segunda-feira, 27 de julho de 2020

A Conspiração do Graal. Lynn Sholes e Joe Moore. «O sussurro ameno do vento do deserto prenunciava o frio da noite ao mesmo tempo que o céu de Janeiro passava de uma tonalidade rósea para o índigo. Sentindo o frio começar a insinuar-se pelo corpo»

jdact e cortesia de wikipedia

«O príncipe das trevas é um cavalheiro». In Shakespeare

Abandonada. Ninive, norte do Iraque
«Saia! A voz esganiçada do motorista iraquiano ecoou rispidamente no interior do carro. Uma nuvem de areia e pó se formou do lado de fora depois da travagem brusca. Rudemente acordada, Cotten Stone endireitou-se no banco. Mas o que foi isso!? Ela tentou enxergar alguma coisa no meio à poeira e a penumbra do anoitecer. Saia já! Não levo americanos. Do rádio jorrava um palavreado incompreensível na voz de um locutor iraquiano. O que aconteceu?, insistiu ela. O que está errado? O motorista saltou pela porta que tinha escancarado e correu para a parte de trás do carro. Cotten forçou a maçaneta da porta empoeirada até ouvir um estalido seco. Ei, o que você pensa que está fazendo?, gritou, saltando para fora. O motorista já abria o porta-malas, de onde tirou as duas sacolas dela, que jogou na beira da estrada. Você não pode deixar-me aqui, ela protestou, dando a volta no carro. Estamos no meio de um maldito deserto! Impassível, o motorista indicou com a cabeça o falatório do rádio. Cotten abaixou-se para pegar a sacola de lona em estilo militar que continha os seus videos e jogou-a de volta no porta-bagagem. Escute, eu já lhe dei todo o meu dinheiro. Não tenho mais nada. Virou do avesso os bolsos vazios da calça. Era uma mentira estratégica. Antes de embarcar, havia escondido os seus quase duzentos dólares dentro de uma embalagem de filme vazia. Era a sua reserva de emergência. Não está entendendo? Veja, não tenho mais dinheiro. Eu te paguei para me levar até a fronteira.  O motorista cutucou-a no ombro com o indicador. Fim da linha para americanos. Tornando a arrancar a sacola da bagageira, o motorista atirou-a com toda força no peito dela, quase derrubando-a, e obrigando-a a recuar cambaleando uns passos para trás. Em seguida, ele contornou o carro, reassumiu o posto à direcção, engatou a primeira velocidademarcha e saiu em disparada, com o velho Fiat derrapando na areia pedregosa.
Não acredito que isto esteja acontecendo, queixou-se ela. Desalentada, Cotten soltou a sacola ao lado da outra e, ajeitando uma mecha dos cabelos cor de chá atrás da orelha, acompanhou com o olhar as lanternas traseiras do táxi até que desapareceram na distância. O sussurro ameno do vento do deserto prenunciava o frio da noite ao mesmo tempo que o céu de Janeiro passava de uma tonalidade rósea para o índigo. Sentindo o frio começar a insinuar-se pelo corpo, Cotten abriu a outra sacola, tirou um casaco impermeável em estilo militar e vestiu-o. Para se aquecer, saltitou no lugar, as mãos enfiadas até ao fundo dos bolsos. A escuridão, brusca como o rude iraquiano, caía de repente sobre o deserto. Bem que alguém poderia aparecer..., precisava aparecer, ela pensou. Passaram-se dez minutos sem nenhum sinal de outro veículo. Finalmente, ela resolveu pegar as sacolas e começar a andar. Os pedregulhos e a areia rangiam como pedaços de vidro sob as suas botas de acampamento. Relanceou o olhar para trás, desejando ver o brilho de faróis, mas nada se destacava no deserto escuro e árido. Não sei o que me deu para confiar naquele sujeito, resmungou, a voz soando áspera no ar seco.
Alguma coisa o motorista devia ter escutado no rádio para ficar tão fora de si. Cotten sabia que as forças armadas americanas se preparavam para uma invasão. Havia uma semana que corriam rumores entre os jornalistas da comunicação social estrangeira de que ressoavam cada vez mais alto os tambores de guerra em Washington e Londres. Não era nenhum segredo que algumas equipas avançadas das forças americanas e britânicas tinham-se infiltrado no país. Podia ser que a invasão acontecesse meses depois, mas era difícil esconder a concentração de tropas nos países árabes que faziam fronteira com o sul do Iraque. O noticiário árabe local vivia coalhado de imagens das Forças Especiais e dos fuzileiros navais aparecendo e desaparecendo no meio da noite. Testemunhavam-se, até mesmo, sobrevôos estratégicos de caças, assim como a presença de aeronaves do tipo Predator, avião guiado por controle remoto que não leva tripulação, e de reconhecimento de alta altitude, para testar os graus de vulnerabilidade das instalações de mísseis e de radares iraquianos. Cotten acomodou a alça de uma das sacolas no ombro.
A culpa é toda sua, queixou-se. Quem mandou ser tão cabeça-dura? Algumas semanas antes, ela se encontrava na sala do chefe de reportagem da SNN, Ted Casselman, implorando que a designasse para cobrir os efeitos das sanções económicas sobre as mulheres e as crianças do Iraque. Seria uma história marcante, pensava, e não a incomodava a instabilidade crescente da região. Os americanos precisavam ser informados sobre as consequências das sanções económicas sobre os inocentes. Além disso, argumentou com Casselman, se os Estados Unidos tinham planos de atacar o Iraque, ela queria estar lá, pronta para registar os factos, no epicentro dos acontecimentos. Cotten também não mencionou que precisava ficar um tempo afastada de Thornton Graham. Não disse nada a Casselman porque sabia que não suportaria se tivesse de se explicar. A ferida emocional ainda estava aberta. O pedido para a viagem fazia sentido por si, vindo de uma repórter ávida e ansiosa, e ela queria uma missão que ganhasse as manchetes mundiais.
A Satellite News Network não enviava focas em missões em lugares tão instáveis, Casselman insistiu com ela várias vezes. Sim, ele admitia, ela possuía talento e prometia bastante. Sim, ele achava que conseguiria suportar a pressão. E sim, ele concordava que uma missão no Médio Oriente no momento era uma oportunidade perfeita para impulsionar uma carreira de sucesso. No entanto, ela não só era uma repórter iniciante, mas também era mulher, e uma mulher no Iraque na situação do momento estava fora de questão. Assim que a guerra começasse, os únicos jornalistas presentes seriam os escolhidos antecipadamente pelos militares e viajariam junto com as tropas. E eles deviam ser apenas do sexo masculino. As regras eram claras, a resposta era não. Ela ficou furiosa e iniciou um grande discurso sobre a injustiça de tudo. Casselman cortou-a com outro firme Não. Depois de se acalmar, Cotten finalmente conseguiu que ele concordasse que ela acompanhasse um grupo de repórteres até ao limite máximo da fronteira com a Turquia. De lá, ela cobriria a situação dos refugiados que estavam se dirigindo para o norte desde o início do conflito. Ele ficou furioso quando soube que ela tinha ido para Bagdad. Então ligou naquela manhã, ordenando que ela saísse de lá». In Lynn Sholes e Joe Moore, A Conspiração do Graal, 2005, Clube do Autor, 2020, ISBN 978-989-724-534-3.

Cortesia de CdoAutor/JDACT