sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Paradoxo no 31. Progresso Ilimitado das Ciências. Fulcanelli. «Quando o povo fala do fim do mundo evoca e traduz geralmente a ideia dum cataclismo universal, levando simultaneamente à ruína total do Globo e ao extermínio dos seus habitantes. Segundo esta opinião, a Terra, cortada do número dos planetas, deixaria de existir»

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Os domínios do mistério prometem as mais belas experiências. In Einstein

O reino do homem
«(…) O Reino do Homem, prelúdio do Juízo F'inal e da vinda do Ciclo novo, está expresso simbolicamente num curioso quadro de madeira esculpida, conservado na igreja de São Salvador, também chamada do Capítulo, de Figeac (Lot). Sob a concepção religiosa velando apenas o seu evidente esoterismo, ele mostra Cristo menino adormecido sobre a cruz e rodeado dos instrumentos da Paixão. Dentre estes atributos de martírio divino, seis foram, intencionalmente, reunidos em X, assim como a cruz onde repousa Jesus infante e que foi inclinada para dar esta forma por perspectiva. Assim, lembrando as quatro idades, temos quatro X (khi) gregos cujo valor numérico de ó00 nos fornece, como produto, os 2400 anos do mundo. Ali se vê, pois, a lança de Longino reunida à cana ou cabo de hissope encimado pela esponja embebida em oxicrato; depois, o feixe de vergastas e o flagelo entrecruzados; por fim, o martelo que serve para enterrar os pregos da crucificação e a turquês utilizada para os arrancar após a morte do Salvador.
Tripla imagem da última irradiação, fórmula gráfica do espiritualismo declinante, estes X marcam com o seu cunho o segundo período cíclico, ao fim do qual a humanidade se debate nas trevas e na confusão, até ao dia da grande, revolução terrestre e da rnorte libertadora. Se reunirmos estas três cruzes em aspa e colocarmos o ponto de intersecção dos seus braços sobre um eixo comum, obteremos uma figura geométrica de doze raios, sinabolizando os doze séculos que constituem o Reino do Filho do Homem e que sucedem aos doze precedentes do Reino de Deus.

O Dilúvio
Quando o povo fala do fim do mundo evoca e traduz geralmente a ideia dum cataclismo universal, levando simultaneamente à ruína total do Globo e ao extermínio dos seus habitantes. Segundo esta opinião, a Terra, cortada do número dos planetas, deixaria de existir. Os seus destroços, projectados no espaço sideral, cairiam em chuva de aerólitos sobre os mundos próximos do nosso. Certos pensadores, mais lógicos, tomam a expressão num sentido mais restrito. No seu parecer, a perturbação não deverá atingir senão a humanidade. Afigura-se-lhes impossível admitir que o nosso planeta desapareça, embora tudo o que vive, se move e gravita à sua superfície esteja condenado a perecer. Tese platónica que podia ser aceitável, se não implicasse a introdução irracional dum factor prodigioso: o homem renovado nascendo directamente do solo, à maneira de um simples vegetal e sem semente prévia.
Não é assim que se deve enterader o firn do mundo, tal como nos é anunciado nas Escrituras e tal como o relatam as tradições primitivas, quaisquer que sejam as raças a que pertençam. Quando Deus, para punir a humanidade dos seus crimes, resolveu sepultá-la sob as águas do dilúvio, não só a Terra foi afectada à superfície, apenas, mas também certo número de homens justos e de eleitos, havendo achado graça diante d’Ele, sobreviveram à inundação. Embora apresentado sob aparências simbólicas, este ensinamento assenta numa base positiva. Reconhecemos ali a necessidade física duma, regeneração animal e terrestre que não pode, pois, levar ao aniquilamento total das criaturas, nem suprimir qualquer das condições indispensáveis à vida do centro, do núcleo salvaguardado. Portanto, apesar da sua aparente universalidade, apesar da terrificante e longa agitação dos elementos desencadeados, estamos seguros de que a imensa catástrofe não agirá igualmente por todo o lado, em tudo, nem sobre toda a extensão dos continentes e dos mares. Certas regiões privilegiadas, verdadeiras arcas rochosas, abrigarão os homens que ali se refugiarem. Ali, durante um dia, com a duração de dois séculos, gerações assistirão, angustiadas, espectadoras dos efeitos do poderio divino, ao duelo gigantesco da â'gaa e do rfogo; numa calma relativa, sob uma temperatura uniforme, à pálida e constante claridade dum céu baixo, o povo eleito esperará que se faça a paz, que, dispersas as últimas nuvens ao sopro da idade de ouro, a magia polícroma do duplo arco-íris lhe descubra o fulgor de novos céus e o encanto duma nova terra...» In Fulcanelli, 1930, Les Demeures Philosophales, 1965, As Mansões Filosofais, colecção Esfinge, Edições 70, Lisboa, 1977.

Cortesia de E70/JDACT

Da Sedução no 31. Pablo Picasso. Bertolt Brecht. «A uma nova luz a paisagem revela-se aos amantes na Primavera. A grande altura avistam-se os primeiros bandos de pássaros. O ar já aqueceu»

Picasso
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Soprava o vento pela fresta
«Soprava o vento pela fresta
a menina comia nêspera
antes de dar em segredo
o níveo corpo ao folguedo.

Mas antes provou ter tacto
pois só o queria nu no acto
um corpo bom como um figo
não se vai fo… vestido.

Para ela em tempo de ais
nunca o gozo era demais.
Lavava-se bem depois:
nunca o carro antes dos bois».


Maria sejas louvada
«Maria sejas louvada
como és tão apertada.
Uma virgindade assim
é coisa demais p’ra mim.

Seja como for o sémen
sempre o derramo expedito:
ao fim dum tempo infinito
mas muito antes do ámen.

Maria sejas louvada
tua virgindade encruada
inda me põe fora de mim.
Porque és tão fiel assim?

Por que devo eu, que dialho
só porque esperaste tanto
logo eu, o teu encanto
em vez doutro ter trabalho?!»
Poemas de Bertolt Brecht, in ‘Da Sedução

In Bertolt Brecht, Da Sedução, Poemas Eróticos, Gravuras de Pablo Picasso, Editorial Bizâncio, Lisboa, 2004, ISBN 972-53-0018-1.

Cortesia da EBizâncio/JDACT

Léxico no 31. Sexualidade. Erotismo. Amor. Ludwig Knoll e Gerhard Jaeckel. «Como produto da civilização, o erotismo pode, na verdade, ascender à mais alta espiritualidade, mas pode igualmente degenerar em decadência e ‘perversão’»

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«(…) Muitas outras transformações se produziram, devidas à necessidade de constituir grupos humanos cada vez maiores para vencer, em trabalho conjunto, a batalha contra a natureza adversa. A sexualidade teve de ser reprimida, no interesse da sociedade, não só para conservação das forças para o trabalho como também para permitir a entrada duma parte do amor nas ligações entre grupos. A realização de todos os desejos sexuais e de amor numa ligação dum casal ou no seio da família intimamente unida não deixava que houvesse qualquer interesse numa comunidade alargada. Esta é a motivação última do tabu do incesto: a criança em desenvolvimento é obrigada a renunciar ao amor pecaminoso por pais e irmãos, a desligar-se da família e a contrair ligações com estranhos. Isto é tanto mais difícil para ela quanto mais tempo tiver dependido da assistência e do amor da família paterna. As experiências deste amor, bem como a sua proibição influenciam todas as expectativas posteriores do amor. As condições que a constituição física do homem, a sua longa infância e a sua integração em grandes comunidades impuseram à sua sexualidade, limitando esta mesma sexualidade, embora a alarguem simultaneamente ao domínio espiritual, a condução ao erotismo. Na verdade, o erotismo deriva das inibições, e está intrinsecamente de acordo com elas, embora ao mesmo tempo as ultrapasse. Como produto da civilização, o erotismo pode, na verdade, ascender à mais alta espiritualidade, mas pode igualmente degenerar em decadência e perversão.
Devido às estreitas relações entre a sexualidade genital e outros prazeres dos sentidos, por um lado, e por outro lado aos instintos físicos da sexualidade no seu conjunto para o erotismo e o amor, Sigmund Freud alargou, na psicanálise, o conceito de sexualidade a todos estes aspectos. O conceito psicanalítico líbido corresponde tanto ao desejo de prazer dos sentidos como ao desejo de amor no sentido de entrega e protecção. Todas as formas de amor, incluindo o dos pais, dos filho, por animais e por Deus são encaradas como derivantes e sublimações do amor sexual. Este concepção deriva, entre outros motivos, da experiência que todas estas formas de amor, aparentemente afastadas da sexualidade, podem transformar-se novamente em sexualidade, sob a forma de fenómenos de feiticismo. No seu conjunto, a sexualidade, o erotismo e o amor constituem um domínio que não pode separar-se da totalidade da vida. Em todas as manifestações da vida humana vibra a força de Eros, e Eros é influenciado por todas as outras circunstâncias da vida. Estas são as razões pelas quais no nosso Léxico do Erótico se discutem tanto os factos fundamentais da sexualidade como as influências da civilização e da sociedade. Algumas gravuras são frequentemente menos ilustrações dos títulos do que variações do respectivo tema. São de várias épocas e mostram o significado, basicamente inalterado, do amor sexual. O modo como os diversos pintores e desenhadores explicaram, artisticamente, os problemas da sexualidade humana constitui em si mesmo um exemplo da espiritualização do erotismo». In Ludwig Knoll e Gerhard Jaeckel, 1976, Sexualidade, Erotismo e Amor, Livraria Bertrand, Círculo de Leitores, Oficinas Gráficas da Livraria Bertrand, 1981.

Cortesia de LBertrand/JDACT

Judeus no 31. Inquisição. Sebastianismo. A Questão Judaica. Maria José Tavares. «A literatura e as pregações, ao minimizarem o povo judaico/converso e ao contraporem o elogio dos cristãos, porque seguidores do verdadeiro Messias, conduziriam à sublimação do recalcamento social da própria minoria…»

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A Questão Judaica (séculos XV-XX). Os Judeus em Portugal no século XV
Cristãos e judeus: o antijudaísmo
«(…) Uma razão ou outra, ou ambas, a verdade é que, se os judeus Portugueses sentiram crescer contra si a animadversão declarada do povo miúdo, não tornaram a conhecer acto semelhante. No entanto, o antijudaísmo aumentava no reino e traduzia-se, não só pelas palavras dos procuradores nas cortes, mas também pelas pregações religiosas, onde aqui e além brotavam sentimentos antijudaicos, como ocorreu com mestre Paulo, em Braga, mas sem qualquer consequência de agressões físicas para a comunidade minoritária, excepto o crescimento da insegurança e instabilidade social. Seria já no reinado de João II que estas se declarariam, provocadas pelos diversos surtos de peste, pela fuga para Portugal de conversos castelhanos, acusados de heresia e perseguidos pelo Tribunal da Inquisição (maldito) de Castela, e, por fim, pela expulsão da minoria judaica do reino vizinho e o acolhimento, em Portugal, de uma parte dela. Manifestação de antijudaísmo foi a polémica religiosa. Ao contrário do que sucedeu nos reinos vizinhos, pouco sabemos sobre a controvérsia religiosa e os escritos originais de apologética. De facto, o que conhecemos diz respeito às livrarias dos mosteiros, como o de Alcobaça, onde existia um ou outro manuscrito de polémica religiosa, cópia de obras produzidas em França ou nos reinos peninsulares durante o século XIII.
No entanto, o único texto de apologética e de teor antijudaico, escrito por um português, um judeu de Tavira convertido ao cristianismo, revelava o conhecimento das obras polemistas castelhanas. Segundo Révah, mestre António, físico e afilhado de João II, ao escrever Ajuda da fé, copiava excertos da obra de Jerónimo de Santa Fé, um converso como ele, retirando-lhes a agressividade antijudaica que este manifestara. Mas se o antijudaísmo não se encontrava presente na generalidade das relações quotidianas, ele circulava sub-repticiamente no inconsciente colectivo do povo, traduzindo-se em certas atitudes insultuosas contra os membros da minoria, como, por exemplo, no apodo de cães ou na afirmação da superioridade de qualquer cristão em relação a um judeu. No entanto, seria já nos séculos XVI e XVII que este sentimento alastraria, manifestando-se de uma forma violenta no quotidiano dos portugueses. A literatura e as pregações, ao minimizarem o povo judaico/converso e ao contraporem o elogio dos cristãos, porque seguidores do verdadeiro Messias, conduziriam à sublimação do recalcamento social da própria minoria, através da afirmação de comportamentos de superioridade, bem patentes no domínio do comércio e da medicina e expressos na literatura, na obra de Fernando ou Isaac Cardoso, no século XVII, intitulada As Excelências dos Judeus. A alteridade afirmava-se como um direito, quando a intolerância religiosa procurava reprimi-la.

A economia
A centúria de Quatrocentos apresentou-se economicamente marcada pelas descobertas portuguesas, que dariam a Portugal a oportunidade de, entre 1450-1550, se afirmar como um reino rico. Os judeus portugueses não ignoraram esta realidade, revelando-se, em concorrência com os mercadores cristãos, como os capitalistas por excelência, em sociedades mistas de judeus e cristãos. A agricultura que continuaram a praticar era uma actividade secundária para a maioria deles, que se afirmavam mais como mercadores e almocreves ou artesãos do que propriamente como grandes lavradores. Estes, na sua generalidade, eram proprietários absentistas, como os Negro ou os Abravanel, mercadores/banqueiros de Lisboa e cortesãos. A base da fortuna das gentes da minoria judaica era a riqueza móvel, o dinheiro que tantos protestos provocara nas cortes porque provinha de um trato ilícito, a usura, que conduzia os cristãos, agricultores, à miséria e enriquecia o credor judaico. A movimentação do capital, através dos investimentos diversos, como os empréstimos a juros ou os arrendamentos dos direitos reais, fora uma realidade no século XIV e permanecia uma constante na centúria seguinte, mau grado a animadversão cristã». In História de Portugal, João Medina, volume VII, Judeus, Inquisição e Sebastianismo, Maria José Pimenta Ferro Tavares, A Questão Judaica, SAPE, Ediclube, Alfragide, Mateu Cromo, Madrid, 2004, ISBN 972-719-275-0.

Cortesia de Ediclube/JDACT

LX 60 no 31. A Vida em Lisboa Nunca Mais Foi a Mesma. Joana Vilela e Nick Mrozowski. «Conheci-a num serão sobre poesia do século XVIII, conta o encenador Carlos Avilez. Ela estava deitada numa chaise-longue como uma deusa. Achei-lhe piada, ela achou-me piada. Era uma mulher lindíssima. Tinha sido a paixão de metade dos intelectuais de Lisboa…»

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Vais a Casa da Natália? Poesia, política e champanhe francês, sob o signo de uma deusa grega
«(…) Em Maio de 1960, um velho americano toca à porta do 5.º andar do 52 da Rodrigues Sampaio, rua paralela à Avenida da Liberdade, perto do Marquês. Natália Correia?, certifica-se quando lhe abrem a porta. Henry Miller?!, responde a anfitriã, surpreendida. Miller, o escandaloso autor de Trópico de Câncer, vai parar ao serão mais famoso da cidade por indicação do crítico literário João Gaspar Simões, que terá encontrado numa livraria da Avenida de Roma. A Natália ficou ufana. Era uma grande honra, recorda o jornalista Fernando Dacosta, testemunha dessa noite. Estão também presentes o poeta David Mourão-Ferreira e o crítico Delfim Santos, que há-de escrever sobre isso em O Jornal. Discute-se o Amor. E Miller junta-se à conversa. A dada altura, comenta que já tinha estado na Grécia, mas que fora preciso vir a Lisboa para conhecer uma deusa grega, lembra Dacosta.
A poetisa açoriana tinha-se mudado para aquela casa em 1953. Os serões foram ganhando fama e no final da década de 50 são já um marco incontornável da vida intelectual lisboeta. Sem dia nem hora marcados, às vezes uma vez por semana, outras mais; quase sempre depois do jantar, reúnem-se ali cinco, 10, 20 amigos. É uma honra fazer parte do grupo. Declama-se poesia, discute-se política, conspira-se contra Salazar. Sempre de forma exaltada, porque a Natália era exaltada e exaltava tudo à volta dela, lembra a poetisa Maria Teresa Horta. O escritor Urbano Tavares Rodrigues há-de recordar experiências de magnetismo com Almada Negreiros. Também há apresentações de livros e outras ocasiões semipúblicas, incluindo a primeira representação de uma peça de Sartre em Portugal: Entre Quatro Paredes / Huis Clos. Conheci-a num serão sobre poesia do século XVIII, conta o encenador Carlos Avilez. Ela estava deitada numa chaise-longue como uma deusa. Achei-lhe piada, ela achou-me piada. Tornam-se grandes amigos.
Onde quer que Natália esteja, é Natália quem manda. Em casa, de permanente boquilha, senta-se num trono, uma poltrona de costas muito altas ao fundo do salão principal, há outros dois, contíguos, rodeada pela magnífica biblioteca, um busto de si própria, várias pinturas e outras representações suas oferecidas por artistas que a admiram. Era uma mulher lindíssima. Tinha sido a paixão de metade dos intelectuais de Lisboa, assegura Maria Teresa Horta. Os artistas plásticos Almada Negreiros e Nikias Skapinakis são presenças frequentes. Mourão-Ferreira também. O editor Ribeiro Mello consegue penetrar no círculo. E Ary dos Santos torna-se indissociável daquelas noites. Eram uma referência no Portugal culto, o que mais se aproximava dos salões do século XIX em Paris. Tudo muito exuberante, muito divertido. Não tinha nada a ver comigo, explica Horta. Depois arrependi-me de não ter ido mais vezes. Dacosta acrescenta: Era uma feira popular, um misto de intelectuais e de bisbilhotice. Muito bem servido. A Natália tinha a mania do champanhe francês. Às quatro da manhã, mandava vir o seu bife, lembra Avilez. A ceia, que também inclui marisco, chega do Hotel Império, na mesma rua, dirigido pelo marido, Alfredo Machado. Os serões, bem regados, bem vividos, com música em fundo, duram até o sol raiar. A Natália, interpreta Dacosta, não sabia estar sozinha. Tinha de estar sempre com a sua corte. Estas reuniões prolongam-se até 1971, altura em que não acabam, mas mudam de casa. Vão para o largo da Graça, onde Natália acaba de abrir um bar, O Botequim». In Joana Stichini Vilela e Nick Mrozowski, LX 60, A Vida em Lisboa Nunca Mais Foi a Mesma, Publicações Dom Quixote, Alfragide, 2012, ISBN 978-972-20-5091-3.

Cortesia D.Quixote/JDACT

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

O Tecido Urbano Flaviense. De Aquæ Flaviæ a Chaves Medieval. João Manuel Ribeiro. «Para o estudo da cidade romana de “Aquae Flaviae”, definimos como objectivos específicos: reavaliar a localização dos eixos estruturantes da cidade (‘Kardus e decumanus maximus’) e as ruas secundárias, bem como a localização do ‘forum’»

Cortesia de wikipedia

Resenha historiográfica de Chaves
«(…) Com efeito, esta década marca, na historiografia flaviense, o incremento do leque de temas a desenvolver e o estabelecimento de novas posturas epistemológicas associadas às origens do traçado urbanístico de Chaves. Em 1990, Firmino Aires, colaborador de Rodríguez Colmenero nas intervenções arqueológicas levadas a cabo na década de 80, publica um compêndio dos topónimos da cidade de Chaves, intitulado Toponímia Flaviense, que corresponde, mais do que à adscrição de ruas a determinados períodos históricos, a um enunciado das histórias e lendas associadas a cada um dos eixos viários da cidade. Ainda no mesmo ano, destacam-se as obras de Nuno Pinto Dias, intituladas As cidades de fronteira de Portugal com a Galiza e Chaves medieval: séculos XIII e XIV, profusamente imbuídas na corrente de alguns historiadores portugueses que preconizava um ermamento inerente ao processo de Reconquista, encetado por Afonso I. Determinava-se, deste modo, a criação de uma nova corrente de investigação em defesa da génese medieval de Chaves, por oposição à tese filo-romana, presidida por António Montalvão. Nuno Dias defende a fundação e povoamento da cidade por iniciativa régia, na segunda metade do século XIII, no reinado de Afonso III.
O processo de Reconquista constitui, igualmente, um ponto central na obra de Mário Jorge Barroca (1990-91), intitulada Do Castelo da Reconquista ao Castelo Românico (séc. IX a XII), tema que o mesmo autor retoma, em 2004, num artigo publicado também na Revista Portugália, desta feita intitulado Fortificações e Povoamento no Norte de Portugal (Séc. IX a XI). Em 1993, Paulo Amaral defende a sua tese de mestrado, subordinada ao tema O Povoamento Romano no Vale Superior do Tâmega - Permanência e mutações na Humanização de uma Paisagem. Esta obra constitui o resultado de continuadas investigações sobre a cidade romana e o mundo rural adjacente, contribuindo de forma significativa para o avanço nos conhecimentos sobre a evolução urbana da cidade de Aquae Flaviae. Dela fazem parte, igualmente, um importante e avolumado compêndio onde constam as evidências arqueológicas descobertas ou recolhidas até à data da sua publicação, bem como dos habitats romanos identificados nas proximidades de Aquae Flaviae.
No mesmo ano, Paulo Gomes apresenta a sua tese de mestrado, intitulada Arqueologia das Vilas Urbanas de Trás-os-Montes e do Alto Douro. A reorganização do povoamento e dos territórios na Baixa Idade Média (séculos XII-XV), numa linha de investigação claramente filiada nas obras de Nuno Dias. No entanto, as asserções de Paulo Gomes, a propósito da cidade medieval, parecem denunciar uma postura mais tolerante em relação à génese do traçado urbano da cidade e à sua extensa ocupação anterior ao século XIII. Em 1994, Rafael Alfenim, num artigo dedicado à A Barragem de Aquae Flaviae, analisa o sítio arqueológico do lugar de Abobeleira e aventa alternativas às funções tradicionalmente propostas para esta estrutura hidráulica. Em 1996, Ricardo Teixeira defende a sua tese de mestrado, intitulada De Aquae Flaviae a Chaves. Povoamento e organização do território entre a Antiguidade e a Idade Média, uma obra notoriamente análoga à de Paulo Amaral, muito embora referente a um período cronológico diferente. O início do século XXI constitui um ponto de viragem nas investigações sobre a evolução urbana da cidade, graças, sobretudo, ao aumento do número de intervenções arqueológicas realizadas, quer por organismos privados, quer pelo Gabinete de Arqueologia da Câmara Municipal, que se constitui como o principal responsável pela gestão e salvaguarda do património arqueológico. Estas intervenções têm permitido, por sua vez, engrossar o volume das publicações, sob a forma de relatórios ou artigos, contribuindo, igualmente, para introduzir novas interpretações acerca das sucessivas ocupações que a cidade foi alvo.
Assiste-se, ainda, a publicações que reflectem sobre as considerações tecidas ao longo das décadas anteriores, tais como as revisões dos relatórios da Direcção Geral de Edifícios e Monumentos Nacionais, actualmente disponíveis num sitio dedicado a esta instituição, já extinta. Em 2008, Ricardo Teixeira retoma o tema do Povoamento e organização do território nas regiões de Chaves, Vila Real e Lamego (Séc. IX – XIV), no III Congresso de Arqueologia de Trás-os-Montes, Alto Douro e Beira Interior, enquanto Paulo Gomes publica um estudo sobre a evolução urbana da cidade, intitulado Chaves e as suas Fortificações. Estudo histórico, arqueológico e evolução Urbana e Arquitectónica. Para além da evolução do sistema defensivo medieval e moderno de Chaves, o autor analisa as consequências provocadas na malha urbana pelas sucessivas alterações das referidas estruturas defensivas.

Objectivos
O estudo da evolução urbana da cidade de Chaves, desde a sua fundação romana até aos nossos dias, constitui um tema extremamente aliciante, não só pelo seu carácter inovador, mas também, pelo enorme desafio que representa. Contudo, dado o elevado volume de dados que um estudo desta natureza implica e os limites de tempo que possuímos, centrar-nos-emos num período cronológico mais restrito, designadamente, na análise da paisagem urbana flaviense nos períodos romano e medieval. Assim, pretendemos com este trabalho dar início a um estudo que tem por finalidade reconstituir a forma urbana que caracterizou a cidade no período de ocupação romana e medieval, bem como perceber as transformações que ocorreram entre estes dois momentos, através da implantação de uma nova metodologia com provas dadas em outras cidades históricas, como o caso de Braga. Para a concretização do objectivo geral deste trabalho, contribuíram um conjunto de objectivos específicos que permitiram traçar a evolução morfológica entre a época romana e a época medieval, bem como aferir a continuidade ou descontinuidade urbanística existente entre os diferentes momentos de ocupação da cidade. Para o estudo da cidade romana de Aquae Flaviae, definimos como objectivos específicos: reavaliar a localização dos eixos estruturantes da cidade (Kardus e decumanus maximus) e as ruas secundárias, bem como a localização do forum; propor uma malha teórica segundo a qual a cidade se organizaria, designadamente a dimensão e a localização de algumas insulae, bem como a orientação da cidade romana nos períodos alto e baixo-imperiais e por fim analisar a localização e funcionalidade de alguns edifícios». In João Manuel Gonçalves Ribeiro, O Tecido Urbano Flaviense, de Aquæ Flaviæ a Chaves Medieval, Universidade do Minho, Mestrado em Arqueologia, Instituto de Ciências Sociais, 2010.

Cortesia da UMinho/JDACT

O Desafio Venturoso. António Barbosa Bacelar. Ana Hatherly. «Dentro do restrito panorama da novela barroca portuguesa, que agora começa aos poucos a ser descoberta, o “Desafio Venturoso” surge como uma narrativa bem urdida e bem trabalhada, que merece um lugar de destaque na ficção portuguesa de todos os tempos»

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(Excerto)
[...] O Desafio Venturoso insere-se no grande grupo da novela curta amatória que, embora de origem italiana, no período barroco tinha já uma arreigada tradição peninsular. Segundo Menendez y Pelayo esse género remontaria a meados do século XV florescendo ao lado das novelas de cavalaria mas diferindo destas consideravelmente, pois na novela erótico-sentimental dá-se mucha más importancia al amor que al esfuerzo, sin que por eso falten en ella lances de armas, bizarrias y gentilezas caballerescas, subordinadas aquella pasion que es alma y vida de la obra, complaciendose los autores en seguir su desarollo ideal y hacer descripción de los afectos de sus personajes. Es, pues, una tentativa de novela intima y no meramente exterior como casi todas las que hasta entonces se habian compuesto. Esta descrição aplica-se com bastante acerto ao Desafio Venturoso, novela curta amatória em que não faltam rasgos cavalheirescos ao lado da anatomia dos sentimentos das personagens. Não sendo propriamente uma narrativa exemplar, o Desafio Venturoso está próximo das novelas cervantinas, exibindo claramente, para lá de vestígios dessa poderosa tendência, aquilo que Evangelina Rodriguez Cuadros definiu como la dolorosa escisión barroca entre lo intelectual y lo sensible.
Considerando o seu argumento, veremos que Felício, amante (que se julga) traído por Lizarda, ao ter conhecimento da dimensão da sua desdita através do relato de Carlos (que ele salva da morte e de quem se torna amigo), acaba por ficar num impasse afectivo, dividido entre as leis do amor e as da amizade, não conseguindo resolver satisfatoriamente o conflito que se gera no seu íntimo. A solução para o problema do triângulo amoroso que se desenha entre Felício, Carlos e Lizarda, é encontrada por um processo frequente em novelas cervantinas, e que consiste na transformação do triângulo conflitual em quadrângulo de equilíbrio, pela adição de mais um elemento feminino (neste caso, Ângela, irmã de Lizarda), terminando a novela com o desejado desfecho feliz através da formação de dois casais.
No Desafio Venturoso é também muito evidente a presença do que Evangelina Rodriguez Cuadros classificou como a dupla articulação do aspecto individual/passional como aspecto de vinculação social, muito nítido no desenho das figuras: veja-se que as acções nobres são praticadas pelos senhores e as acções vis emanam da criada Lucinda. São ainda de destacar os aspectos de amor não-platónico, não-petrarquista, em relação à personagem principal feminina. Esta, por seu turno, fazendo eco dum costume frequente na época, quer nas novelas exemplares quer nas pastoris (em episódios intercalados), assume uma atitude varonil e até de índole criminal, pois Lizarda (se bem que para defender a sua honra) não só apunhala barbaramente Carlos, deixando-o a esvair-se em sangue, como ainda, mais tarde, disfarçada de cavaleiro, brande valorosamente a espada num duelo em que de novo põe em risco a vida do infeliz jovem.
O comportamento vil da criada, fulcro do engano à volta do qual gira toda a acção da novela, é eficazmente contrastado com o gesto impiedoso de Félix, pai de Lizarda, que ameaça matar Lucinda, castigo justificado pelo ultraje feito à sua honra. Porém o autor, que obviamente explora a situação para intensificar o cunho melodramático da narrativa, resolve a questão duma maneira elegante e caridosa, fazendo com que tanto os jovens amantes como o ofendido pai, concedam a Lucinda o seu perdão.
Dotada dum enredo que se deseja intenso e dramático, mas que não exclui os acentos líricos, esta novela em que os sentimentos e os actos estão em íntima consonância com o cenário natural, violento e dramático na serra da Estrela, idílico na serra de Sintra, possui um acentuado sabor romântico, embora datando de cerca de um século antes do próprio pré-romantismo se ter afirmado. Por outro lado, se no Desafio Venturoso há um clima de grande tensão passional, que só no fim da novela se resolve, a linguagem usada é bastante comedida, encontrando-se o empolamento mais na efabulação do que no discurso. De assinalar ainda é a presença de poemas intercalados, em português e em castelhano, segundo o costume da época, de que destacaremos pela sua particular qualidade o Soneto do folio 142v. Dentro do restrito panorama da novela barroca portuguesa, que agora começa aos poucos a ser descoberta, o Desafio Venturoso surge como uma narrativa bem urdida e bem trabalhada, que merece um lugar de destaque na ficção portuguesa de todos os tempos». In Ana Hatherly, O Desafio Venturoso, António Barbosa Bacelar, Lisboa, Assírio Alvim, 1991, Narrativa de Ficção, Memoralismo e Costumes, Prosa Moralista e Humorista, FCG, Século XVII, HALP, 2005, ISSN 1645-5169.

Cortesia de FCG/JDACT

Um Rei Avesso à Política. Fernando II. Maria Antónia Lopes. «Preocupadas com este problema dinástico, dez dias depois da morte do príncipe Augusto, e sem contemplações pelos sentimentos da pequena viúva, as câmaras de deputados e dos pares aprovaram uma petição à rainha para que se iniciassem diligências para um novo casamento»

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Convite para ser rei. A escolha de Fernando Augusto de Coburgo
«(…) Mas esta reunia tão poucas vezes que pouco tempo lhe iria tomar. O príncipe já mostrara ser homem inteligente e ter as artes como a sua maior paixão. Era, pois, uma vida agradável e sem preocupações que se previa para Fernando Coburgo-Koháry. Mas eis que em Setembro de 1835 o seu pai recebe uma proposta de tal forma inesperada e lisonjeira que se assustou. Pediam-lhe o primogénito para marido da rainha de Portugal, D. Maria II. Fernando Jorge Coburgo era um homem muito prudente e tinha razões para não aceitar de imediato um pedido que, embora pudesse transformar o filho em rei, também podia destruir-lhe o futuro. Portugal estava na penúria depois da guerra civil só terminada no ano anterior em Maio de 1834, com e vitória dos partidários de uma monarquia constitucional. Mas esta estava longe de se considerar estabelecida e o novo regime não fora ainda reconhecido por muitas potências, nomeadamente a Áustria. Metternich, com quem Fernando Jorge. Coburgo tinha de manter bom relacionamento, era um adversário das ideias constitucionais, desejando ver o infante Miguel no trono português, pouco se importando com o facto de D. Maria II ser neta do imperador reinante. As simpatias pelo infante D. Miguel estendiam-se à Prússia, país amigo do ducado de Coburgo.
Pedro IV o rei de Portugal que abdicara na filha D. Maria e que se pusera à frente das forças vitoriosas, assumindo depois a regência do reino em nome da pequena rainha, morrera com apenas 35 anos, meses depois da vitória definitiva e do exílio de Miguel. D. Maria fora declarada maior uns dias antes da morte do pai, aos 15 anos, e, sendo vital assegurar a continuidade da dinastia, rapidamente casada com um irmão da madrasta, Augusto de Beauharnais, duque Leuchtenberg, noivo escolhido por Pedro. A escolha desagradou à corte francesa, que não podia ver com bons olhos um neto de Napoleão no trono português. Mas, dois meses após a sua chegada a Portugal, o príncipe Augusto faleceu, em Março de 1835. Levantaram-se distúrbios, houve acusações de assassínio, rumores sobre pessoas interessadas no trono. Se uma doença levasse a rainha, como sucedera ao pai e ao jovem marido, ninguém duvidava de que haveria nova guerra civil. Esclareça-se que as irmãs inteiras de D. Maria eram brasileiras e residiam no Brasil. A sua meia-irmã, D. Maria Amélia (1831-1853), filha de Pedro IV e da segunda mulher, Amélia de Beauharnais, tinha apenas 3 anos e vivia com a mãe em Lisboa, não tendo sido ainda reconhecida como princesa do Brasil. Existiam também duas tias da rainha: a infanta D. Isabel Maria (1801-1876), solteira, que fora regente do reino à morte do pai (João VI), e a infanta D. Ana de Jesus (1806-1857), que nesse ano se separou do marido, o então marquês de Loulé. Destes havia filhos, mas como o casamento da infanta não fora permitido pelo rei, nem Loulé nem os filhos eram considerados membros da família real. Nada disso obviava a que qualquer um destes nomes viesse a ser apoiado na subida ao trono. Existia também, é claro, o candidato mais temível: o infante Miguel, ex-soberano que desde o ano anterior vivia no exílio. Era portanto uma situação muito perigosa. Para complicar ainda mais o cenário, dizia-se ainda que o duque de Palmela planeava casar um filho com a rainha, que pretendia controlar, e que por isso teria envenenado Augusto de Beauharnais.
Preocupadas com este problema dinástico, dez dias depois da morte do príncipe Augusto, e sem contemplações pelos sentimentos da pequena viúva, as câmaras de deputados e dos pares aprovaram uma petição à rainha para que se iniciassem diligências para um novo casamento. A jovem, mal saída da adolescência, já se revelara personalidade enérgica, corajosa e pragmática. Percebeu que não podia adiar esse passo, que ter descendência era de absoluta necessidade e que, para evitar dissensões, o noivo teria de ser estrangeiro. A busca começou de imediato. Francisco Almeida Portugal, conde do Lavradio, foi encarregado de o encontrar e conduzir as negociações, partindo para Londres a 26 de Maio de 1835. Foi ele, plenipotenciário da rainha, que enviou a Fernando Jorge Coburgo a proposta de casamento. Ao sair de Lisboa, Lavradio ia incumbido de negociar o casamento da rainha com o duque de Nemours, segundo filho de Luís Filipe de Orleães, rei dos Franceses. Nemours era de estirpe real, católico, filho de rei constitucional e de um país aliado. D. Maria II, que era sobrinha-neta de Maria Amélia, rainha dos Franceses, convivera com a família Orleães quando residira em Paris, primeiro com o pai e depois ao tempo em que decorria a guerra civil portuguesa. Tornara-se até amiga de Clementina, uma das filhas dos monarcas franceses, com quem manteve correspondência. O duque de Nemours era, pois, o candidato ideal. Contudo, tanto a rainha como o governo sabiam haver fortes possibilidades de um veto inglês. Lavradio estava então incumbido de tentar o casamento com Luís, duque de Nemours, ou com o irmão Francisco, príncipe de Joinville, mas no caso de se revelarem inviáveis, deveria procurar outro noivo. Este teria de perfilhar ideias constitucionais e merecer o aval da Inglaterra e da França, que eram as potências dominantes da Quádrupla Aliança, assinada por esses dois países e por Portugal e Espanha no ano anterior». In Maria Antónia Lopes, D. Fernando II, Um Rei Avesso à Política, Círculo de Leitores, 2013, ISBN 978-972-42-4894-3.

Cortesia de CL/JDACT

Perfil Histórico do Século XVII. Vida Mundana de um Frade Virtuoso. Alberto Pimentel. «A philosophia, uma cousa sabia que se inventou para explicar todas as virtudes e todos os vicios da natureza humana, abrange perfeitamente qualquer d’estas modalidades pathologicas de hysterismo conventual»

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De acordo com o original.

O capitão ‘Bonina’
«(…) Costa e Silva, no Ensaio biographico-critico, diz com razão: … qualquer freira divertia-se mais, e gozava de mais liberdade no claustro do que na casa paterna, e por isso as donzellas tinham tão pouca repugnância em tomar o véo. Ninguém se julgava taful de bom tom, sem ter a sua freira, e uma freira não só era uma amante apaixonada, mas uma protectora poderosa, porque per si, ou pelas suas amigas, tudo conseguia, e pedia tudo para aquelle por quem se interessava! Os conventos ardiam em corrupção de galanterias, a que raras almas resistiam. A tentação ia de fora para o interior dos conventos, e vinha do interior dos conventos para fora. Frasqueirinhas a my de França com aguas de cheiro?, escrevia Francisco Manuel a uma religiosa sua parenta. Huy, Senhora!, não faça isso. Mande-me V. M. bons conselhos, e não queira trazer-me á memoria que houve regalos na vida, e que perdi eu os de V. M.
As freiras do século XVII foram por via de regra magníficos exemplares de hysterismo, por ventura principalmente derivado das condições habituaes da existência monástica, e açulado pela licença dos costumes da epocha. Umas espiritualisavam beatificamente os seus amores no vulto intangível de um esposo ideial, Jesus Christo, que as visitava nas cellas e no coro, pertencendo aos physiologistas explicar se n’esses arroubos mysticos o corpo não partilhava da voluptuosidade amorosa do espirito. As chronicas andam cheias d’estes exemplos. Outras pendiam, impellidas por maior violência de temperamento, a uma sensualidade menos espiritual, permitta-se-me a expressão, e procuravam a realidade deleitosa de um amante menos divino do que Jesus. Avulta n’este caso como exemplo a religiosa portugueza, auctora das celebres Cartas, que Luciano Cordeiro acaba de estudar notavelmente, e que se suppõe ter sido soror Marianna Alcoforado, tomando como ponto de partida a revelação lançada, quasi século e meio depois, n’um exemplar do Diccionario de Brunet, pertencente a Boissonade.
A philosophia, uma cousa sabia que se inventou para explicar todas as virtudes e todos os vicios da natureza humana, abrange perfeitamente qualquer d’estas modalidades pathologicas de hysterismo conventual. No primeiro dos casos citados, encosta-se ao hespanhol Molinos, que também no século XVII sustentou a doutrina quietista da absorpção em Deus. No segundo caso, as freiras seiscentistas podiam desculpar-se, á sombra da philosophia, com o pantlieismo idealista de Amaury de Chartres, que floresceu no século XII, segundo o qual as creaturas não são mais do que as formas individuaes da substancia divina, única e una; ou ainda talvez melhor com o pantheismo materialista de David de Dinant, para o qual Deus era a matéria universal, essência de tudo, sempre idêntica, nos homens ou nas cousas. Luciano Cordeiro parece ligar uma grande influência ao quietismo de Molinos na vida conventual do século XVII; mas a philosophia influenciadora das freiras já vinha de muito longe, de David de Dinant por exemplo, ou, mais longe ainda, do pantheismo oriental de Scoto. Ha na Torre do Tombo um manuscripto de que eu pude extrair algumas indicações, interessantes e novas, para reconstruir a vida mundana de António Fonseca Soares. A este manuscripto, que abrange a chronica do convento de Jesus em Setubal começada em 1797 e acabada em 1803, terei de referir-me varias vezes. Escreveu-o uma religiosa d’aquelle convento, soror Anna Maria do Amor Divino, que, com discreta dicacidade, dá noticia da relaxação a que ali havia chegado a vida monástica». In Alberto Pimentel, Vida Mundana de um Frade Virtuoso, Perfil Histórico do Século XVII, PQ9191A65Z18, Livraria António Pereira, Lisboa, 1889.

Cortesia de LPereira/JDACT

terça-feira, 28 de outubro de 2014

Crónica de Almançor. Sultão de Marrocos (1578-1603). Dias Farinha. «Bernardino [de Mendoza], capitão das galés do Imperador [comandava uma esquadra de vigia no Estreito] veio ter a Ceita com Afonso Noronha, capitão] haverá oito dias, para concertar com ele irem ambos a Targa a saqueá-la […]»

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A Época. Os Portugueses em Marrocos no século XVI
«(…) Os biógrafos de Luís de Camões situam a sua presença em Ceuta entre 1549 e 1551. O Poeta terá, permanecido naquela cidade como membro da guarnição e combatido nas frequentes escaramuças com os Mouros. Numa delas terá, perdido um dos olhos, efeméride que alguns autores consideram ter ocorrido durante um combate naval no estreito de Gibraltar. Na Elegia II, o Poeta descreve-nos o monte Acho, em Ceuta, de maneira que sugere a sua permanência no local:

Subo-me ao monte que Hércules Tebano
do altíssimo Calpe dividiu,
dando caminho ao mar Mediterrano;
dali, estou tenteando aonde viu
o pomar das Hespéridas, matando
a serpe que a seu passo resistiu.

Nos Lusíadas surge-nos uma descrição semelhante quando se refere a Espanha:

Com Tingitânia entesta, e ali parece
que quer fechar o Mar Mediterrano,
onde o sabido Estreito se enobrece
co'o extremo trabalho do Tebano.

A comparação de Nuno Álvares, cercado pelos castelhanos, ao leão atacado pelos caçadores junto a Ceuta, parece ser uma recordação da época em que permaneceu naquela praça:

Está ali, Nuno, qual pelos outeiros
de Ceuta está o fortíssimo leão,
que cercado se vê dos cavaleiros
que os campos vão correr de Tetuão:
perseguem-no com as lanças, e ele, iroso,
torvado um pouco está, mas não medroso.

Com torva vista os vê, mas a natura
ferida e a ira não lhe compadecem
que as costas dê, mas antes na espessura
das lanças se arremessa, que recrescem.
Tal está o cavaleiro, que a verdura
tinge co’o sangue alheio […]

O episódio em que o cativo Pero Galego caçou um leão, narrado por António Saldanha na Crónica de Almançor, comprova a abundância daqueles animais no Magrebe, apesar de ter ocorrido meio século depois. A cidade de Ceuta era governada, no tempo de Camões, por Afonso Noronha, quarto filho de Fernando, 2.º marquês de de Vila Real, que desempenhou aquelas funções de 1538 a 1550. A época era de profunda crise para as armas portuguesas. Em 1541 perdera-se Agadir e, no mesmo ano, foram evacuadas as fortalezas de Safim e de Azamor. Os navios de Argel cruzavam incessantemente o estreito de Gibraltar numa desgastante luta de pirataria. As necessidades económicas do reino acentuavam-se e o abastecimento regular das praças era muito afectado. Sobre tudo isto crescia o poder dos Xarifes que, vindos do sul, iam reduzindo o território sob domínio da dinastia oatácida de Fez, até que conseguiram a unificação do país sob o governo de Mawlây Muhammad al-Shaykh (Mulei Mahamede Xeque) em 1549. A situação preocupava o reino, pelo que João III pretendia negociar uma aliança defensiva com a Espanha e com o monarca oatácida contra o Xarife. Procuraram-se informações dos avanços deste enquanto se combatiam os piratas barbarescos e turcos junto do estreito de Gibraltar.
Domingos Lopes Barreto, feitor em Puerto de Santa Maria, em carta a João III, datada de 9 de Julho de 1547, relatava uma dessas escaramuças: Bernardino [de Mendoza], capitão das galés do Imperador [comandava uma esquadra de vigia no Estreito] veio ter a Ceita com Afonso Noronha, capitão] haverá oito dias, para concertar com ele irem ambos a Targa a saqueá-la […] A gente que saltou em terra, houve nela desordem, em que os mouros lhe mataram seis ou sete homens e feriram 20 [...] De Ceuta foi com Bernardino o adail e almocadém Fernão Noronha cada um em seu bergantim: vieram a salvamento com a gente que foi na sua companhia [... ] A nova de navios de turcos e andarem nesta costa e no Estreito sete fustas e bergantins e uma galeota que tem feito dano em tomarem alguns navios de que se salvou a gente». In António Dias Farinha, Crónica de Almançor, Sultão de Marrocos (1578-1603), Investigação Científica Tropical, Lisboa, 1997, ISBN 972-672-864-9.

Cortesia de IICT/JDACT

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Botequim da Poesia. Alberto Caeiro. «Que é vento, e que passa, e que já passou antes, e que passará depois. E a ti o que te diz? Muita coisa mais do que isso, fala-me de muitas outras coisas. De memórias e de saudades e de coisas que nunca foram»

jdact e wikipedia

O Guardador de rebanhos
[…]
«Quando eu morrer, filhinho,
seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu ao colo e leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
e deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde
para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
até que nasça qualquer dia
que tu sabes qual é.

Esta é a história do meu Menino Jesus.
Por que razão que se perceba
não há-de ser ela mais verdadeira
que tudo quanto os filósofos pensam
e tudo quanto as religiões ensinam?

IX

Sou um guardador de rebanhos.
O rebanho é os meus pensamentos
e os meus pensamentos são todos sensações.
Penso com os olhos e com os ouvidos
e com as mãos e os pés
e com o nariz e a boca.
Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la
e comer um fruto é saber-lhe o sentido.

Por isso quando num dia de calor
me sinto triste de gozá-lo tanto,
e me deito ao comprido na erva,
e fecho os olhos quentes,
sinto todo o meu corpo deitado na realidade,
sei a verdade e sou feliz.


X

Olá, guardador de rebanhos,
Aí à beira da estrada,
que te diz o vento que passa?

Que é vento, e que passa,
e que já passou antes,
e que passará depois.
E a ti o que te diz?

Muita coisa mais do que isso,
fala-me de muitas outras coisas.
De memórias e de saudades
e de coisas que nunca foram.

Nunca ouviste passar o vento.
O vento só fala do vento.
O que lhe ouviste foi mentira,
e a mentira está em ti.

XI

Aquela senhora tem um piano
que é agradável mas não é o correr dos rios
nem o murmúrio que as árvores fazem...

Para que é preciso ter um piano?
O melhor é ter ouvidos
e amar a Natureza.

XII

Os pastores de Virgílio tocavam avenas e outras coisas
e cantavam de amor literariamente.
Depois - eu nunca li Virgílio.
Fara que o havia eu de ler?

Mas os pastores de Virgílio, coitados, são Virgílio,
E a Natureza é bela e antiga».
[…]
Parte do Poema de Alberto Caeiro (Fernando Pessoa), in ‘Poesias
ISBN 978-972-617-195-9

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Joana. A Louca. Rainha Joana I de Espanha. Linda Carlino. «Bem, o vosso amigo tratou de ver que a roupa de fora se adequava à ocasião, mas, Deus me valha, quando ele tirou o manto e a jaqueta para se deitar no leito matrimonial, confesso-vos que quase rebentei a rir. Os movimentos eram tão cautelosos que me prenderam a atenção…»

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Casamento
«(…) Chegara a hora de ela saber a verdade. Ninguém pode ficar indiferente perante a morte de nove mil homens! E confirmou aquele número terrível com um aceno de cabeça. Tinham morrido nove mil homens porque a rainha Isabel quisera impressionar o mundo com o poder da Espanha e enviara uma armada ridiculamente grande. Tinham morrido nove mil homens, porque Filipe chegara mais de um mês atrasado e depois não suportara a ideia da partida da irmã. Tinham morrido nove mil homens porque o tempo invernoso piorara tanto que era impossível os navios zarparem. E muitos mais podiam ainda morrer. - Que posso dizer? Lamento tanto. Se ao menos... Eu devia ter tento na língua, mas não passo de um idiota. Vós não podíeis fazer nada, mas o arquiduque tem de ajudar. - Pegou-lhe na mão. - Querida menina, não vos devia ter sobrecarregado com isto. Ide e preocupai-vos com o que haveis de vestir para o baile desta noite. Estaria zangado com ela? Faria troça? Estaria atentar dizer-lhe que chegara a altura de Joana partilhar alguma responsabilidade? Não tinha a certeza, mas pensou ser preferível supor que ele estava verdadeiramente preocupado com a sua felicidade e lamentava ter deixado escapar aquelas notícias tremendas. Joana escutou e concordou com todos os pontos que iriam apresentar a Filipe. Disse-lhes que tinha a certeza de que seriam bem-sucedidos. Despediu-se e ficou a vê-los sair da sala. Por momentos, ficou pensativa, pois as coisas estavam sérias. Todavia, Filipe iria responder generosamente a todos os seus pedidos por uma questão de honra.
Chamou Maria com o coração pesado e pediu-lhe que a acompanhasse à sala de vestir para a ajudar a preparar-se para o baile que agora lhe parecia tão deslocado. Contudo, todos os pensamentos desagradáveis se desvanecerem, à medida que saiotes, camisetas, saias azuis, corpetes e, por fim, mangas eram atados, abotoados, laçados ou cozidos no seu lugar. Quando todo o procedimento chegou ao fim, Joana antecipava já, feliz, a alegria do banquete e do baile que se lhe seguiria. Margarida chegara e iria juntar-se a eles, o que asseguraria uma noite animada. A sua companhia era sempre tão divertida; sabia sempre as melhores adivinhas e contava histórias divertidíssimas. Joana e Margarida estavam sentadas juntas a descansar depois de dançarem, rodeadas por algumas damas e cavalheiros da corte. Todos competiam entre si para contar a melhor adivinha. - É a minha vez, insistiu Joana.

Brando é o campo,
negra é a semente,
o homem que semeia
é bom conhecedor.

Madame Halewyn, uma mulher duríssima que Filipe colocara recentemente entre o pessoal de Joana, olhou-a desdenhosamente do alto do seu nariz bem esculpido.
- Toda a gente sabe essa! - E, sem dar a ninguém a oportunidade de adivinhar, disparou-lhe a sua própria adivinha.

Ao pé de um boi é pequeno,
ao pé de um ovo, ainda é mais pequeno.
É mais amargo que a bílis,
mas mais doce que uma alface.

Joana ficou totalmente perplexa e nada lhe ocorreu. A intenção da Halewyn seria fazê-la passar por estúpida? Margarida pegou na mão dela, rindo-se. - Porque dirá, ela adivinhas tão difíceis quando sabe perfeitamente que nenhum de nós tem a inteligência suficiente para adivinhar a resposta? E onde é que as vai buscar? Portanto, Halewyn, dizei-nos o que é essa tal coisa minúscula. - Acho que vós fingis não saber, mas pensei que a princesa, tão culta, teria reconhecido uma amêndoa imediatamente, cortou Halewyn. - Não, não, assim não vale, comentou Margarida para o grupo, encorajando os seus protestos. - Era demasiada obscura e nada inteligente. Seja como for, quero contar-vos uma história interessante sobre aquele cavalheiro muito alto que está além, o magro com uma expressão séria. Seguiram-lhe o olhar até o identificarem e Joana sussurrou: - É Francisco de Rojas, o embaixador dos meus pais perante o vosso pai. - Exactamente, e a minha história é sobre ele. Aproximaram-se mais uns dos outros, os homens sentados aos pés das damas, alguns apoiados nos cotovelos no meio das longas saias, todos ansiosos pela coscuvilhice. – Bem, quando ele veio como procurador dos nossos casamentos, chegou cá usando roupas muito simples, totalmente inadequadas a uma ocasião tão solene. Reza a história que um amigo lhe ofereceu uma bela jaqueta e um manto de brocado. Imaginem um homem assim alto, de cabelos e olhos negros, vestido de verde-azeitona, uma cor que faz realçar as suas belas feições. Mas voltando à minha história; a melhor parte foi quando ambos tivemos de nos deitar no leito matrimonial. - Margarida começou a rir-se e todos se aproximaram ainda mais, não fossem perder uma palavra, enquanto alguns deitavam outra olhadela ao embaixador alto e magro que naquela noite trajava de negro. Ia ser uma das melhores histórias de Margarida e logo sobre alguém presente na sala.
Bem, o vosso amigo tratou de ver que a roupa de fora se adequava à ocasião, mas, Deus me valha, quando ele tirou o manto e a jaqueta para se deitar no leito matrimonial, confesso-vos que quase rebentei a rir. Os movimentos eram tão cautelosos que me prenderam a atenção e não pude deixar de notar os calções, demasiado largos, e que não estavam bem atados ao gibão, o que fazia com que a camiseta caísse por entre os laços. Eram metros e metros de linho, parecia a vela de um barco, enquanto ele ia avançando para mim. Agradeci a Deus o facto de a camiseta ser suficiente para proteger os meus olhos inocentes de algo mais chocante que a sua roupa interior. Mordi o lábio com força para não me rir e depois fechei os olhos para não ter de contemplar tal visão. Riram-se sem parar, lançando olhares a Francisco, uma imagem vívida da sua roupa interior rebelde implantada nas suas memórias. A voz irada do responsável pela segurança dos cavalos durante a viagem de Espanha interrompeu-lhes as gargalhadas. - Senhores, este comportamento é intolerável. Em Espanha, nenhum cavalheiro seria tão descortês que se sentasse tão perto de uma dama. E vós, conde, em vez de vos comportardes como estes..., estes flamengos, deveríeis dar o exemplo das boas maneiras de uma corte. Que pensariam o rei e a rainha de vos verem sentado sobre as saias da princesa Joana, com a vossa cabeça quase a tocar na sua real pessoa? - Bem, seu novato, como vos atreveis? - Atrevo-me porque defendo a honra da minha senhora! - Assim sendo, ficarei muito satisfeito por dar a oportunidade de fazer justamente isso!» In Linda Carlino, That Other Joana, 2007, Joana, a Louca, Editorial Presença, Lisboa, 2009, tradução de Isabel Nunes, ISBN 978-972-23-4231-5.

Cortesia de E. Presença/JDACT

A Mística do Instante.O Tempo e a Promessa. Tolentino Mendonça. «… quanto mais a alma vai às escuras, e vazia de suas operações naturais, tanto mais segura vai. A subida ao monte místico implicava tomar como programa esta noite sensitiva: procurar o espiritual e interior e combater o espírito da imperfeição segundo o sensual e exterior»

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Para uma espiritualidade do tempo presente
«Se tivéssemos de buscar um sinónimo para espiritualidade diríamos, sem muito risco de errar, interioridade. E interioridade parece ser também a noção mais afim à ideia de mística. Fecha a porta dos teus sentidos/e procura Deus no profundo, propunha um dos expoentes do pietismo no século XVIII. A sua proposta representa bem aquilo que poderíamos designar por mística da alma. De que se trata, afinal? Da consideração de que o caminho que nos conduz a Deus é fundamentalmente um exercício interior que implica uma relativização ou mesmo uma renúncia dos sentidos corporais. Para alcançar o divino a alma tem de mergulhar na própria alma. O divino oculta-se às possibilidades do corpo e à sua gramática, e não se deixa detectar senão pelo radar da profundidade mais estrita. O divino é o mistério. A via para ele passa por desligar-se do mundo, do mundo habitual e quotidiano, e reentrar no espaço interior, esse sim, a morada que guarda Deus religiosamente.
Numa obra que teve um grande impacto na imaginação cristã, e que trazia  emblemático título de A verdadeira religião, Santo Agostinho dizia: Não saias para fora de ti, retorna a ti mesmo, porque a verdade habita no homem interior. Há que reconhecer que grande parte de mística cristã, mais antiga e até contemporânea, glosou indefinidamente este motivo, o que mostra quanto é oportuna uma releitura desse precioso património à luz de uma antropologia mais integradora. O grande São João da Cruz, por exemplo, na segunda metade do século XVI, explicava que quanto mais a alma vai às escuras, e vazia de suas operações naturais, tanto mais segura vai. A subida ao monte místico implicava tomar como programa esta noite sensitiva: procurar o espiritual e interior e combater o espírito da imperfeição segundo o sensual e exterior. Mas esse modelo marcou e marca ainda referentes da mística cristã mais próximos de nós. Em pleno coração comercial de Louisville, cidade do Estado americano do Kentucky, há uma placa a assinalar que ali, no ano de 1958, ocorreu a segunda conversão do monge trapista Thomas Merton. Nessa época, ele já era mundialmente conhecido como autor no domínio da espiritualidade. O volume que o tinha lançado, dez anos antes precisamente, havia sido a sua autobiografia, A montanha dos sete patamares, onde o paradigma da fuga ao mundo estava completamente presente. Andando agora por Louisville, abraçando a marcha frenética de uma multidão naquele epicentro comercial, Merton teve a intuição de que afinal não existia diferença alguma ou separação entre ele e aquele povo desencontrado e sedento. Sentiu-se simplesmente membro da família humana, da qual o próprio Filho de Deus quis fazer parte. Nascia assim uma nova etapa da sua espiritualidade, crítica em relação à primeira. Thomas Merton percebia que a mística só pode ser uma experiência quotidiana, solidária e integrativa.

Há mais espiritualidade no corpo
De um lado, a excessiva internalização da experiência espiritual e, de outro, o distanciamento do corpo e do mundo permanecem, porém, em grande medida, características destacadas da espiritualidade que se pratica. O que é espiritual vem considerado superior àquilo que vivemos sensorialmente. O primeiro é estimado como complexo, precioso e profundo. O segundo é visto como epidérmico e sempre um pouco frívolo. E há uma sintomática condição descarnada na vivência do religioso, que se refugia voluntariamente numa representação de alteridade em relação ao mundo, do qual se considera (vem sendo considerado) distante, para não dizer estranho. Na chamada mística da alma, o Espírito divino é radicalmente outro face ao instante presente. E face ao destino histórico e pungente das criaturas». In José Tolentino Mendonça, A Mística do Instante, O Tempo e a Promessa, Colecção Poéticas do Viver Crente, Série JTM, Paulinas Editoras, 2014, ISBN 978-989-673-396-4.

Cortesia de Paulinas/JDACT