segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Inês de Castro. Da Tragédia ao Melodrama. Nair de Nazaré Soares. «Não cuidem que me posso apartar donde estou todo, onde vivo: que primeiro a terra subirá onde os ceos andam, o mar abrasará os ceos e terra, o fogo será frio, o sol escuro, a lua dará dia, e todo mundo andará ao contrairo de sua ordem que eu, ó Castro, te deixe, ou nisso cuide…»

Cortesia de wikipedia

Inês de Castro: da tragédia ao melodrama
«(…) Os monólogos e as confidências com os duplos, Inês com a Ama e Pedro com o Secretário, neste acto I, dão-nos a verdadeira dimensão dos sentimentos dos dois amantes, sem que seja necessário um encontro entre ambos, como gostaria Almeida Garrett, numa afirmação dos seus gostos românticos.

NOTA: O acto I da edição de 1587 compõe-se de uma única cena em que, após o longo monólogo do Infante, este dialoga com o Secretário. É pela voz do seu fiel e leal servidor que são aduzidos pormenores que escureciam o nome de Inês, tais como a sua bastardia e a nefasta influência dos seus parentes. Este texto segue de perto os dados cronísticos, não só nestes aspectos, como ainda no que se refere ao casamento secreto e à atitude do Infante em não o querer divulgar. Na edição de 1598 tudo permanece, no que se refere ao casamento, no plano do estritamente necessário, de forma a não desapear a protagonista do pedestal de heroína trágica. Sobre a observância, por parte de Ferreira, dos preceitos, que em Aristóteles, em Horácio e nas Poéticas do Renascimento foram aceites como suporte da unidade da acção, e que na edição definitiva da Castro serviram para valorizar semântica e esteticamente o texto (Teatro clássico no século XVI).

O infante, na cena II, monologa com a sua paixão em que ecoa o Omnia uincit amor da Écloga X virgiliana, tantas vezes glosado na poesia de Quinhentos. Mais, o exemplo do Bolonhês, o mau exemplo, na reflexão do Coro, Contr’as divinas leis, contra as humanas, justifica o carácter providencial das relações ilegítimas, já que Deus queria ...dar ao mundo o grande, / Forte, prudente e santo, um só Dinis. O diálogo com o Secretário, na última cena do acto I, serve para dar relevo à paixão de Pedro, elevada até ao paroxismo, que se exprime na tenacidade obsessiva de uma série de adynata, ao gosto de Petrarca:

Não cuidem que me posso apartar donde
estou todo, onde vivo: que primeiro
a terra subirá onde os ceos andam,
o mar abrasará os ceos e terra,
o fogo será frio, o sol escuro,
a lua dará dia, e todo mundo
andará ao contrairo de sua ordem
que eu, ó Castro, te deixe, ou nisso cuide.
Dei-te alma, dei-te fé, guardá-la-ei firme.
Confio isto de ti, não me descubras.

A terminar este acto I, actua o coro I, o Coro das moças de Coimbra, que prolonga o assunto da peça e entoa, em belíssimas estrofes de canção petrarquista, a exaltação do Amor, para logo a seguir, na antístrofe, apresentar os seus malefícios, topoi presentes já nas Trovas de Garcia de Resende, no Cancioneiro Geral. O Coro tinha já intervindo, nas duas falas da cena III do acto I, com valor semelhante ao da tragédia clássica, voz do senso comum. O acto II apresenta-nos, numa primeira cena, Afonso IV, na sua humanidade, a reflectir sobre o ofício e os trabalhos do rei, numa atitude que estabelece uma ligação perfeita com as últimas palavras do Secretário, no acto I. Confessa o Rei o seu desassossego, causado pelos deveres de estado e pela desobediência do filho, que teima na sua ligação amorosa com Inês:

...é mais seguro
a si cada um reger, que o mundo todo.

O debate entre o Rei e os Conselheiros espraia-se em considerações teóricas, constantes da tratadística pedagógico-política renascentista, adequada aos horizontes e expectativas culturais do público. Quando a teoria dá lugar ao caso concreto de Inês, esses princípios gerais são aplicados pelos conselheiros do rei de forma a justificarem a necessidade, a ananke trágica, e urgência da morte de Inês. O rei reitera a inocência da protagonista, propõe alternativas, outros meios, para impedir a sua morte: Não haverá outro meio? e Matá-la é cruel meio, e rigoroso. Intensifica-se a acção dramática, a que corresponde um ritmo em esticomitia e mesmo em antilabe, a exprimir o vigor do agon; acentua-se a intencionalidade trágica, traduzida semanticamente, a nível dos lexemas utilizados, na repetição insistente da antinomia morrer / matar. Vence, num primeiro momento, a tolerância, a clemência régia, que dá lugar, num segundo momento, à pusilanimidade e à inconstância, que se opõem ao ideal estóico do governante, identificado nas tragédias de Séneca com a figura do sapiens». In Nair Nazaré Castro Soares, Inês de Castro, Da Tragédia ao Melodrama, Universidade de Coimbra, As Artes de Prometeu, homenagem a Ana Paula Quintela, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2009, ISBN 978-972-8932-42-8.

Cortesia da FLUPorto/JDACT