quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Sobre Arte. Técnica. Linguagem. Política. Walter Benjamin. «Mas o recurso à explicação por mal-entendidos na acção de formações espirituais não costuma levar muito longe. Um tal apelo pressupõe um ser-em-si do conteúdo, independente do seu destino histórico»

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«(…) Benjamin tem com Kafka o mesmo grau de parentesco que com Proust. Motto da sua metafísica poderia ser a frase de que existe infinita esperança, mas não para nós, se acaso Benjamin alguma vez se tivesse rebaixado a escrever uma frase desse tipo. Não é por acaso que o centro do mais desenvolvido dos seus livros, o livro sobre o barroco, esteja na construção da tristeza como última alegoria de transmutação: a alegoria da salvação. A subjectividade que se precipita no abismo das significações faz-se formal garantia do milagre, porque anuncia a própria acção divina. Em todas as suas fases Benjamin pensou simultaneamente o ocaso do sujeito e a salvação do homem. Isso define o arco macrocósmico de cujas microcósmicas figuras esteve sempre suspenso. Pois aquilo que é característico da sua filosofia é o seu tipo de concreção. Do mesmo modo que o seu pensamento procura esquivar-se, com renovados esforços e pontos de partida, ao pensamento classificativo, assim também o nome das coisas e dos homens é para ele o protótipo de toda a esperança: a sua reflexão procura reconstruir um tal nome. Neste aspecto parece coincidir com toda a tendência geral contrária ao idealismo e ao epistemologismo, que exigia que se alcançassem as coisas em si em vez da sua forma mental e que encontrou a sua expressão académica na fenomenologia e nas tendências ontológicas dela derivadas. Mas a posição de Benjamin perante as oficiosas ideologias actuais do concreto mostra como as diferenças decisivas entre filósofos se disfarçam sempre de matizes, e como o mais irreconciliável é aquilo que parece semelhante. Benjamin penetrou na máscara dessas ideologias do concreto e descobriu por detrás delas a face do conceito extraviado, do mesmo modo que repeliu o conceito existencial-ontológico da história como mero produto de destilação de uma dialéctica histórica evaporada. A crítica e compreensão do último Nietzsche, para o qual a verdade não é idêntica ao universal atemporal, apenas o histórico dando estrutura ao absoluto, é uma norma seguida por Benjamin, ainda que provavelmente este a não conhecesse. O programa está formulado numa nota feita para a sua fragmentária obra principal e segundo a qual o eterno, em qualquer dos casos, é mais um ruche do vestido que uma ideia. Com isto Benjamin não pensou inocentemente na simples ilustração de conceitos através de policromos objectos históricos, tal como fez Simmel ao expor a sua metafísica simples da forma e vida nos objectos com asa, o actor e Veneza. O desesperado esforço de Benjamin para romper e fugir da prisão do conformismo cultural obedecia a constelações do histórico que não podem ser simples e fugidios exemplos de ideias, mesmo que na sua unicidade constituam as próprias ideias como históricas.
Um tal procedimento valeu-lhe a duvidosa fama de ensaísta. Ainda hoje, a sua auréola é a do refinado literator, como a si próprio se teria designado com a sua coqueteria de antiquário. Mas tendo em conta a radical intenção da sua hostilidade à estafada temática da filosofia e ao seu calão, a língua dos rufiões, para usar as suas palavras, é muito fácil recusar o cliché de ensaísta como simples mal-entendido. Mas o recurso à explicação por mal-entendidos na acção de formações espirituais não costuma levar muito longe. Um tal apelo pressupõe um ser-em-si do conteúdo, independente do seu destino histórico e, desde logo, a noção do que o próprio autor pensava da sua obra, coisa que nunca pode saber-se, e ainda menos no caso de um escritor tão complexo e tortuoso como Benjamin. Os mal-entendidos são o meio de comunicação do não-comunicativo. A provocadora frase de acordo com a qual um artigo sobre as Passages de Paris contém mais filosofia do que as meditações sobre o ser do ente, é mais útil para alcançar o sentido da obra de Benjamin que a procura do esqueleto conceptual sempre idêntico que ele próprio desterrou para o sótão. Além disso, ao violar as fronteiras que separam o literário do filosófico, Benjamin fez virtude inteligível da sua empírica necessidade. As universidades repeliram-no, para própria vergonha delas, enquanto o antiquário se sentia atraído pelo académico com ironia análoga à de Kafka na sua atracção pelas empresas de seguros». In Walter Benjamin, Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política, introdução de T. W. Adorno, Antropos, Relógio D’Água Editores, Lisboa, 1992, ISBN 972-708-177-0.

Cortesia de Relógio D’Água/JDACT