sexta-feira, 24 de julho de 2020

A Casa do Pó. Fernando Campos. «Atrai a minha atenção uma oficina de tipógrafo. Um homem assoma à porta, a apreciar uma folha de papel acabada de imprimir»

jdact

A porta do mundo
«(…) Rasgavam-se mais as janelas e portas, erguia-se mais um sobrado, lançava-se telhado de quatro águas, talhava-se nas traseiras a horta e o pomar, onde se abria o poço a par do tanque. A mudança das coisas significava, obviamente, a mudança nas pessoas. Algumas disposições reais revelavam a preocupação de criar aos naturais da terra condições de melhor vivenda e trabalho. Como corria o dinheiro e o comércio prosperava, havia menos privação, o luxo era uma tentação natural e, de longada, o abrandamento, senão o relaxamento dos costumes, surgia como lógica e necessária consequência. Enxameavam as ruas de gentes de muitas nações, o que se notava pelo aspecto corporal, pela maneira de vestir e pelo falar. Sinais dos tempos eram as coisas nunca vistas que levavam os transeuntes a especarem-se embasbacados arrectis auribus oculisque! Um indígena de pele bronzeada sentado no dorso de um enorme elefante, acabado de desembarcar, conduzia o pesado e bamboleante mastodonte através das ruas da cidade, oferta de um vizo-rei da Índia ao soberano. A janela de uma casa apalaçada um papagaio de ricas cores no seu poleiro era as delícias, oh!, velho Catulo!..., oh!, fumos de império!..., de grandes e pequenos a quem dizia olé. Na sombra de um caramanchão, numa gaiola pendurada saltitavam colibris vindos do Brasil. Um homem passava levando no ombro um sagui que arreganhava os dentes às pessoas com quem se cruzava e fazia momices como se fosse uma criatura trenga. Seguia eu ao longo de um comprido telheiro de duas águas, estaquei a observar os canteiros de mestre Boitaca, de escopro e cinzel nas mãos enfarinhadas do fino pó da pedra de Ançã, a lavrarem seus cantos: lindas goteiras e gárgulas diabólicas, carrancudas, pináculos esguios, nervuras de rosáceas, fustes de colunas, folhas de capitéis e tantas outras maravilhas que me faziam pensar que também em pedra se podia ser poeta. Seguiam-se oficinas operosas e barulhentas de carpinteiros e tanoeiros que não tinham mãos a medir. De um carro de bois estavam-se descarregando tábuas de madeiras raras, mogno, teca, sissó, ébano, que se empilhavam num terreiro onde se viam toros de árvores por aparelhar. Noutro ponto um entalhador esculpia finamente em madeira um retábulo para um altar e, na sua banca de trabalho, mais adiante, um ourives dava os últimos retoques numa salva de prata que reproduzia cenas de caça na selva africana, elefantes, palmares com bananas, negros tangendo suas marimbas. Montava-se além um astrolábio ou afeiçoava-se um sextante, uma balestilha. Aqui um caldeireiro batia um panelão de cobre, enquanto à porta da oficina de um latoeiro se viam pendurados baldes, lanternas de folha-de-flandres, funis, panelas, sertãs. No largo de Pampulha pedreiros ajustavam as pedras da bacia de um chafariz, em frente de um pelourinho de coluna enroscada em corda e encimada por uma esfera armilar com a cruz de Cristo. Um tapeceiro expunha preciosos tapetes persas trazidos pelas naus das índias Orientais e noutra parte da sua loja vendia colgaduras bordadas com linho de Guimarães e seda da China, que em seu lavor contavam cenas como o julgamento de Salomão ou os trabalhos de Hércules ou lavradas de aves e montaria, feitas umas em Goa, outras em Malaca e Bengala. A rainha, dizia-me ele, tem um grande salão onde mulheres e raparigas indianas tecem e bordam ricas colchas como estas. Trazem-nas os capitães das armadas e são muito hábeis lavradeiras de bastidor. Numa marcenaria havia muitas peças de fino mobiliário que acusavam também a novidade: entre mesas, camas, cadeiras, arcas e arcazes, vi um contador feito em Goa, de ébano incrustado de madrepérola, marfim e pedras preciosas.
Atrai a minha atenção uma oficina de tipógrafo. Um homem assoma à porta, a apreciar uma folha de papel acabada de imprimir: reparo nas letras góticas, em linhas muito certas, e na iluminura a vermelho. Se gostais de ver, entrai, irmão, diz-me, notando a minha curiosidade. A casa é vossa. Como se afasta um pouco para me dar passagem, entro, ao mesmo tempo que agradeço: um criado de Vossa Mercê. Germão Galhardo às vossas ordens. Digo-lhe o meu nome e relanceio a vista por toda a quadra, enquanto ele pendura com todo o cuidado a folha numa corda, ao lado de outras que estão a secar. A uma sala ampla, iluminada à esquerda por grande janelão abobadado, em cujo vão (traz obra para publicar vossa paternidade?... Se encontra uma alta estante que segura, numa e outra face, as caixas inclinadas dos caracteres tipográficos. (Escritor? Eu?...)» In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Editora Objectiva, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.

Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT