quinta-feira, 23 de julho de 2020

Enquanto Salazar Dormia. Domingos Amaral. «Ah! Ah, Ah! Cabra? Chamaste-me cabra? Ora querem lá ver que afinal não és só salamaleques! Mary levantou o copo e disse: brindemos a isso! À cabra!»

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Lisboa, 22 de Junho de 1995
Mary
«(…) Eu, Jack Gil Mascarenhas Deane, filho de mãe portuguesa e pai inglês, nascera em Capetown, na África do Sul, onde vivera seis anos da minha infância. Depois, seguira-se Sydney, na Austrália, até aos 15. Novos projectos do meu pai e nova viagem, até Hong Kong, onde permaneci até aos 25, antes de vir para Portugal. Conhecera ao longo da vida muitas mulheres: criadas, secretárias e até amantes do meu pai. Mais tarde, vieram as prostitutas e as colegas da universidade. Tinha, pensava, um suficiente conhecimento dos temperamentos femininos. Mas estava errado. Em 1941, nunca conhecera uma mulher como Mary, nunca uma mulher me falara assim, em desafio, com hostilidade, pondo em causa a minha coragem, o meu orgulho patriótico, o meu carácter. Estava perfeitamente siderado, paralisado pela sua contundência verbal. Estás sem palavras, inglês?, insistiu ela. A tua diplomacia, a tua educação, não te dizem como responder? O que é preciso para te fazer estremecer? Meu Deus, pareces um figurante do teatro!
Mary estava, definitivamente, lançada. Não sabia o que despertara aquela explosão, e não sabia como contê-la. Fiquei ali, a olhar para ela, sem palavras. Seria aquilo um teste, a sua estratégia de recrutamento? Mary encolheu os ombros, decepcionada: só me saem destes... Achas que, se eu quisesse vir sozinha para casa, não tinha chamado um táxi? Meses mais tarde, estas estranhas mudanças de temperamento de Mary, os seus arranques como eu lhes chamava, tornaram-se compreensíveis para mim. Quanto mais a sua vida e a de James Bowles se iam tornando perigosas em Lisboa, mais instável ela ficava.
Mas, naquela primeira noite, a forma desabrida como me falou pareceu-me conversa de desmiolada e bêbada. Mary, perguntei, o que foi que eu disse que te incomodou tanto? Ela deu uma gargalhada histérica: oh!, sempre um cavalheiro, e imitou a minha voz. Mary, o que foi que eu disse que te incomodou tanto? Depois, regressou ao seu tom impulsivo, hostil, agressivo: acorda, Jack Gil! Estamos em guerra! Na guerra não há cavalheiros, só homens duros e maus. Homens que atiram bombas para cima de cidades! Homens que querem matar nazis!
Diz-me, cavalheiro Jack Gil, porque é que não foste à guerra? Debrucei-me para a frente no sofá e expliquei-lhe: já tenho 30 anos, não fui chamado. Além de que sou filho de mãe portuguesa. Ela fez um gesto de desprezo com a mão: logo vi. És um cobardolas, imitou-me de novo. Sou filho de mãe portuguesa. Os nossos rapazes a sangrarem nas areias dos desertos de África, os pilotos da RAF a caírem como patos mortalmente atingidos e tu, sou filho de mãe portuguesa, já tenho 30 anos. Piff, bem diz o James que a nossa fibra se está a perder. Os nazis não pensam assim, sabes? O Hitler diz-lhes para eles se atirarem a nós e eles fazem-no, pelo Terceiro Reich! E tu: tenho 30 anos, não fui chamado. Não tens vergonha?
Uns anos antes, o meu pai dissera-me o mesmo. Queria que eu fosse para Inglaterra alistar-me na Royal Navy. Recusei. Preferia os bordéis de Hong Kong e mais tarde o Casino do Estoril. Morrer não era ideia que me agradasse, mesmo que fosse pela pátria. Só que, agora que a guerra estava no auge, consumia-me um sentimento de culpa. Sentado atrás de uma mesa de mogno no escritório da companhia de navegação do meu pai, numa rua próxima do Cais do Sodré, não contribuía em nada para mudar o curso daquela guerra estúpida. Muitas vezes perguntara a mim próprio o que poderia fazer, mas nada me ocorria. Perante o desafio de Mary, sentira-me por momentos útil. Ouvir estas palavras, cruéis mas certeiras, irritava-me e explodi: Mary, disse há pouco que te ia ajudar, que ia falar com o Nubar! Porque me estás a humilhar? Sim, não me alistei! Sim, nunca fiz o que o meu pai me pediu, ir para Inglaterra lutar! Mas isso já é passado! Agora, aqui em Lisboa, estou pronto para ajudar a Inglaterra nesta guerra!
Ela escarneceu de mim: olha, de repente temos herói. Vai falar com uma pessoa num hotel chique de Lisboa e já diz que está pronto para ajudar a Inglaterra nesta guerra! Que nobre, que digno! Pobre Jack Gil. Bem vestido, anda de Citroen, noivo de uma portuguesinha de boa família, amiga de Salazar.
Ofendido, esbocei o gesto de me levantar do sofá. Mary murmurou, sibilina: ó pobrezinho, queres ver que o magoei? Falei na noivinha... Gritou, como uma mãe berra à criança que praticou um disparate: pára de te portares como um palerma, Jack Gil! Age como um homem, responde-me à letra, e não te ponhas para aí com delicadezas!
Talvez fosse isso que Mary quisesse, que eu entrasse num combate verbal com ela. E confesso que, embora à superfície aquela verborreia me estivesse a incomodar, aqueles termos provocavam em mim alvoroço. Era como se a trepidação que emanava dela me estivesse a acordar energias, como se um redemoinho me puxasse, e sentia vontade de lhe ripostar, de a agredir de volta. Foi o que fiz.
Mary, já me tinham dito que eras uma cabra.
Um insulto. Em 1941, as pessoas não usavam tanto os palavrões como usam hoje, quando já os banalizaram. Em 41, um insulto era uma coisa grave. Contudo, ao longo da vida fui compreendendo que a atracção sexual entre homens e mulheres é cheia de mistérios, e um deles é que os insultos entre seres que se desejam são por vezes naturais. Trata-se de actos drásticos, destinados a despertar o irracional das pessoas, o seu lado mais violento, apaixonado e animal.
Ah! Ah, Ah! Cabra? Chamaste-me cabra? Ora querem lá ver que afinal não és só salamaleques! Mary levantou o copo e disse: brindemos a isso! À cabra! Vá lá, inglês, filho de mãe portuguesa, bebe um copo à saúde desta cabra maluca! Depois, sorriu com malícia e perguntou: também dizes palavrões durante o sexo? Julgo que corei, pois ela apontou imediatamente o dedo para a minha cara e gritou: estás a corar! Jack Gil, tu dizes palavrões durante o sexo! Tu, o atencioso, o cavalheiro, o noivinho, dizes palavrões durante o sexo! Por instantes, o verniz da civilização era um porto seguro, aonde eu queria regressar desesperadamente. Estava enervado e inseguro. Mas, ao mesmo tempo, desejava possuí-la. O que é que tu lhes chamas, inglês filho de mãe portuguesa?, perguntou. O que é que dizes às mulheres quando lhes falas ao ouvido? Vá lá, Jack Gil! Se vamos trabalhar juntos temos de confiar um no outro. O que é que lhes dizes? Que obscenidades? Então, pela primeira vez na vida, contei a uma mulher o que dizia às outras mulheres quando as possuía». In Domingos Amaral, Enquanto Salazar Dormia, 2006, Casa das Letras, 2013, ISBN 978-972-462-174-6.

Cortesia de CdasLetras/JDACT