quarta-feira, 22 de julho de 2020

A Vitória do Imperador. Domingos Amaral. «Montados cada um na sua mula, eles preparavam-se para dar uma volta fora das muralhas. Telo contava mais de cinquenta anos e os seus cabelos totalmente brancos...»

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Lanhoso. Dezembro de 1130
«(…) Os cães do mal tombariam à frente dele, as flechas de fogo apagar-se-iam aos seus pés, as mulheres cavaleiras encontrariam nele a agonia e os corvos iriam dançar sobre cadáveres malditos, anunciando um novo reino! Elvira parecia em transe, os seus olhos estavam vidrados, o seu rosto tenso, e terminou a declaração com um murmúrio:

Os meus deuses do Norte tudo sabem!

O príncipe, fascinado com aquelas palavras místicas, só no final da fantástica descrição é que perguntou: normanda Elvira, serei rei de Portugal? A rapariga riu-se, desfazendo a rigidez que lhe assolara a cara. Aproximou-se dele e em movimentos rápidos deixou cair a camisa, a saia e as roupas interiores, revelando a sua nudez. Afonso Henriques admirou aquele corpo monumental, mas não avançou de pronto, o que a levou a afirmar: sois o meu rei... Dando um passo em frente, Elvira pegou na mão direita dele e colocou-a sobre o seu seio volumoso, enquanto exigia: tomai-me e comei-me.
Apesar do perfume de heresia, o convite dela teve o condão de espevitar o príncipe, que, inebriado de desejo, a possuiu ali mesmo. Depois, levou-a para o quarto e tomou-a várias vezes naquela noite. Quando a madrugada começou a nascer, Elvira avisou que, se continuassem naquilo, iria gerar filhos, tendo o príncipe retorquido sem pestanejar: cá estarei para ser pai deles.

Coimbra, Páscoa de 1131
Naquele novo ano, apesar de já saciado por Elvira, Afonso Henriques estava ainda desgostoso com Chamoa e por isso decidiu rumar ao sul e passar a Páscoa em Coimbra, levando a sua pequena corte com ele. O príncipe admirava cada vez mais aquela povoação, a sua dimensão, o seu comércio, a sua agitação urbana e a forma como os habitantes, independentes e orgulhosos da sua autonomia, governavam a cidade em conjunto. Havia em Coimbra um intenso respeito pelos muitos moçárabes que ali viviam, mas também por muçulmanos e judeus, apesar de estes serem poucos. Coimbra era a maior cidade do Condado e também a mais populosa acima do Tejo. Nem em Santarém, nem em Lisboa, havia tanto povo a viver. Para mais, desde que era regente do Condado, logo após a batalha de São Mamede, o príncipe revelara os seus dotes de habilidoso governante e a situação geral dos habitantes melhorara, havendo desaparecido muitos dos mendigos que antes percorriam a região. Mesmo perante a dureza do último Inverno, a fome não fustigara as gentes daquela terra. Só uma inesperada e, a princípio, pequena querela veio perturbar a harmonia local. O bispo de Coimbra, de seu nome Bernardo, um culto francês há muitos anos vindo da Borgonha e que passava horas a escrever na Sé um livro sobre a vida de São Geraldo, mostrara forte relutância em aceitar a constante presença de Afonso Henriques na povoação, que antes supervisionava sem concorrente.
Além disso, o bispo nutria igualmente forte antipatia pelos muitos cónegos e religiosos que pretendiam instalar-se na região, animados pela promessa de expansão do Condado para sul e pela iminente luta contra os mouros abaixo do Mondego. Homens como o prior Teotónio, que deixara Viseu, ou o arcediago Telo, estavam agora muitas vezes em Coimbra, descrevendo as peregrinações que haviam feito a Roma ou à Terra Santa, glorificando as vantagens da vida apostólica dos eremitas, o que muito enervava o bispo. Certo dia, o príncipe, meu tio Ermígio Moniz, que era o mordomo-mor do Condado, Gonçalo Sousa e eu regressávamos de um passeio a cavalo a Montemor-o-Velho e ao entrarmos na cidade pela sua porta ocidental, a da Almedina, cruzámo-nos com o arcediago Telo e com João Peculiar, o mestre-escola da Sé que no passado fora eremita nos vales do Douro.
Montados cada um na sua mula, eles preparavam-se para dar uma volta fora das muralhas. Telo contava mais de cinquenta anos e os seus cabelos totalmente brancos, bem como a imponente presença física, geravam respeito em todos, embora se sentisse já, na postura quebrada e nas costas cansadas, o peso da idade e de uma saúde em perda. Quanto ao seu acompanhante, eram conhecidas a sabedoria e a inteligência, e muitos previam um brilhante futuro para João Peculiar, cuja fina figura, nariz pronunciado, queixo pontiagudo e polpudas sobrancelhas, a que se juntava uma intencional careca, pois rapava o cabelo rente, compunham, no entanto, um conjunto pouco simpático, que provocava receio nos menos firmes de espírito». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, A Vitória do Imperador, Casa das Letras, LeYa, 2016, ISBN 978-989-741-461.

Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT