sexta-feira, 10 de outubro de 2014

O Museu das Palavras. António Galrinho. «Era muito novo, mas o contacto regular que há alguns anos tinha com a livraria, e a aprendizagem feita com o meu tio, sobretudo nos períodos de férias escolares, facilitaram-me o começo»

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Tempo de Apresentar. Uma herança peculiar
«(…) E continuou: - Em tempos pensei fazer disto um pequeno museu de trabalhos de ferreiro, quando abandonasse o oficio, mas desisti da ideia. Mas olha que ficava aqui bem uma livraria!, que é uma espécie de museu das palavras, não é? Espantado com o discurso do velho ferreiro, logo nesse momento o meu tio decidiu qual seria o nome da livraria. Naqueles tempos, os imóveis antigos tinham pouco valor, mesmo os situados no centro da cidade, pois não havia a dinâmica comercial nem a procura que viria a surgir anos mais tarde, que muito os valorizaria. Sem recorrer a empréstimo nem a qualquer documento escrito, o meu avô pagou a loja em cinco anos, tal como combinado com o ferreiro. Para reforçar a ideia de um museu de palavras, o meu tio expôs uma máquina de escrever antiga sobre uma secretária, ao lado de pequenas pilhas de livros ainda mais antigos. Coisa curiosa era o facto de, regularmente, ele procurar nos dicionários uma palavra e escrevê-la com aquela máquina numa pequena cartolina. A palavra era escrita com maiúsculas vermelhas e sob ela o significado, a preto. Colocava uma dezena desses papelinhos na livraria, em pequenos expositores de madeira, inclinados. Cada dia substituía um. Os clientes olhavam-nos curiosos, olhavam e olham, pois eu continuo a fazer rodar as centenas de cartolinas que ele deixou guardadas na gaveta da secretaria, onde continuam. Agora já estão amarelas e começam a ter o cheiro próprio do papel antigo e muito mexido. Tornaram-se também peças de museu, e talvez também por isso suscitem a curiosidade dos clientes.
A planta da livraria tem a forma de um L, gordo, virado para baixo do lado de quem entra. A ponta do braço mais curto é um recanto à direita, por trás do volume ocupado pela escada que dá acesso ao andar de cima. Debaixo da escada está uma retrete minúscula, também a arrecadação dos apetrechos de limpeza. O tecto é atravessado por fortes e toscos barrotes, onde assenta o soalho que serve de chão ao andar de cima. No barrote do meio, mais volumoso do que os outros, permanece um gancho de ferro, com cerca de um palmo, a que o ferreiro dava uso no seu trabalho. Essas madeiras, escurecidas pelo tempo, jogam bem com as grandes pedras centenárias do chão, toscas, irregulares e polidas pelo uso, que o meu tio fez questão de preservar. A secretária com a máquina de escrever está encostada ao fundo, com a frente virada para quem entra. Ao seu lado, uma cadeira, também antiga, convida os clientes a nela se sentarem. Um balcão, com apenas cinco palmos de comprimento e um e meio de largura, está junto à entrada, com um topo formado no pequeno espaço de parede que existe entre a porta e a pequena janela-montra. Por trás está uma cadeira alta, onde me sento quando tenho necessidade de descansar as pernas ou para tratar de assuntos mais demorados que envolvam papeladas. Tudo o mais são estantes cheias, ao ponto de quase não deixarem ver as paredes por trás.
O meu tio mexia nos livros como quem faz festas a um gato: com jeito e carinho. Assim que retirava um da prateleira, soprava-o, para expulsar o pó acumulado sobre as folhas apertadas umas nas outras. Fazia isso mesmo que não houvesse pó. Passava com a mão na capa, olhava-a e só depois abria o livro, devagar. Livros de capa fina e com muitas páginas abria-os com os polegares fazendo pressão com os restantes dedos junto da lombada, para não lhe criar vincos. Outros, com capa dura e grandes páginas, abria-os completamente, passando com as mãos por elas como quem alisa um pequeno lençol. Não teve filhos. Casou com uma mulher que sofreu durante muitos anos de uma doença rara, que a foi secando até à morte, antes dos quarenta. E não voltou a casar. Morreu com sessenta e dois anos, num dia igual a tantos outros, caindo inanimado ao virar a primeira esquina depois de ter saído da livraria. Estava eu no último ano do curso, precisamente o mesmo que o meu tio tirara, quando ele morreu. Mal o terminei peguei no negócio. Era muito novo, mas o contacto regular que há alguns anos tinha com a livraria, e a aprendizagem feita com o meu tio, sobretudo nos períodos de férias escolares, facilitaram-me o começo. Apaixonei-me por livros muito cedo, e da paixão fiz profissão». In António Galrinho, O Museu das Palavras, Temas Originais, Setúbal, Livraria Uni-Verso, 2014, ISBN 978-989-688-216-7.

Cortesia de TOriginais/JDACT