domingo, 19 de outubro de 2014

Crónica de Almançor. Sultão de Marrocos (1578-1603). Dias Farinha. «A retumbância europeia do feito e a sua consagração no concílio de Trento foi propícia aos adeptos da expansão ao “pé da porta” contra os da longínqua empresa oriental. A população das nossas praças de Marrocos era formada por fronteiros e moradores»

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A Época. Os Portugueses em Marrocos no século XVI
«(…) A perda de Santa Cruz do Cabo de Guer, em 1541, precipitou a tomada de decisão. Safim e Azamor, na zona meridional de Marrocos, foram abandonadas no mesmo ano; Arzila e Alcácer Ceguer conheceram a mesma sorte em 1550, após a conquista do reino de Fez pelo xarife sádida. Mantiveram-se apenas as cidades de Mazagão, Tânger e Ceuta que foram dotadas de novas e imponentes fortificações, aptas a resistir ao cerco dos inimigos providos de artilharia. A opção foi clara: mantinham-se os dois pontos estratégicos do estreito de Gibraltar, de onde (sobretudo de Tânger) se tornava possível a invasão de Fez, e guardava-se uma porta (Mazagão) que permitia a entrada no reino de Marraquexe. Esta fortaleza foi dotada de um porto importante para a época que continuou a ser um dos ancoradouros mais seguros de toda a orla atlântica de Marrocos até à construção das modernas instalações portuárias de Casablanca. Após o abandono das praças, concentraram-se as forças, aumentaram as motivações, agora excitadas pelo pecado do abandono, mas manteve-se a dúvida quanto ao melhor rumo da Expansão Portuguesa e, nessas condições, permaneceu o sonho ou projecto de conquista marroquina. O grande cerco de Mazagão, em 1562, tornou-se uma referência muito significativa do longo percurso magrebino dos Portugueses.
O povo do Algarve, de Lisboa, do Porto, de toda a orla marítima comoveu-se com a sorte dos sitiados e um considerável auxílio foi mobilizado antes mesmo da decisão da regente D. Catarina. A vitória obtida surgiu como uma prova da capacidade portuguesa contra os exércitos sitiantes e afigurava-se de molde a permitir novos êxitos. A retumbância europeia do feito e a sua consagração no concílio de Trento foi propícia aos adeptos da expansão ao pé da porta contra os da longínqua empresa oriental. A população das praças portuguesas de Marrocos era formada principalmente por duas categorias: os fronteiros e os moradores. Os primeiros constituíam a gente de armas, geralmente fidalgos, que ali iam servir por um período de dois ou três anos e que levavam um séquito de servidores que os auxiliavam na guerra. Os moradores eram a população permanente, ali estabelecida de longa data. Desempenhavam as tarefas mais humildes, asseguravam o comércio e mantinham uma agricultura de subsistência, aproveitando as terras vizinhas e as possibilidades da pastorícia (…).
Nestas condições, a sua resolução era descoordenada e, assim, assistiu-se a uma multiplicidade de centros de decisão com sede em cada uma das praças. Tal divisão não poderia servir iniciativas comuns contra o inimigo. O abastecimento das praças portuguesas foi geralmente muito irregular. Quando não era possível fazer comércio com o território marroquino, e essa era a situação normal em período de crise, o único recurso era o envio frequente de navios com mantimentos idos do continente, da Andaluzia ou das ilhas do Atlântico. Sempre que a administração faltava, ou demorava os seus fornecimentos, havia carências naquelas fortalezas que chegavam a pontos críticos de fome e de desespero. A numerosa correspondência que se conserva nos arquivos portugueses, e que em parte está publicada, abunda em referências às dificuldades económicas e às situações de dramatismo vividas pelos fronteiros e moradores nas praças de África.
As dúvidas sobre os rumos que a Expansão deveria adoptar foram bem equacionadas por Luís de Camões que exprimiu as incongruências da política seguida no Oriente e as dificuldades da conquista do Magrebe, mas, ao mesmo tempo, exaltou a epopeia protagonizada pelos portugueses em circunstâncias assaz difíceis. Alguns dos seus versos esclarecem a situação de embaraço lusitano perante os caminhos a percorrer e o clima político-militar que condicionou a atitude várias vezes referida pelo Autor da Crónica de Almançor». In António Dias Farinha, Crónica de Almançor, Sultão de Marrocos (1578-1603), Investigação Científica Tropical, Lisboa, 1997, ISBN 972-672-864-9.

Cortesia de IICT/JDACT