quarta-feira, 8 de maio de 2019

Bala Santa. Luís Miguel Rocha. «Abriu os olhos ainda humedecidos e benzeu-se antes de virar as costas e sair da cripta. E pelo que mandei fazer»

Cortesia de wikipedia e jdact

Wojtyla. 13 de Maio de 1981
«(…) Nada disso ofuscava a concentração do bispo, que continuava o seu caminho na direcção do altar. Sua Eminência necessita de alguma coisa?, pergunta um dos redentoristas com amável simpatia, ainda que se tenha colocado no caminho do prelado com alguma rispidez, o que não deve ser interpretado como rudeza, mas antes como vontade de servir. O purpurado pára por momentos ao ver o seu caminho impedido e, como que voltasse a reflectir, contornou o irmão responsável pelas confissões daquele dia. Saia-me da frente, rosnou, só faltando empurrá-lo, coisa que provavelmente faria se não o tivesse já contornado. Só faltava sair-me um dominicano ao caminho. O objectivo do seu trajecto revelou-se ao fim de alguns metros, junto ao baldaquino de bronze, quando desceu as escadas que levavam à cripta.
A cripta de Belém, também chamada da natividade, é um lugar santo com um grande significado religioso e histórico. Alberga, segundo parece, relíquias da Terra Santa, entre as quais figura nas tábuas que pertenceram ao berço de madeira em que Jesus Cristo dormiu aquando do seu nascimento. Tudo isso pode ser visto aqui nesta cripta onde Inácio de Loiola deu a sua primeira missa no dia 25 de Dezembro de 1538, antes de fundar a célebre Companhia de Jesus, que ainda hoje coabita entre nós. O purpurado desceu ao santificado lugar, ajoelhou-se e benzeu-se. Perdoe-me, Pai, pois eu pequei, suplicou baixando a cabeça em gesto de submissão e genuíno arrependimento. A carne é fraca, sou um fraco. O demónio tenta-me diariamente e não tenho forças para resistir. As lágrimas jorram dos olhos como água a abrir caminho pelos trilhos da nascente.
Não é pouco o sofrimento do purpurado nem a carga que lhe sopesa os ombros, fazendo-o vergar e implorar a Deus Pai Todo-Poderoso pela sagrada misericórdia divina. Quem nunca pecou que atire a primeira pedra sobre este bispo carpidor da Igreja Católica Romana, pois se nem boa parte dos santos conseguiu passar a sua vida imune à sagacidade do mal, ainda que lhe tenha resistido mais que os comuns mortais. Nesta cripta estão enterrados papas e outros doutos da Igreja a quem o bispo vem pedir clemência e força, já que o peso é demasiado para um homem só. Ajuda-me, meu São Jerónimo, intercede por mim junto do Deus Menino, suplica o purpurado cobrando favores ao santo ali sepultado, pois um bispo deve ser atendido antes dos outros fiéis ou não fosse esse um dos privilégios de servir a Deus. Por tudo o que é mais sagrado, tira-me este peso dos ombros. Deixa-me respirar. Levantou-se e retirou uma chave que trazia pendurada ao pescoço numa volta de ouro. Colocou-a na fechadura da porta e rodou. Apesar de não ser uma porta que se abrisse com frequência, não revelou qualquer sinal da prisão dos tempos. Talvez porque o ouro se mantivesse incorruptível ao longo dos séculos, superando as animosidades do clima, da História e da loucura dos homens.
As entranhas seculares rodaram os mecanismos interligados que abriram a arca. De dentro da batina, o prelado retirou um sobrescrito amarelo e grande que depôs no interior. A expressão pensativa durou uns instantes, o suor misturava-se com as lágrimas: o mesmo sal para diferentes sensações. As várias manifestações do corpo na sua lógica reaccional. Fechou os olhos ao mesmo tempo que rodou a chave, fechando a arca que guardaria o segredo até quando a História decidisse julgá-lo, noutra época, nem melhor nem pior, mas diferente desta, longínqua, quando já não restasse ninguém relacionado com tal segredo no capítulo terreno. Mais calmo, recuou alguns passos de cabeça baixa, em atitude submissa, mas nunca humilde. Meu Pai, perdoa-me por tudo o que fiz, disse em voz grave e pesarosa. Abriu os olhos ainda humedecidos e benzeu-se antes de virar as costas e sair da cripta. E pelo que mandei fazer.

Mais ou menos à mesma hora a que o bispo saía da Basílica di Santa Maria Maggiore, onde expiou os pecados que lhe massacravam a consciência, João Paulo, o segundo Pastor dos Pastores com esse nome, fazia a sua aparição na Praça de São Pedro perante as vinte mil pessoas presentes. Um corredor, aberto pelas forças de segurança por entre os fiéis, indicava o caminho que o carro, descapotável, comprado propositadamente para aquelas ocasiões, tomaria. A multidão aclamava o Santo Padre, criando um clamor ensurdecedor que se espalhava pela praça, vias e ruelas adjacentes. Era o papa, o mais santo entre os santos, a voz de Deus na Terra. Quantos não pagariam por um momento destes, de o poder ver ali, a dois ou três passos, a acenar, a sorrir, grato pela visita e dedicação deles…, grato pela fé?» In Luís Miguel Rocha, Bala Santa, Cavalo de Ferro Editores, Paralelo 40, Lisboa, 2007, ISBN 978-989-813-400-4.

Cortesia de CFerro/JDACT