão? Buenos Aires, Nova York, Paris, Madrid, Varsóvia, Genebra..., há tantos locais por esse mundo afora! Ouve-se um estampido, e o padre cai sobre os bancos, tirando alguns do lugar e fazendo tombar outros. O homem com sotaque do leste que víramos em Roma aproxima-se de Pablo, que tem o lado direito da barriga ensopado de sangue, como se nota pela mão vermelha do padre que aperta a ferida. Deus não está aqui para salvá-lo, caro señor. É melhor dizer onde estão. Deus já me salvou. Nunca os encontrará! O homem aninha-se sobre Pablo e começa a falar-lhe ao pé do ouvido, como um namorado fazendo confidências. Sabe, padre, os ajudantes servem exactamente para isso: para nos ajudar nos afazeres e a encontrar coisas. Especialmente os mais nervosos e sem experiência. O senhor nem imagina a quantidade de informação que eles guardam. Não os encontrei, e sei que não me dirá onde estão... Mas uma pista aqui, outra ali..., uma carta, um bilhete, um e-mail, um retrato...
Pablo está ferido pelo tiro e pelas palavras. Os dados estão lançados, ou as cartas do baralho, distribuídas, mas delas não fará parte este padre, que sai de jogo bem cedo, é pena; porém há sempre a esperança de que o homem com a serpente tatuada no pulso saiba bem menos do que diz, acabe-se com isso, e cada um que siga a sua vida, dependendo do ponto de vista. Estou certo de que Marius Ferris será mais cooperativo. Eu lhe darei cumprimentos seus, diz o homem, exibindo as costas de um retrato para o clérigo. E dispara um segundo tiro, desta vez na cabeça. Em seguida, caminha calmamente até ao centro da nave, faz o sinal-da-cruz e sai por uma porta lateral.

É sempre motivo de exultação voltar à terra natal nem que seja por 19 dias ou horas, aspirar o odor marítimo do Báltico que inunda a cidade onde Deus quis que nascesse, como uma predicção, uma mensagem nítida da missão que lhe fora confiada por um homem maior. Caminha pelas ruas familiares de Gdansk, o coração económico da Polónia, o berço da solidariedade para o mundo, a voz da luta pelos direitos dos trabalhadores e dos cidadãos. Já havia muito, sabia que uma obra de responsabilidade o esperava, e assim foi: um telefonema no meio da noite para a Rua Chmielna, seis anos atrás, mas poderia ter sido um telegrama, uma palavra ou onda telepática; a semente estava dentro do seu corpo, e a sentia. Agora, ao passar pelo pequeno apartamento onde passou a infância e o início da idade adulta, recorda a mãe e o pai que faleceram na juventude e o deixaram sozinho, por vontade divina, para completar o círculo de perfeição que ele via tão admiravelmente. O telefonema não acontece por acaso, como nada acontece, mas estava preparado para ele. É a primeira vez em seis anos que retoma a Gdansk, que revê o rio Motlawa. O Mestre ordenara que esperasse pela próxima fase do plano ali, e o Mestre sabe sempre o que faz. É um iluminado, um santo que protege na terra os interesses maiores da Trindade Divina. É quase meio-dia e percorre a rua Miesczanska em direcção à Chlebnicka, vira à direita e depois à esquerda para a Dlugie Pobrzeze. Na Ducha, vai almoçar no restaurante Gdanska. Nunca pisara naquele restaurante antes, mas era como se o conhecesse desde sempre. A suuptuosidade da decoração fazia lembrar mais a sala de jantar de um salão real do que a de um restaurante. Na zdrowie, cumprimenta o garçom, impecavelmente trajado. Dzierí dobry, responde ele educadamente. Havia muito não cumprimentava as pessoas na língua materna, como também não era cumprimentado, lembrava bem. Pede a especialidade da casa, para dois, e pergunta se tem vinho tinto». In Luís Miguel Rocha, O Último Papa, Saída de Emergência, 2006, ISBN 978-972-883-969-7.

Cortesia SEmergência/JDACT