sexta-feira, 31 de julho de 2020

No 31. A Conspiração do Graal. Lynn Sholes e Joe Moore. «O homem usava uma camisa escura com marcas pronunciadas de suor em baixo dos braços. O mau cheiro do corpo dele parecia mais intenso no ar frio»

jdact e cortesia de wikipedia

 «O príncipe das trevas é um cavalheiro». In Shakespeare

 Abandonada. Ninive, norte do Iraque

«(…) Ela fez uma panorâmica do local. Não se viam evidências de armas, nem de nada que lembrasse uma instalação militar. O lugar mais parecia um local de escavação arqueológica. Cestos, barracas provisórias, mesas, pilhas de dejetos. Seria uma escavação arqueológica? Cotten podia jurar que se encontrava em algum lugar próximo às ruínas de antigas edificações assírias espalhadas por toda a região. Diversos caminhões antigos agrupavam-se nas vizinhanças de uma estrutura de pedra parcialmente desmoronada. Um punhado de homens movimentava-se em actividade frenética.  Essa poderia ser a oportunidade de conseguir uma boleia segura para a fronteira, pensou. Mas então hesitou, imaginando se deveria aproveitar a oportunidade. Finalmente, guardou a câmera e se encaminhou na direção das luzes. Próximo ao local, viu homens andando de um lado para outro, carregando equipamentos e engradados nos caminhões. Os confrontos esporádicos entre os militares iraquianos e os cada vez mais ousados rebeldes curdos apoiados pelos americanos provavelmente haviam tornado a região perigosa demais para uma escavação arqueológica. Ela se esforçou para ouvir as vozes dos homens. Turcos! Não iraquianos. Aliviada, Cotten entrou no acampamento e se aproximou de um dos homens. Com licença!, chamou.

O homem usava uma camisa escura com marcas pronunciadas de suor em baixo dos braços. O mau cheiro do corpo dele parecia mais intenso no ar frio. Ele a contemplou com um olhar intenso, como se imaginasse de onde teria surgido. Não inglês, disse, pegando um engradado de uma esteira e atirando-o na caçamba do caminhão. Se ela não se curvasse para trás, teria sido atingida de raspão pela pesada carga. Cotten tentou parar outro homem, que se desviou dela e lançou-lhe um olhar irritado. Alguém a tocou no ombro e ela fez meia-volta. Um homem baixo e atarracado fitava-a de perto. Americana?, indagou ele. Sim. Turco, informou ele e sorriu, revelando uma boca cheia de dentes sujos sob um bigode que lhe recobria todo o lábio superior como uma tenda. Preciso de uma carona, declarou ela, apontando para o norte. Ele virou a cabeça em direção às ruínas. Vá falar com o doutor Archer. Gabriel Archer. Alguém gritou e o turco, inclinando a cabeça de maneira educada, afastou-se apressado. Um pequeno grupo lotava um dos caminhões. O motor foi accionado, tossiu e ganhou vida, e o caminhão se dirigiu para a estrada. Ainda restavam dois outros caminhões no acampamento, mas estavam sendo carregados com pressa. Não lhe restava muito tempo para encontrar aquele doutor Archer e implorar uma carona.

Sob a luz da Lua, ela localizou a entrada da estrutura de pedra. As paredes eram sustentadas por andaimes de madeira e, para entrar, ela precisou se encolher em baixo de uma arcada baixa. Logo à frente, estendia-se uma fieira de lâmpadas penduradas no alto da entrada e ao longo da passagem. Ela seguiu pela passagem até que terminasse num conjunto de degraus levando ao subterrâneo. Cestos de areia se empilhavam nas vizinhanças, esperando para ser alçados para fora e esvaziados em peneiras. Um gerador a gás trepidava, fornecendo energia para a fieira de lâmpadas que se estendia até dentro do buraco. Ela se inclinou sobre o alto dos degraus e chamou: alô... Archer? Não houve resposta e ela chamou mais alto. Doutor Archer? A distância, ouviu o ruído do motor a diesel de outro caminhão entrar em funcionamento. Só restava um caminhão agora. Cotten começou a descer os degraus. O ar gelado cheirava a coisa velha como num mausoléu. Ela havia estado uma única vez num deles, mas esse tipo de humidade diferente, com um cheiro impregnado de terra e rocha, era inconfundível. Muito embora fosse criança na época, lembrava-se do enterro do pai: o perfume dolorosamente doce das flores, o odor estranhamente ácido das substâncias químicas e o cheiro frio, petrificado, da escavação do túmulo. Os degraus terminavam num salão pequeno. Ela o atravessou e caminhou por um túnel estreito que levava a uma câmara maior. Lá, avistou dois homens. Um era ligeiramente curvo e grisalho, vestido com uma camisa caqui empoeirada e calça jeans desbotada. Ele devia ser Archer, pensou, porque o outro homem tinha pele morena e usava um traje característico de árabe». In Lynn Sholes e Joe Moore, A Conspiração do Graal, 2005, Clube do Autor, 2020, ISBN 978-989-724-534-3.

Cortesia de CdoAutor/JDACT

No 31. O Projecto Hades. Lynn Sholes e Joe Moore. «Uma única alma compartilhava sua linhagem sanguínea, mas não a sua danação»

Cortesia de wikipedia e jdact 

«Depois de perder a grande Batalha do Céu, Lúcifer, o Filho do Amanhecer, e os seus anjos rebeldes foram expulsos do Paraíso, proscritos por toda a eternidade para o mundo das trevas. Obcecado pelo ódio e o desejo de vingança, Lúcifer, que passou a ser conhecido como Satã, maquinou o seu primeiro acto de vingança contra Deus, a tentação de Adão e Eva. Vendo que o Homem era vulnerável, e munido com o conhecimento de que todos os humanos podiam ser tentados, Satã deu início a uma guerra para impedir que as almas entrassem no Reino do Céu. A cada Era do Homem, ele inventava métodos cada vez mais elaborados para induzir a ingénua psique humana a repetir o pecado original de Adão. Para tanto, a Fraternidade dos Caídos de Satã e os seus descendentes, os Nephilim, varreram a Terra em busca de presas, aumentando a sua lista cada vez mais extensa de almas para sempre condenadas às mesmas trevas nas quais o Mal prosperava. Uma única alma compartilhava sua linhagem sanguínea, mas não a sua danação. Sozinha, ela impedia Satã de alcançar o seu derradeiro objectivo: arrebanhar todas as almas da Terra para o seu Império das Trevas. Ele tinha a capacidade de tentar o Homem, mas ela tinha a força de vontade para detê-lo.

Ela era Cotten Stone, a filha do único Anjo Caído perdoado. Deus fizera uma aliança com o pai dela, Furmiel, o Anjo da Décima Primeira Hora. Por ele ter-se arrependido, Deus concedeu a Furmiel a mortalidade e ele teve duas filhas, gémeas. Uma vez que Furmiel não poderia jamais retornar ao Paraíso, Deus levou uma das filhas recém-nascidas para ocupar o lugar do pai no Céu, mas a segunda filha teria de viver na Terra. Assim, ela foi convocada por Deus para lutar em Seu nome. Cotten Stone descobrira seu legado ao ficar frente a frente com o Filho do Amanhecer. O ódio que ele nutria por ela aumentava a cada confronto. Ela impedira o plano dele de realizar um Segundo Advento profano, e ao compreender que Deus dera o livre-arbítrio ao Homem, a capacidade de criar a sua própria realidade, ela frustrara a tentativa de Lúcifer de levar o Homem a cometer o pecado supremo contra Deus, o suicídio. Ao decifrar uma mensagem inscrita pela mão de Deus sobre uma antiga placa de cristal, ela conduziu os que escolheram viver uma vida pautada no bem para um novo mundo de paz e alegria. Num gesto de abnegação, Cotten Stone então retornou ao velho mundo para continuar a lutar contra o seu inimigo eterno, um mundo onde o bem e o mal estariam sempre em guerra. A cada nova batalha que travava, o Fim dos Tempos ficava cada vez mais próximo. Agora, formavam-se dois exércitos: o Rubi, liderado pelo Grande Impostor; e o Índigo, liderado pela filha de um anjo. Muito em breve, uma nova batalha contra as Forças do Mal seria deflagrada e Cotten Stone seria de novo posta à prova». In Lynn Sholes e Joe Moore, O Projecto Hades, 2007, Publicações Europa-América, 2008, ISBN 978-972-105-888-0. 

Cortesia de PEAmérica/JDACT

quinta-feira, 30 de julho de 2020

O Último Segredo. Lynn Sholes e Joe Moore. «O rosto dela empalideceu quando se voltou para encarar os passageiros. O homem ajeitou os óculos na ponte do nariz e começou a se levantar. Por favor, fique sentado, ordenou ela»

Cortesia de wikipedia e jdact 

Abatido

«O passageiro da poltrona 2-K da classe executiva do airbus A-340 da Virgin Atlantic olhava para a porta da cabine de comando através das grossas lentes dos óculos. Dez segundos antes, depois de ouvir um estampido seco vindo da cabine de comando, ele havia interrompido a leitura da revista que segurava. Agora, juntamente com os que o rodeavam, ouvia perplexo do seu assento as informações dadas pelo comandante através do sistema de intercomunicação. Aqui fala o comandante Krull. Estamos com problemas técnicos. Permaneçam todos sentados. O comandante havia dado outras informações durante o vôo de Londres a Nova York. Mas, dessa vez, a voz dele parecia tensa, nervosa. Uma comissária de bordo avançou cautelosamente pelo corredor que separava a primeira classe da cabine de comando. Parou em silêncio diante do convés de vôo pesadamente reforçado, ainda segurando o pano de prato que havia usado para limpar uma mancha do avental. O passageiro da poltrona 2-K acompanhou o olhar dela até à placa no centro da porta da cabine de comando, onde se lia: área restrita. Proibida a entrada durante o vôo. Enquanto ele observava, a comissária de bordo puxou um comunicador da parede e pressionou um botão que, segundo ele presumiu, servia para conectá-la à cabine de comando. A comissária falou ao microfone e esperou pela resposta. O passageiro viu a expressão do rosto dela mudar enquanto ouvia. Então, vagarosamente, ela voltou a pendurar o comunicador na parede e cobriu a boca com a mão. O rosto dela empalideceu quando se voltou para encarar os passageiros. O homem ajeitou os óculos na ponte do nariz e começou a se levantar. Por favor, fique sentado, ordenou ela. O que está acontecendo?, perguntou uma mulher em tom elevado. Que diabos foi aquele barulho?, interveio outro passageiro. Apesar da ordem da comissária, o passageiro do 2-K se levantou. Tem alguma coisa errada com o avião?, ele quis saber. Não, a aeronave está em ordem, respondeu a comissária, aparentemente ainda tentando assimilar o que tinha acabado de ouvir. Estamos sendo sequestrados?, insistiu o homem. A comissária mordeu o lábio inferior. O comandante Krull disse que atirou no co-piloto e que está prestes a se matar. Ela deu um passo para trás no corredor. Não há como entrar na cabine de comando e impedir que ele faça isso.

Comandante Krull, aqui fala Thomas Wyatt. Alto e empertigado no seu jeans desbotado e camisa de brim, Wyatt estava na pequena varanda na frente do seu chalé com vista para as águas escuras do lago Alligator, na região remota e bravia do norte da Flórida. O senhor pode ouvir-me?, indagou ele no telefone via satélite. Nenhuma resposta. Comandante, estou aqui para ajudá-lo. Estática. Wyatt sabia que havia pelo menos uma centena de pessoas ouvindo a ligação, que tinha sido transferida directamente para o sistema de comunicação da aeronave. Ele visualizou grupos de militares e civis no Departamento de Segurança Interna, no Pentágono, e em outras incontáveis agências, todos inclinados sobre os alto-falantes dos seus aparelhos eletrónicos. E ele sabia que tinha pouco tempo antes que uma tragédia acontecesse. O vôo 45 da Virgin Atlantic emitia o código 7500 de sequestro e não teria permissão para pousar e nem mesmo se aproximar de Nova York com um piloto suicida no comando. Pressionando o fone contra o ouvido, Wyatt insistiu: comandante, não importa o que o tenha levado a isso, ainda há tempo para voltar atrás. Isso não diz respeito apenas ao senhor, comandante, mas também às 280 pessoas inocentes a bordo do seu avião. Elas não merecem morrer. Seja qual for o seu problema, elas não são responsáveis. Vamos deixar o assunto nas mãos dos especialistas que podem resolver o problema para o senhor. Wyatt olhou para o relógio. Sabia que dois Hornets F-18 tinham sido enviados em posição vectorial para interceptar o airbus. Eles obedeciam a regras explícitas de envolvimento com relação ao código 7500: forçar o avião a desviar para um local de pouso seguro ou, se necessário, atirar na aeronave e abatê-la. O airbus, grande e pesadão, não era nenhum desafio para os pilotos de caça.

Comandante, o senhor é um veterano com dezassete anos de experiência, continuou Wyatt, olhando para três páginas de fax que tinha na mão. Muitos pilotos hoje em dia gostariam de chegar à sua posição. O senhor tem família..., filhas gémeas de 10 anos de idade. Está disposto a deixá-las órfãs de pai? Tirar a vida dos passageiros inocentes a bordo afectará a vida de outras centenas, se não milhares de pessoas, com o luto de amigos e parentes. E se levar essa aeronave ao chão com o senhor, o que dizer das vidas em terra? Por que não me diz o que quer..., farei tudo o que estiver ao meu alcance para ajudá-lo a conseguir. Ainda não é tarde demais. Wyatt sabia que, normalmente, eram três os motivos para alguém tomar reféns: tortura, assassinato ou suicídio. As informações que havia recebido indicavam claramente o número três. E o número três era a especialidade dele». In Lynn Sholes e Joe Moore, O Último Segredo, 1995, Editora Pensamento, 2015, ISBN 978-853-151-778-5.

Cortesia de EPensamento/JDACT

quarta-feira, 29 de julho de 2020

A Demanda do Santo Graal. Manuscrito do Século XIII. «Grande foi a alegria e o prazer que os cavaleiros da távola redonda tiveram aquele dia, quando se viram todos reunidos»

Cortesia de wikipedia e jdact

Tristão. A Graça do Santo Graal. A Demanda
Como o rei e os cavaleiros viram vir Tristão. Com certeza, amigo, disse Lancelote, ele veio à corte e acabou o assento perigoso e deu cabo da aventura de uma espada, em que nenhum cavaleiro da távola redonda ousou pôr a mão. Mas como soubestes que ele, no dia de hoje, aqui havia de estar? Isto vos direi eu, disse ele, mas em outra oportunidade, não agora. Enquanto isto, eis que o rei saiu em direcção a ele, porque muito estava alegre com sua vinda, e disse-lhe: dom Tristão, sede bem-vindo. E Tristão saudou-o muito educadamente. E o rei disse-lhe: dom Tristão, estou muito alegre com vossa vinda, porque não faltava nenhum dos companheiros da távola redonda, senão vós.

Como o rei falava com Tristão e da alegria dos cavaleiros. Quando os cavaleiros viram que aquele era Tristão com quem o rei falava, foram para lá muito alegres e com grande prazer da sua vinda, porque muito prezavam sua cavalaria e sua cortesia. E assim que viram o escudo, disseram entre si: enganados fomos noutro dia, porque este era o cavaleiro que levava a mulher, e o que derribou os cavaleiros daqui. Grande foi a alegria e o prazer que todos com Tristão tiveram. E ele rogou ao rei que lhe mostrasse Galaaz, o mui bom cavaleiro, e o rei lhe disse que havia ido para a cidade com alguns da linhagem de rei Bam.
Ai, senhor, disse Tristão, fazei que o veja, porque por outro motivo não vim aqui. De bom grado, disse o rei. Então se foram para o paço e desceram. E quando entraram no paço, acharam Galaaz com sua linhagem, que já se desarmaram. E o rei pegou Tristão e levou-o a ele e disse-lhe: amigo Tristão, vedes aqui o que buscais. Em nome de Deus, disse Tristão, bem seja ele vindo, porque com sua vinda estou muito alegre. Então ficou de joelhos diante dele e disse-lhe: Senhor, abençoado seja o dia em que nascestes, quando vos Deus deu tal graça. Galaaz não lhe quis permitir que ficasse assim a seus pés; e depois ergueu-o e beijou-o em significado de companheirismo e de fraternidade. E bem ouvira já dizer que aquele era o mais afamado e o melhor cavaleiro da távola redonda, com excepção de Lancelote apenas.

Como os da mesa redonda tiveram a graça do santo Graal. Grande foi a alegria e o prazer que os cavaleiros da távola redonda tiveram aquele dia, quando se viram todos reunidos. E sabei que, desde que a távola redonda começou, nunca todos assim foram reunidos, mas aquele dia, sem falha, aconteceu que estavam lá todos, mas depois, nunca de novo estiveram. Contra a noite, depois de vésperas, quando se assentaram às mesas, ouviram vir um trovão tão grande e tão espantoso, que lhes semelhou que todo o paço caía. E logo depois que o trovão deu, entrou uma tão grande claridade, que tornou o paço dois tantos mais claro que era antes. E quantos no paço estavam sentados, logo todos foram repletos da graça do Espírito Santo e começaram a olhar uns aos outros, e viram-se muito mais formosos, muito mais do que costumavam ser, e maravilharam-se muito do que aconteceu e não houve quem pudesse falar por muito grande tempo, antes estavam calados e olhavam-se uns aos outros. E eles assim estando sentados, entrou no paço o santo Graal, coberto de um veludo branco; mas não houve um que visse quem o trazia. E assim que entrou, foi o paço todo repleto de bom odor, como se todos os perfumes do mundo lá estivessem. E ele foi para o meio do paço, de uma parte e da outra, ao redor das mesas. E por onde passava, logo todas as mesas ficavam repletas de tal manjar, qual em seu coração desejava cada um. E depois que teve cada um o de que houve mister a seu prazer, saiu o santo Graal do paço que ninguém soube o que fora dele, nem por qual porta saíra. E os que antes não podiam falar, falaram então. E deram graças a Nosso Senhor, que lhes fazia tão grande honra e os confortara e abundara da graça do santo Vaso. Mas sobre todos aqueles que alegres estavam, mais o estava rei Artur, porque maior mercê lhe mostrara Nosso Senhor que a nenhum rei que antes reinasse em Logres. Disto foram maravilhados quantos lá estavam, porque bem lhes pareceu que se lembrara Deus deles, e falaram muito disso. E o rei disse aos que perto dele estavam: com certeza, amigos, muito devíamos estar alegres, que Deus nos mostrou tão grande sinal de amor, que em tão boa festa como hoje, de Pentecostes, nos deu a comer de seu santo celeiro.

Como Galvão começou a demanda do santo Graal. Galvão que sentava diante do rei, disse: Senhor, ainda há outra cousa que não imaginais. Sabei que não há cavaleiro no paço que não houvesse de comer o que pensou cada um em seu coração. E isto nunca houve em nenhuma corte, senão na casa do rei Peles. Mas tanto fomos enganados que o não vimos senão coberto. Quanto em mim é, prometo agora a Deus e a toda cavalaria que, de manhã, se me Deus quiser atender, entrarei na demanda do santo Graal, assim que a manterei um ano e um dia e, porventura mais; e ainda mais digo: jamais voltarei à corte, por cousa que aconteça, até que melhor e mais a meu prazer veja o que ora vi; mas se não puder ser, voltarei então.

Como os da mesa redonda começaram a demanda do santo Graal. Quando os cavaleiros da távola redonda ouviram que aquele era Galvão e viram o que disse, pararam até de comer; mas assim que as mesas foram tiradas, foram todos ante o rei e fizeram aquela promessa que fizera Galvão, e disseram que jamais deixariam de andar até que vissem a tal mesa e tão saborosos manjares e tão bem preparados, como eram aqueles que aquele dia comeram, se era cousa que lhes outorgada fosse por dificuldade e por esforço que sofrer pudessem». In Manuscrito do Século XII, Heitor Magale, A Demanda do Santo Graal, TA Queiroz, Editora da Universidade de S. Paulo, 1988, CDD 398 46, 1989, ISBN 858-500-874-1.

Cortesia de EUSPaulo/JDACT

A Demanda do Santo Graal. Manuscrito do Século XIII. «Este torneio desta justa durou até hora de vésperas. Então mandou o rei que parassem, porque se temia acontecer alguma desavença. E disse-lhes que se fossem desarmar…»

Cortesia de wikipedia e jdact

O assento perigoso. Galaaz acaba a aventura da pedra. Torneio em Camalote
«(…) Como a donzela disse as novas ao rei. Eles nisto falando, viram vir pela ribeira uma donzela sobre um palafrém branco; e quando chegou a eles, perguntou se estava aí Lancelote. Ele estava diante dela e disse-lhe: donzela, que vos apraz? Disse ela: eu te trago as mais maravilhosas novas que viste, tempo há, e não de teu prazer, mas de teu pesar; e sabe que tens teu nome desonrado desde hoje de manhã, porque quem ontem te chamava, porque eras, o melhor cavaleiro do mundo, te dizia a verdade; mas agora não é assim. E isto podes bem ver por prova desta espada, porque vês que melhor cavaleiro que tu a ganhou.
Donzela, disse ele, vós não me dizeis nada que eu por verdade não soubesse, tempo há, porque já outra vez vi esta espada e não ousei prová-la. E então tornou a donzela ao rei e disse-lhe assim: rei Artur, manda-te dizer o ermitão que, neste dia de hoje, te acontecerá a maior maravilha e honra que te nunca aconteceu. E não virá por ti, mas por outrem. E assim que isto disse, volveu a rédea ao palafrém e voltou. E muitos houve que quiseram mais saber dela, mas não quis ficar por rogo de ninguém, nem dizer mais de seus feitos.

Como rei Artur fez armar o torneio no campo de Camalote. Então disse o rei aos que estavam perto dele: amigos, assim é que a demanda do santo Graal é sinal verdadeiro de que ireis daqui logo; e porque sei verdadeiramente que jamais vos verei reunidos em minha casa, como agora vejo, quero que naquele campo de Camalote seja agora começado um torneio tal que, depois de minha morte, seja contado e no qual hajam que referir nossos heróis. E concordaram com isso todos. E voltaram à cidade e pediram as suas armas e armaram-se e voltaram ao campo. E o rei não fizera isto, senão para ver alguma coisa da cavalaria de Galaaz, porque bem sabia que não estaria muito em Camalote.

Como Galaaz justava, e como o rei partiu para aquele torneio. Aquele dia, rogou Lancelote a seu filho Galaaz que trouxesse armas naquele torneio com divisas da linhagem de rei Bam. E ele o fez de muito bom grado, porque não há nada que ele receasse, que lhe seu pai mandasse; mas não quis trazer escudo. Depois que foram reunidos no campo de Camalote, começaram a se ferir com lanças, de modo que muitos veríeis cair, e muitos havia que o faziam muito bem. E Galaaz, que entrou no campo, começou as lanças a quebrar e a derrubar cavaleiros, e a fazer tantas maravilhas, que todos diziam que nunca viram tão bom cavaleiro de justa. Porque, sem falha, nunca ele alcançava cavaleiro hábil, por mais valente que fosse, que o não metesse em terra; e fez disso tanto, que todos aqueles que o viram, disseram que nunca tão altamente começara cavaleiro a derribar cavaleiros. E bem aparecia no que naquele dia fizera, porque, de todos aqueles que eram companheiros da távola redonda, não ficaram senão poucos que ele não derribasse. Este torneio desta justa durou até hora de vésperas. Então mandou o rei que parassem, porque se temia acontecer alguma desavença. E disse-lhes que se fossem desarmar, e fez tirar o elmo a Galaaz e deu-o a Boorz de Gaunes, que o segurasse, porque aquele era em quem tinha confiança muito grande, que sempre fora em sua honra e em sua ajuda.

Tristão. A Graça do Santo Graal. A Demanda
Como o rei e os cavaleiros viram vir Tristão. Ainda o preito não estava acabado nem decidido, quando viram vir um cavaleiro pelo fundo da ribeira, sobre um cavalo tão bom, que poucos havia no campo melhores; e vinha tão depressa, como se todos os diabos do inferno viessem depós ele. E não trazia todas as armas, apenas a espada e o escudo. E o rei olhou o escudo e mostrou-o a Lancelote, que perto dele estava, e disse-lhe: agora estou alegre e tenho muito gosto, porque vejo aqui vir Tristão, o sobrinho de rei Mars de Cornualha, porque bem conheço aquele escudo que não vi desde que me fez muito pesar. E Lancelote começou a ferir o cavalo com as esporas e foi em direcção dele, e disse-lhe, de tão longe como pôde entender que o poderia ouvir: dom Tristão, sede bem-vindo. E Tristão; que o reconheceu, saudou-o e abraçou-o. E depois perguntou: amigo Lancelote, é verdade que veio Galaaz, o mui bom cavaleiro, à corte, aquele que há-de acabar o assento perigoso e há-de dar fim às aventuras do reino de Logres?» In Manuscrito do Século XII, Heitor Magale, A Demanda do Santo Graal, TA Queiroz, Editora da Universidade de S. Paulo, 1988, CDD 398 46, 1989, ISBN 858-500-874-1.

Cortesia de EUSPaulo/JDACT

Gritos do Passado. Camila Läkberg. «O bebé, com toda a sua gritaria, sua necessidade de carinho e sua demanda por algo que ela não lhe poderia dar. Era por causa do bebé…»

 Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Quando Patrik chegou, a actividade já era frenética. A entrada da Passagem do Rei havia sido fechada com um cordão de isolamento, e ele contou três carros de polícia e uma ambulância. Os peritos criminais vindos de Uddevalla estavam atarefados, e ele sabia que não devia ir entrando directo na cena do crime. Esse era um erro de polícia novato, o que não impedia seu chefe, o delegado Mellberg, de ficar andando de um lado para outro da área. Os peritos olhavam desalentados para os sapatos e as roupas dele, que naquele momento acrescentavam milhares de fibras e partículas ao seu delicado local de trabalho. Enquanto Patrik se manteve do lado de fora da fita amarela, Mellberg passou por cima dela e saiu da área, para grande alívio da equipa. Olá, Hedström, saudou o delegado. Sua voz estava calorosa, quase efusiva, e Patrik ficou surpreso. Por um instante, achou que Mellberg fosse lhe dar um abraço, mas felizmente isso não aconteceu. Apesar disso, o chefe parecia-lhe totalmente mudado. Fazia apenas uma semana que Patrik saíra de férias, mas o homem diante de si não era o mesmo que ele deixara sentado cabisbaixo à sua mesa, resmungando que o mero conceito de férias deveria ser abolido. Mellberg apertou a mão de Patrik com entusiasmo e deu-lhe uma chapadinha nas costas. E aí, como está a galinha choca em casa? Algum sinal de que vai ser pai logo? Não pelo próximo mês e meio, dizem eles. Patrik ainda não fazia ideia do porquê de tanto bom humor da parte de Mellberg, mas pôs de lado a surpresa e tentou concentrar-se no motivo de ter sido chamado ao local. E então, o que descobriu? Mellberg fez um esforço para apagar o sorriso da face e apontou para o interior sombrio da fenda. Um garoto de seis anos saiu escondido de casa hoje de manhã enquanto os pais dormiam e veio para cá brincar de cavaleiro entre as rochas. Em vez disso, ele encontrou uma mulher morta. Recebemos o chamado às 6h15.
Quanto tempo, os peritos tiveram para examinar a cena do crime? Eles chegaram faz uma hora. A ambulância chegou primeiro, e os paramédicos atestaram de imediato que não seria necessário nenhuma ajuda médica. Desde então, os peritos puderam trabalhar à vontade. Eles são um pouco sensíveis… Eu só queria entrar e dar uma olhada, e a reacção deles foi bem grosseira, se quer saber. Bom, acho que passar o dia inteiro rastejando, procurando fibras com uma pinça, deixa qualquer um meio puto da vida. Agora, Patrik reconhecia o chefe. Esse era mais o tom de Mellberg. Mas Patrik sabia por experiência que não adiantava tentar mudar as opiniões dele. Era mais fácil deixar que seus comentários entrassem por um ouvido e saíssem pelo outro. O que sabemos sobre ela? Nada ainda. Achamos que tem por volta de vinte e cinco. A única peça de roupa que encontramos, se é que dá para considerar assim, foi uma bolsa. Fora isso, ela está nua em pelo. Belos peitos, aliás. Patrik fechou os olhos e repetiu para si mesmo, como um mantra mental: não falta muito para ele se aposentar, não falta muito para ele se aposentar… Mellberg prosseguiu desatento. A causa da morte não foi confirmada, mas ela foi espancada com violência. Contusões por todo o corpo e vários ferimentos que parecem facadas. E ainda há o facto de que ela está deitada sobre um cobertor cinza. O médico legista a está examinando agora, e esperamos um relatório preliminar para logo mais. Alguém mais ou menos dessa idade foi dado como desaparecido recentemente? Não, nem de perto. Um homem de idade foi dado como desaparecido faz mais ou menos uma semana, mas no fim ele só se tinha cansado de viver enjaulado com a mulher num trailer e fugiu com uma garota que conheceu no Galären Pub. Patrik viu que a equipa que rodeava o corpo se preparava agora para colocá-lo com cuidado dentro de um saco para cadáveres. As mãos e os pés haviam sido ensacados de acordo com as normas para preservar qualquer evidência.
Os peritos criminais de Uddevalla coordenaram os seus movimentos para colocar a mulher no saco da forma mais eficiente possível. Então o cobertor sobre o qual ela estivera também foi colocado num saco plástico para exame posterior. A expressão de choque nas suas faces e o modo como ficaram paralisados revelaram a Patrik, de imediato, que algo inesperado acontecera. O que foi?, perguntou ele. Não vão acreditar nisso, respondeu um dos polícias, mas encontramos ossos aqui. E dois crânios. Pela quantidade de ossos, eu diria que são suficientes para dois esqueletos.

Verão de 1979
Ela oscilava de um lado para outro enquanto pedalava de volta para casa, numa luminosa noite de Verão. A festa fora um pouco mais maluca do que ela imaginara, mas isso não tinha importância. Ela era adulta, afinal de contas, e podia fazer o que bem entendesse. O melhor tinha sido poder ficar longe da menina por algum tempo. O bebé, com toda a sua gritaria, sua necessidade de carinho e sua demanda por algo que ela não lhe poderia dar. Era por causa do bebé, enfim, que ela ainda tinha de morar com a mãe, aquela velha que mal a deixava afastar-se de casa alguns metros, embora ela já tivesse 19 anos. Havia sido um milagre a mãe ter permitido que saísse essa noite para comemorar o solstício de Verão. Se não fosse pela criança, ela agora já estaria morando sozinha; poderia tentar ganhar o seu próprio dinheiro. Poderia sair sozinha quando quisesse e voltar quando lhe desse na telha, e ninguém iria dizer nada. Mas com a menina era impossível. Ela preferia entregar a criança para a adopção, mas a velha não queria nem ouvir falar disso, e agora era ela quem pagava o preço. Se sua mãe queria a menina tanto assim, por que não cuidava dela sozinha? A velha ia ficar furiosa de verdade quando ela chegasse cambaleando daquele jeito no meio da madrugada. Seu hálito cheirava a álcool, e com certeza mais tarde teria que pagar por isso. Mas valera a pena. Ela não se divertia assim desde o nascimento da pestinha.
Passou recto pelo cruzamento onde ficava o posto de gasolina e seguiu mais um pouco pela estrada. Então virou à esquerda, na direçcão de Bräcke, mas perdeu o equilíbrio e quase caiu na vala ao lado da estrada. Endireitou-se e pedalou com mais força, conseguindo algum impulso para subir a primeira ladeira. O vento soprava no seu cabelo, e a noite clara de verão fora dominada por um silêncio completo. Por um instante, ela fechou os olhos e pensou naquela noite luminosa de verão em que o alemão a engravidou. Tinha sido uma noite maravilhosa e proibida, mas não valeu o preço que ela teve que pagar ao final. De repente, ela abriu os olhos quando a bicicleta chocou contra algo. A última coisa de que se lembrava era o chão vindo na sua direcção a grande velocidade». In Camila Läkberg, Gritos do Passado, 2004, Edições Dom Quixote, 2010/2011, ISBN 978-972-204-348-9».

Cortesia de EdomQuixote/JDACT

Gritos do Passado. Camila Läkberg. «O suor fazia com que o lençol se colasse ao seu corpo. Erica se virava e se mexia na cama, mas era impossível encontrar uma posição confortável»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Mas o esquisito era que a moça não se mexia. Também não estava usando nenhuma roupa, e por um momento ele ficou envergonhado por estar parado ali, olhando uma moça nua. O vermelho que tinha visto não era um pedaço de pano, mas uma bolsa que estava perto dela, e ele não via as roupas em lugar algum. Engraçado, ela ficar deitada ali, nua. Sobretudo quando fazia tanto frio. Então, uma ideia impossível lhe ocorreu. E se a moça estivesse morta? Ele não conseguia encontrar outra explicação para ela estar ali deitada tão quieta. A ideia o fez descer da rocha num pulo, e retroceder devagar em direcção à entrada da fenda. Depois de afastar-se alguns metros da moça morta, ele se virou e correu para casa o mais rápido que pôde. Já não se importava se iria levar uma tareia ou não.

O suor fazia com que o lençol se colasse ao seu corpo. Erica se virava e se mexia na cama, mas era impossível encontrar uma posição confortável. A noite clara de verão não facilitava em nada o sono, e pela milésima vez ela fez uma anotação mental para comprar cortinas de blackout e colocá-las na janela, ou melhor, convencer Patrik a fazer isso. Ela achava encantador o facto de ele conseguir dormir tão satisfeito ao lado dela. Como ele ousava ficar ali roncando quando ela passava acordada noite após noite? Cutucou-o de leve, na esperança de que acordasse. Ele nem se mexeu. Ela cutucou com mais força. Ele resmungou, puxou mais as cobertas e virou-se para o outro lado. Ela suspirou, ficou deitada de costas, com os braços cruzados sobre os seios, olhando o tecto. A barriga arqueava-se no ar como um grande balão, e ela tentou imaginar o bebé nadando no escuro, dentro dela. Talvez tivesse o polegar na boca. Ainda era irreal demais para conseguir visualizar aquilo. Estava no oitavo mês, mas ainda não conseguia compreender o facto de que tinha outra vida dentro de si. Bom, muito em breve tudo seria bem real. Erica estava dividida entre a ansiedade e o receio. Era difícil imaginar como seria depois do parto. Para ser sincera, nesse momento era difícil pensar para além do problema de não mais conseguir dormir de barriga para baixo. Ela olhou o mostrador luminoso do despertador: 4h42 da madrugada. Talvez devesse acender a luz e ler um pouco. Três horas e meia e um romance policial ruim depois, ela estava prestes a rolar para fora da cama quando o telefone soou estridente. Como sempre, ela passou o fone para Patrik. Alô, aqui fala Patrik, a voz pastosa de sono. Não, está tudo bem. Ah, droga, claro, posso estar aí em quinze minutos. Vejo você lá. Ele voltou-se para Erica. Temos uma emergência. Tenho de me apressar.
Mas você está de férias. Ninguém mais pode fazer isso? Ela percebia que estava choramingando, mas ficar acordada a noite toda não fizera muito bem ao seu humor. É um assassinato. Mellberg quer que eu o acompanhe. Ele mesmo está indo até lá. Um assassinato? Onde? Aqui em Fjällbacka. Um garotinho encontrou o corpo de uma mulher na Passagem do Rei, esta manhã. Patrik vestiu-se depressa. Não demorou muito, já estavam em meados de Julho e ele só precisaria de roupas leves de Verão. Antes de sair correndo, foi até à cama e beijou a barriga de Erica, mais ou menos onde ela se lembrava vagamente de haver existido um umbigo. Vejo você mais tarde, nené. Seja bonzinho com a mãe, e voltarei logo para casa. Ele a beijou apressado e saiu. Com um suspiro, Erica içou-se para fora da cama e colocou um daqueles vestidos modelo tenda que por ora eram as únicas coisas que lhe serviam. A contragosto, ela lia montes de livros sobre bebés, e, em sua opinião, todos que haviam escrito sobre a gloriosa experiência da gravidez deviam ser levados para a praça pública e ser açoitados. Insónia, dores nas juntas, estrias, hemorroidas, suores nocturnos e uma revolução hormonal generalizada. Isso estava bem mais perto da realidade. E ela tinha a certeza de não estar irradiando nenhum brilho interior. Resmungando para si mesma, Erica desceu as escadas devagar, rumo ao primeiro café do dia. Talvez aquilo dissipasse um pouco o nevoeiro». In Camila Läkberg, Gritos do Passado, 2004, Edições Dom Quixote, 2010/2011, ISBN 978-972-204-348-9».

Cortesia de EdomQuixote/JDACT

terça-feira, 28 de julho de 2020

Ciência e Experiência nos Descobrimentos Portugueses. Luís Albuquerque. «Como consequência dele, os périplos da Antiguidade, já então chamados portulanos, passaram a acrescentar às distâncias que separavam dois portos o rumo (magnético) que o piloto…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Antecedentes da Náutica dos Descobrimentos
A Náutica Medieval
«Desde a Antiguidade que os homens do mar, responsáveis pelo êxito das navegações, criaram o hábito de registar por escrito as indicações consideradas importantes para assegurar o êxito da viagem, caso viessem a repeti-la. Fazendo uma navegação quanto possível costeira, esses primitivos apontamentos dos pilotos e navegadores, não obstante o seu grande interesse histórico, fornecem um pequeno número de dados. Lendo, por exemplo, o Périplo do Mar Eriteu, redigido em grego por autor desconhecido antes de iniciada a nossa era, verifica-se que esse texto aponta o nome dos principais portos do Mar Vermelho, indicando quase sempre a distância (em estádios) que separa entre si dois ancoradouros consecutivos, e ainda algumas breves informações sobre os habitantes (ictiofágios e agriofágios, por exemplo) que viviam nas terras circunvizinhas desses lugares marítimos. Mas os esclarecimentos prestados são, na maioria dos casos, sucintos e imprecisos; é certo que, excepcionalmente, podem descer a alguns pormenores de interesse, mas nunca apontam o rumo pelo qual o navio devia ser encaminhado, como na Idade Média se leria nos textos análogos; tal falta é apenas significativa de que a navegação não se fazia nesse tempo por rumos geográficos ou magnéticos; o piloto impunha à sua embarcação, como já ficou dito, uma derrota à vista de costa, e isso dispensava qualquer tipo de orientação geográfica, que se tornaria mais tarde indispensável, quando tais condições se alteraram. Há testemunhos suficientes, embora de diversas origens, de terem existido vários textos deste tipo; eles constituem os mais antigos livros de náutica de que temos conhecimento, sendo de salientar que não há naqueles que nos chegaram em fragmentos ou integralmente outros dados suplementares que pudessem auxiliar o piloto na sua tarefa. Para citar um exemplo, direi que nenhum desses textos alude a qualquer determinação de latitude, que aliás seria absolutamente inútil para a arte de navegar a que se recorria; é certo que se tem sustentado ter Pytheas de Marselha medido esta coordenada geográfica umas quatro vezes nas suas deambulações oceânicas, que o teriam levado até a ilha de Tule, às costas da Noruega e ao Báltico; Laguarda Trias estudou-as cuidadosamente, mas a verdade é que tais pretendidas observações foram todas feitas em terra e em lugares desconhecidos (apenas de uma delas se sabe que teve lugar em Marselha); o seu interesse para a náutica é, por conseguinte, nulo ou muito longínquo. As navegações mediterrânicas da Idade Média, seriam bastante mais exigentes à medida que se intensificaram, e sobretudo depois que os pilotos começaram a utilizar a agulha marear; este acontecimento de que se não sabe exactamente a história, verificou-se, o mais tardar, no decorrer do século XIII (embora existam em autores europeus referências às propriedades da agulha magnetizada anteriores a essa data). Como consequência dele, os périplos da Antiguidade, já então chamados portulanos, passaram a acrescentar às distâncias que separavam dois portos o rumo (magnético) que o piloto devia adoptar para se dirigir de um a outro.
Dois outros aperfeiçoamentos da náutica aparecem também antes do século XV: a carta de navegar (a que modernamente se deu o nome de carta-portulano, por estar intimamente relacionada com os textos náuticos designados por portulanos) e a toleta ou raxon de marteloio. Quanto à carta, e a despeito de muitas especulações que em torno do seu traçado têm sido feitas, continuo persuadido que ela de facto surgiu exclusivamente como desejo de dar expressão gráfica aos portulanos; quer dizer que, em minha opinião, não seguiu qualquer sistema de representação matemática, como muitos historiadores pretenderam, por vezes relacionando-a sobre o muito falado sistema de projecção de Marino de Tiro, de que não há notícias satisfatórias; um estudo atento das cartas deste tipo mostra, com efeito, que nelas se utilizaram os elementos que estavam escritos nos portulanos, e que foram transpostos para o desenho tal como hoje ainda se faz um levantamento topográfico expedito, para representação de áreas restritas; é claro que, dada a extensão das áreas representadas na carta portulano, ela apresentava-se geograficamente errada; mas cortada de linhas de rumos magnéticos (inicialmente em números de dezasseis, que foi dentro de pouco tempo duplicado), ou seja, exactamente os rumos seguidos pelos pilotos, adaptava-se perfeitamente à náutica, quer dizer, estava nauticamente correcta. Tanto assim é que os seus erros só vieram a ser notados pelos seus utilizadores quando a arte de navegar passou a recorrer a outros dados que entravam em conflito aberto com o traçado da carta.
Os dois dados até aqui referidos saíram da prática dos pilotos; os portulanos correspondiam ao mais elementar cuidado de preservar experiência vivida, e não envolviam, de início (na sua fase de périplos) mais do que o cálculo estimado das distâncias percorridas (com tendência para arredondar os números para as centenas, nos textos da Antiguidade) e a leitura, feita pela bússola, do rumo adoptado; o desenho da carta, embora exigisse já uma técnica (e ficaram célebres as escolas mediterrânicas de Génova, Veneza e Maiorca), não implicava mais do que alguns conhecimentos muito elementares de geometria». In Luís Albuquerque, Ciência e Experiência nos Descobrimentos Portugueses, Conselho da Europa, 1983, Biblioteca Breve 73, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Livraria Bertrand, Instituto Camões.

Cortesia BibliotecaBreve/JDACT

Quando Lisboa Tremeu. 1755. Domingos Amaral. «Só vários meses depois do terramoto, já de novo preso, é que tomei conhecimento do que acontecera naquelas horas em Belém, aonde o rei José I e a corte foram confrontados com o sismo»

jdact

«(…) Encolhi os ombros, despi as roupas de prisioneiro e vesti umas calças e uma camisa que encontrara no armário. Contrariado, o árabe mudou também de roupa. Contudo, não encontrámos sapatos que nos servissem e tivemos de manter os que trazíamos da prisão, uma espécie de socas de pano, nada úteis para correr naquele solo escavacado. De repente, ouvi o árabe a falar sozinho, e vi-o perto de outro armário, onde descobrira dois casacos castanhos. Eram demasiado pomposos para nós, e disse-lhe: quem nos vir com eles vai desconfiar. Com pena, Muhammed atirou os casacos para o soalho. Estava na altura de ir embora, mas pediu-me que esperasse mais um pouco, e abriu mais gavetas, ao fundo da sala. O que fazes? Vamos, protestei. Esperar, haver sempre jóias... Esvaziou as cómodas, mas desistiu, desiludido. Gente sovina, murmurou. Se calhar, tiveram tempo para levar as jóias, afirmei. Saímos da casa, em direcção à fonte. Quando lá chegámos, vimos os soldados, e escondemo-nos. Foi aí que assistimos à cena que há pouco contei: a chegada do rapaz, os seus gritos, os soldados a correrem atrás do espanhol, o Cão Negro a aparecer e o rapaz a fugir. Esperava que o Cão Negro o perseguisse, mas, ao ver a fonte, o espanhol parou de correr, e a sua escolta também. Havia pessoas, feridas e combalidas, à espera da sua vez de beber, mas o Cão Negro passou à frente delas e, quando um homem o tentou parar, ele abateu-o com a barra de ferro. Assustadas, as outras pessoas afastaram-se imediatamente, e o Cão Negro e os dois espanhóis beberam e depois lavaram-se. Dois homens ganharam coragem e voltaram a aproximar-se da fonte, mas cometeram um erro. Os três bandidos desataram a bater-lhes, mataram-nos e roubaram-nos. Só depois beberam mais água e se foram embora, carregando às costas a roupa roubada. Muhammed e eu saímos do esconderijo dez minutos mais tarde, dirigimo-nos à fonte e bebemos água. Mais gente estava a aparecer e, mesmo que observassem os corpos dos caídos no chão, ninguém se importava com eles. As pessoas só queriam beber água, não queriam saber quem tinha morrido, nem como, nem porquê.

Só vários meses depois do terramoto, já de novo preso, é que tomei conhecimento do que acontecera naquelas horas em Belém, aonde o rei José I e a corte foram confrontados com o sismo. Nos dias que se seguiram, soube-se que o rei não morrera, ao contrário do que chegou a correr nas primeiras horas, e nem sequer ficara ferido. Também se soube que, em Belém, os estragos haviam sido menores do que no centro da cidade; não se sentiram os efeitos das ondas gigantes que inundaram o Terreiro do Paço; e os terríveis incêndios, que alastraram durante dias nas zonas por onde nós andávamos, nunca chegaram lá. Poupada a corte a males maiores, o monarca conseguiu, com a ajuda de Sebastião José Carvalho Melo, reorganizar a vida do reino. Tudo isto era do conhecimento geral, mas os detalhes, os pormenores do que se passara em Belém, só me foram revelados na visita que Bernardino, um ajudante de escrivão ao serviço do rei, meu conhecido do passado, e que por golpe do destino iria acabar como ajudante principal de Sebastião José Carvalho Melo, me fez à prisão. Naquela manhã do dia 1 de Novembro de 1755, Bernardino tinha acompanhado a corte desde o Terreiro do Paço até Belém, num passeio matinal que se iniciara muito cedo, pois o rei queria ir ouvir missa junto aos Jerónimos, e obrigara todos a madrugarem, para que a comitiva não se atrasasse. Sonolento e contrariado, Bernardino apresentara-se no pátio do Paço para acompanhar a família real naquela expedição. Na sua carruagem, viajavam também duas aias e um padre jesuíta, chamado Malagrida, um homem agreste e desagradável, que o rei tinha em grande estima e a quem se confessava. Tal como muitos outros, Bernardino considerava-o enervante e sinuoso, e não conseguia trocar com ele mais do que duas palavras, além de embirrar com a sua barbicha de bode, um triângulo pontiagudo que se prolongava até meio do peito.
Como as aias eram gordas e feias, e o padre rezava o terço em silêncio, apenas mexendo os lábios sem produzir qualquer som, à medida que avançava ave-marias no seu rosário, Bernardino adormeceu entre Remolares e a ponte de Alcântara. Só acordou na Junqueira, onde apreciou os estéticos palacetes dos muitos nobres que se haviam ali instalado. Sorumbático, o padre Malagrida produziu comentários pouco abonatórios sobre a luxúria dos proprietários, um exemplo mais da perdição geral que, segundo ele, contaminava a cidade. Sem lhe dar troco, Bernardino fingiu adormecer de novo, mas mais não fez do que passar mentalmente em revista os seus afazeres. Depois da missa, o rei certamente desejaria conhecer os assuntos pendentes, mas, tirando aquela invulgar petição, não havia nada de especial com que valesse a pena incomodar Sua Majestade num sábado.
Com o secretário do Reino cada vez mais velho e doente, os assuntos acumulavam-se, e muitos tinham de ser directamente levados ao rei, ou então dirigidos ao secretário dos Negócios Estrangeiros, a quem Sua Majestade recorria cada vez mais. Bernardino intimidava-se bastante na presença de Sebastião José Carvalho Melo. O homem era altíssimo e os seus modos ríspidos causavam apreensão. Não era boa ideia cair em desgraça junto dele. Além disso, Bernardino temia que Sebastião José de Carvalho e Melo o reconhecesse dos tempos da juventude, quando pertencera ao grupo de jovens arruaceiros liderados pelo actual secretário dos Negócios Estrangeiros. Era sabido que Sebastião José não gostava que lhe relembrassem esse passado desviante e de má reputação, quando era conhecido por o Carvalhão, e por isso Bernardino sempre evitara reavivar as memórias desses tempos, curtos, em que ambos tinham convivido. Contudo, aquela estranha petição tinha de obter uma resposta. Provinha de um prisioneiro do Limoeiro, conhecido pelo nome de Santamaria, um pirata árabe que tinha sido entregue às autoridades portuguesas pelos franceses, e que agora revelava ser português. Segundo dizia, nascera em Portugal, aqui se tornara marinheiro, e só depois fora preso pelos árabes». In Domingos Amaral, Quando Lisboa Tremeu, Lisboa, 1755, O Dia de Todos os Santos vai mudar a vida de 5 pessoas para sempre, Casa das Letras, Oficina do Livro, 2010, ISBN 978-972-461-986-6.

Cortesia de CdasLetras/JDACT

segunda-feira, 27 de julho de 2020

Poesia Obsessão. Francisco Bugalho. «Sobre um lago, onde em sossego as águas olham o céu, roça a asa de um morcego... E ao longe o cantar morreu»


Cortesia de wikipedia e jdact

Obsessão
«Dentro de mim canta, intenso,
Um cantar que não é meu:
Cantar que ficou suspenso,
Cantar que já se perdeu.

Onde teria eu ouvido
Esta voz cantar assim?
Já lhe perdi o sentido:
Cantar que passa perdido,
Que não é meu estando em mim.

Depois, sonâmbulo, sonho:
Um sonho lento, tristonho,
De nuvens a esfiapar...
E, novamente, no sonho
Passa de novo o cantar...

Sobre um lago, onde em sossego
As águas olham o céu,
Roça a asa de um morcego...
E ao longe o cantar morreu.

Onde teria eu ouvido
Esta voz cantar assim?
Já lhe perdi o sentido...
E este cenário partido
Volta a voltar, repetido,
E o cantar recanta em mim».
Francisco Bugalho, in Margens

In Citador/Wikipedia

O Último Segredo do Templo. Paul Sussman. «Nove dias antes, a Fortaleza Antónia havia tombado; seis dias depois de os pátios externos e as colunatas do Templo terem sido muradas»

jdact e Cortesia de wikipedia

Templo Sagrado. Jerusalém
Agosto de 70 d. C.
«Cabeças cruzavam o muro do Templo, sibilantes; diversas delas, como um bando de pássaros desajeitados, com os olhos esbugalhados, boquiabertas, pedaços de carne humana rolando de onde haviam sido cruelmente arrancadas do pescoço. Algumas caíam no Pátio das Mulheres, sobre a pavimentação enegrecida pela fuligem, como um desencontrado ruído de tambores levando as crianças e os anciãos a fugirem horrorizados. Outras eram lançadas mais à frente, atravessando o Portão de Nicanor, no Pátio dos Israelitas, onde caíam em volta do grande Altar dos Holocaustos, como granizos gigantes. Poucas chegavam a alcançar distâncias ainda maiores, batendo contra os muros e telhados do próprio Mishkan, o Santuário, bem no coração do Templo, que parecia gemer e ressoar sob o ataque como se estivesse sofrendo dor física. Miseráveis!, balbuciou o garoto com a voz embargada; lágrimas de desespero queimando-lhe os olhos azul-safira. Romanos miseráveis e desprezíveis! De sua vista privilegiada, nas fortificações do Templo, ele fitava logo abaixo a movimentação da multidão de soldados romanos; suas armas e armaduras resplandecendo numa ira inflamada. Seus brados preenchiam a noite, misturando-se com a sibilante catapulta, com as batidas dos tambores, os gritos dos que estavam para morrer e, envolvendo tudo mais, o gigantesco e surdo golpe de demolição. Assim, o mundo parecia estar se partindo lentamente aos olhos do garoto. Tem compaixão de mim, ó Senhor,  ele sussurrava, citando os Salmos.  Porque estou angustiado; consumidos estão de tristeza os meus olhos, a minha alma e o meu corpo. Por seis meses o cerco se fechara sobre a cidade como uma coleira de ferro pronta a estrangulá-la, roubando-lhe a vida. Da sua base inicial, no Monte Scopus e no Monte das Oliveiras, as legiões romanas, quatro delas formadas por milhares de soldados auxiliares, moveram-se inexoravelmente para o interior da cidade, destruindo toda e qualquer linha de defesa, obrigando os judeus a retrocederem, amontoando-os no centro da cidade. Inúmeros foram assassinados, trespassados enquanto tentavam rechaçar seus oponentes, crucificados ao longo dos muros da cidade e por todo o Vale do Quidron, onde a quantidade de urubus era tão numerosa, que ofuscava o sol. O odor da morte difundia-se por toda parte, um corrosivo e dominante mau cheiro que dilacerava as narinas como chamas.
Nove dias antes, a Fortaleza Antónia havia tombado; seis dias depois de os pátios externos e as colunatas do Templo terem sido muradas. Agora tudo o que restava era o Templo Interior, fortificado, onde o que ainda subsistia do antigo orgulho da população da cidade estava esmagado, seres humanos como peixes num tonel imundos, famintos, obrigados a se alimentar de ratos e roer tiras de couro, e a beber a sua própria urina, tamanha era a sua sede. Apesar disso, lutavam furiosa e esperançosamente, lançando pedras e feixes em chamas sobre os invasores, de vez em quando investindo com impetuosidade contra os romanos numa tentativa de fazê-los retroceder para fora dos pátios, tudo isso para, enfim, regressar com ferimentos ainda mais graves. Os dois irmãos mais velhos do garoto morreram na última empreitada, golpeados enquanto tentavam derrubar uma máquina de guerra do cerco romano. Pelo que lhe era sabido, suas cabeças mutiladas estavam entre aquelas arremessadas de volta ao interior dos muros do Templo. Vivat Titus! Vincet Roma! Viva! Titus! As vozes dos romanos se espalhavam num urro estrondoso, declarando o nome do seu general, Tito, filho do imperador Vespasiano. Pela muralha, os defensores ensaiavam um brado em resposta, evocando os nomes de seus próprios líderes: João de Giscala e Simão Bar-Giora. Mas o clamor era fraco, pois as suas bocas estavam ressecadas, e o fôlego, enfraquecido; e, de qualquer maneira, era difícil dar o sangue por homens que, conforme os rumores, já haviam firmado um acordo com os romanos para salvar suas próprias vidas. Eles mantiveram o brado por quase um minuto, e então suas vozes foram diminuindo gradualmente. O garoto retirou um seixo do bolso de sua túnica e começou a chupá-lo, esforçando-se para esquecer a sede que sentia. Ele se chamava David e era filho de Judá, o vinicultor. Antes da grande revolta, a sua família havia cultivado uma vinha nas colinas fora de Belém: uvas vermelho-rubi que produziam o vinho mais puro e doce que alguém pudesse provar, como a luz do sol nas manhãs de Primavera, como a brisa suave na sombra de tamarindeiros. No Verão, o garoto ajudara a colher e a espremer as uvas, pisando-as, sorrindo com a sensação dos polpudos frutos sob os seus pés e a maneira como o suco manchava as suas pernas de vermelho-sangue. Agora prensas de lagar estavam quebradas, os vinhos estragados, e sua família assassinada, toda ela. Encontrava-se sozinho no mundo. Aos doze anos de idade já carregava a dor de um homem cinco vezes mais velho. Eles estão voltando! Preparem-se! Preparem-se!» In Paul Sussman, O Último Segredo do Templo, 2005, Bertrand Editora, 2016, ISBN 978-972-253-056-9.

Cortesia de BertrandE/JDACT

A Conspiração do Graal. Lynn Sholes e Joe Moore. «Quando voltasse para os Estados Unidos, passaria um bom período de folga na Flórida. Isso era uma promessa…»

jdact e cortesia de wikipedia

«O príncipe das trevas é um cavalheiro». In Shakespeare

Abandonada. Ninive, norte do Iraque
«(…) As coisas estão-se tornando imprevisíveis. Tire o seu lindo traseiro daí do jeito que puder. E quero conversar com você logo que chegar. Fui claro? Ela tentou discutir com ele e conseguir mais tempo, mas ele desligou antes que ela pudesse apresentar as suas razões. Quando voltasse, ele faria com que ela se cansasse de ouvir os seus eu bem que avisei, devia demiti-la, até não poder mais. Isso se conseguisse voltar. Cotten arrepiou-se. Estava encalhada, e congelando, no meio do deserto iraquiano.

Charles Sinclair olhou da janela do escritório para o campus que se descortinava ao redor dos laboratórios da BioGentec vizinho à University of New Orleans. O azul do lago Pontchartrain estendia-se à sua frente. Ele observou o pequeno exército de jardineiros com as suas ceifadeiras e os carrinhos de apoio dos jogadores de golfe que cruzavam o relvado entre os jardins, todos impecavelmente aparados e em perfeita ordem. Ele gostava de tudo em perfeita ordem. O telefone tocou sobre a escrivaninha e ele teve um sobressalto, espirrando algumas gotas do café descafeinado sobre o tapete persa. Sim? Doutor Sinclair, uma ligação internacional na linha oito para o senhor, informou a voz da secretária. Sinclair apertou o botão piscante. Não atenderia essa ligação no viva-voz. Fala Sinclair.  O ruído da ligação o aborreceu enquanto apertava o fone firmemente contra a orelha. Descobrimos a entrada da cripta anteontem, informou uma voz de homem do outro lado da linha. Hoje, no final da tarde, ela foi aberta. Os nós dos dedos de Sinclair ficaram lívidos de tanto que ele apertou o receptor do telefone. Ahmed, espero que tenha boas notícias. Fez uma pausa. Tenho, sim. Está tudo como o Archer previu. O que vocês encontraram? Muitos artefactos com os ossos, prosseguiu Ahmed. Uma armadura, quinquilharias religiosas, alguns rolos de pergaminho e uma caixa.
A adrenalina fluiu pelo corpo de Sinclair fazendo as pontas dos dedos latejarem. Como é essa caixa? Preta, sem inscrições, com uns quinze centímetros de cada lado. A transpiração humedecia o colarinho branco da camisa cara de Sinclair. O intervalo da conversa foi preenchido pela estática antes que voltasse a falar. E o que há dentro dela? Ainda não sei. Como assim? Você estava lá, não estava? Archer não a abriu. Ele e os outros estão fazendo as malas para ir embora neste exacto momento. Devemos sair daqui..., a área ficou perigosa demais. Todos estão muito nervosos. Não há tempo para examinar... Não! Sinclair apertou a base do nariz. Você vai lá agora mesmo e pega a caixa. Espero que Archer tenha mostrado como abri-la. Volte a me ligar assim que confirmar o que há dentro dela e estiver com ela em segurança nas suas mãos. Entendeu o que eu disse? Entendi. A voz de Ahmed sumiu em meio à estática. Ahmed, prosseguiu Sinclair, mantendo a voz baixa e controlada, é imprescindível que conclua a sua missão. Não preciso repetir isso outra vez. Entendi. Sinclair desligou o telefone e ficou olhando para o aparelho. O árabe não poderia nem sequer começar a entender.

A Cripta
De repente, o ruído de um veículo se aproximando chamou a atenção de Cotten. A luz dos faróis boiou à distância na estrada irregular. Até que enfim, ela pensou. Mas, e se fossem soldados iraquianos? Ela se virou sobre o ombro empoeirado e sentiu a palpitação na garganta. Finalmente, quando o veículo se aproximou o bastante, deduziu pelas luzes da cabine e da carroceria que se tratava de um caminhão-tanque. Adiantou-se alguns passos, acenando freneticamente com as mãos, mas o veículo não diminuiu a marcha. Protegendo os olhos da areia e do cascalho levantados quando o caminhão passou rugindo a toda velocidade, Cotten observou-o distanciar-se com a mesma rapidez com que havia surgido. Provavelmente, não era muito sensato ficar acenando na estrada para qualquer um que passasse. Sem falar do estado de espírito de qualquer iraquiano naquele momento. O mais seguro para ela seria ficar fora das vistas e manter a distância necessária até o dia amanhecer. Depois de uma hora de caminhada, Cotten deixou as bolsas caírem pesadamente no chão e sentou-se sobre uma delas. Os braços doíam com o peso da bagagem e o corpo tremia cada vez mais por causa do frio que se infiltrava pelo casaco. Quando voltasse para os Estados Unidos, passaria um bom período de folga na Flórida. Isso era uma promessa. Cotten esvaziou uma das sacolas, jogando fora tudo o que não lhe faria falta. Enquanto organizava os pertences, imaginou-se ir para o Iraque: tinha sido uma ideia inteligente. Talvez tivesse sido uma tolice. Não tinha pensado direito no assunto, e então, quando Casselman protestou, ela manifestou uma das suas atitudes triunfantes. Poderia ter assumido outras reportagens, de igual importância, que também a levariam para longe de Thornton.
Droga, droga, droga, gemeu, separando apenas o essencial: carteira, passaporte e credenciais de jornalista, juntamente com a câmera fotográfica, lentes, filmes e a embalagem plástica de filme com o dinheiro para uma emergência. Guardou tudo na outra sacola com as videocassetes. Depois de uma última olhada por sobre o ombro para a pilha de pertences deixados para trás, retomou a penosa caminhada. A Lua surgiu e clareou o deserto com luz suficiente para que continuasse enxergando a estrada. Ela desejou o conforto do sofá de casa, uma xícara de café quente ou, melhor ainda, uma dose de vodka com algumas pedras de gelo. De repente, parou e piscou várias vezes, para se certificar de que o que via não era uma miragem. Outras luzes faiscavam à distância. Não de veículos, mas de algum tipo de assentamento ou acampamento com electricidade. Deixando a sacola no chão, esfregou o ombro e o braço dolorido para reanimar a circulação. Pegou a câmera fotográfica, ajustou as lentes da teleobjetiva e focalizou as luzes. Se fosse um acampamento da Guarda Republicana ou até mesmo de soldados do Exército iraquiano, uma mulher americana viajando sozinha teria poucas chances. Alguns dos colegas dela em Bagdad contavam histórias de brutalidade, violação..., homens que se comportavam como animais, como cães ferozes». In Lynn Sholes e Joe Moore, A Conspiração do Graal, 2005, Clube do Autor, 2020, ISBN 978-989-724-534-3.

Cortesia de CdoAutor/JDACT