segunda-feira, 6 de maio de 2019

A Mentira Sagrada. Luís Miguel Rocha. «Delibero conceder a Ben Isaac, natural de Israel, residente na cidade de Londres, a concessão sobre os pergaminhos encontrados no Vale de Qumran…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Vaticano. 19 de Abril de 2005
«(…) O tempo fora mais benevolente para aquele pedaço de informação do que para este pedaço de corpo velho..., ou assim pensava Ben Isaac, amargurado. Que sabia ele da jornada daquele documento? Por que mãos andara, por que buracos se enfiara, com que modos fora tratado ao longo dos anos, dos séculos, dos milénios até este dia 8 de Novembro, até ao dia 8 de Novembro de 1946 em que a sua expedição o encontrara, juntamente com outras tantas coisas em Qumran? Que sabia ele disso, a não ser que se encontrava na sua posse há mais de sessenta anos, cinquenta dos quais naquele preciso local? Datava do século I d. C., segundo os métodos científicos de datação mais avançados que o dinheiro podia comprar e, nesse departamento, Ben Isaac não se podia queixar. O seu dinheiro podia comprar tudo o que tivesse um preço. Era pequeno em relação aos outros documentos dos restantes mostradores. Estava comido dos lados e chamuscado do lado superior direito. Repousara perto do fogo em alguma noite gelada, ou alguém o abeirara do lume com intenções traiçoeiras. O certo é que, independente da razão, o brasido não chegou a prejudicar o texto que Ben Isaac conhecia de cor e citava algumas vezes para si próprio, na língua em que fora escrito, morta para quase todos, nas noites em que esperava pelo sono e que não eram poucas.

Roma, Ano Quarto da era de Cláudio, Yeshua Ben Joseph, imigrante da Galileia, anteriormente julgado e absolvido por Pôncio Pilatos, que se confirma ser o proprietário de uma parcela de terreno fora das muralhas da cidade.

Não conseguia deixar de se emocionar sempre que via aquele pedaço de pergaminho, com aquelas letras escritas pela mão de algum tabelião romano sobre um homem que mudara o curso da história de biliões e biliões de pessoas ao longo dos séculos. Jesus, o próprio, filho de José, neto de Jacob, herdeiro do grande David, do sábio Salomão, do patriarca Abraão, até onde registavam os epítomes históricos, os antigos e os modernos, e que mencionavam estas pessoas de estirpe.
Premiu um pequeno botão verde, abaixo do vidro, que emitiu um bip antes de deslizar e permitir que não houvesse entraves entre Ben Isaac e o documento. Pegou nele com muito cuidado, como se de um recém-nascido se tratasse, e chegou-o junto aos óculos. Que emoção. Tocar num objecto que o próprio Jesus poderia ter tocado, dois milénios antes. Não havia palavras. E, no entanto, Bem Isaac era um privilegiado. Podia fazê-lo sempre que o entendesse, assim fosse a sua vontade. Se o Papa tivesse conseguido meter as mãos naquele documento, qualquer Papa, depressa o rotularia de sacrílego. Bem quiseram. Não o permitiria. Jamais. Comprovara que era autêntico, sentia-o como verdadeiro. Tornou a colocar o pergaminho no seu lugar e deu ordem ao vidro para deslizar de regresso ao seu posto de protecção. Passou ao mostrador do meio que revelava um pergaminho bastante maior que o anterior degradado em algumas partes, de tal maneira que não deixava perceber os caracteres escritos. Mas o essencial conseguia ler-se, a mensagem principal que lembrava todos os dias com um arrepio frio na espinha e não tinha coragem de a proclamar em voz alta. A este não quis tocar, nunca quis. Era anterior ao outro pergaminho em alguns anos, mas mais importante. Não se tratava de uma simples autorização legal, mas de um evangelho que muito poucos conheciam a existência. Somente ele e uma mão-cheia de estudiosos que teve de contratar para interpretá-lo, sob um contrato rígido que incluía um pacto de silêncio. Nisso, Ben Isaac era um falcão. Não facilitava um milímetro.
O último mostruário alojava dois documentos em papel timbrado, com armas pontifícias na parte superior da folha, a dominar o centro. Ambos os textos estavam em inglês e podiam ler-se facilmente.

Aos 8 de Novembro de 1960, na Cidade do Vaticano. Delibero conceder a Ben Isaac, natural de Israel, residente na cidade de Londres, a concessão sobre os pergaminhos encontrados no Vale de Qumran por um período de 25 anos. Durante a vigência deste acordo nenhuma das partes tornará público os achados referidos. A Santa Sé não tentará, por via alguma, recuperar o espólio que considera seu por direito. Findo o prazo definido caberá ao meu sucessor e aos sucessores de Bem Isaac alcançar novo acordo.
Que Deus nos acompanhe.
Johannes P.P. XXIII
Ben Isaac
(E mais três assinaturas ilegíveis)

In Luís Miguel Rocha, A Mentira Sagrada, Porto Editora, 2011, ISBN 978-972-004-325-2.

Cortesia de PEditora/JDACT