terça-feira, 31 de dezembro de 2019

Encanto. Luz. No 31. Elis Regina. «Que vive ao léu, perdeu seu ninho, é a esperança de um encontrar. Poema é a solidão da madrugada, um ébrio triste na calçada, querendo a lua namorar»

Cortesia de wikipedia e jdact

Poema
«Poema é noite cheia de amargura.
Poema é a luz que brilha lá no céu.

Poema é ter saudade de alguém,
Que a gente quer e que não vem.

Poema é um cantar de um passarinho,
Que vive ao léu, perdeu seu ninho,
É a esperança de um encontrar.

Poema é a solidão da madrugada,
Um ébrio triste na calçada,
Querendo a lua namorar».

Fascinação
«Os sonhos mais lindos sonhei
De quimeras mil, um castelo ergui
E no teu olhar, tonto de emoção,
Com sofreguidão, mil venturas previ

O teu corpo é luz, sedução
Poema divino cheio de esplendor
Teu sorriso quente, inebria, entontece
És fascinação, amor»

As aparências enganam
«Aos que odeiam e aos que amam
Porque o amor e o ódio se irmanam na fogueira das paixões
Os corações pegam fogo e depois não há nada que os apague
se a combustão os persegue, as labaredas e as brasas são
O alimento, o veneno e o pão, o vinho seco, a recordação
Dos tempos idos de comunhão, sonhos vividos de conviver
As aparências enganam, aos que odeiam e aos que amam
Porque o amor e o ódio se irmanam na geleira das paixões
Os corações viram gelo e, depois, não há nada que os degele
Se a neve, cobrindo a pele, vai esfriando por dentro o ser
Não há mais forma de se aquecer, não há mais tempo de se esquentar
Não há mais nada p’ra se fazer, senão chorar sob o cobertor
As aparências enganam, aos que gelam e aos que inflamam
Porque o fogo e o gelo se irmanam no outono das paixões
Os corações cortam lenha e, depois, se preparam p’ra outro inverno
Mas o verão que os unira, ainda, vive e transpira ali
Nos corpos juntos na lareira, na reticente primavera
No insistente perfume de alguma coisa chamada amor».
Poemas de Canções de Elis Regina, in Wikipedia

Cortesia de Wikipedia/JDACT

No 31. Às Portas do Inferno. Domingos Amaral. «Ramiro ajudou o Velho a desmontar, no pátio em frente à Sé, sentindo que em seis anos de convívio se forjara entre eles uma lealdade verdadeira. Agora, os seus caminhos divergiam…»

jdact

Soure. Julho de 1132
«(…) É tempo de morrer em paz. Vou para casa. Os outros não conheciam a sua terra, mas o Velho anunciou que iria para o Norte, e Ramiro aceitou a decisão dele, pois não se devia contrariar um homem daquela idade. Ele tinha o direito de falecer onde desejasse, e o bastardo de Paio Soares decidiu que o acompanharia até Coimbra, onde ia reportar a Afonso Henriques a macabra descoberta que tinham feito nas margens do Nabão. Na madrugada seguinte, em Soure, o Velho despediu-se, emocionado, dos seus companheiros templários e Ramiro mandou-o subir para o seu cavalo. Estavam curtos de animais, iriam os dois juntos, como faziam os pobres cavaleiros de Cristo na Terra Santa.
Enciumado por os ver tão próximos, o Rato atirou-lhes um adeus e avisou Ramiro de que tivesse cuidado no regresso, temendo uma emboscada sarracena. Porém, o bastardo de Paio Soares nem reagiu. No calor das suas clandestinas ternuras, Ramiro garantia sempre ao Rato que, depois das surras que o pai lhe dera em criança, nunca mais tivera medo de nada nem de ninguém.

Coimbra. Julho de 1132
Ramiro ajudou o Velho a desmontar, no pátio em frente à Sé, sentindo que em seis anos de convívio se forjara entre eles uma lealdade verdadeira. Agora, os seus caminhos divergiam, embora o Velho parecesse já arrependido da decisão que tomara. Em voz pesarosa, confessou que ia sentir saudades da camaradagem da Ordem do Templo. Ramiro confortou-o e, depois de um abraço final, subiu pelas escadas de granito da igreja de Coimbra. Em passo lento, o Velho afastou-se, curvado, arrastando os pés, mas uns metros à frente já sorria, embora se tenha mantido encolhido, não fosse alguém vê-lo. O seu talento para a mistificação continuava intacto, enganara bem os colegas. Aproveitando um momento de distracção destes, simulara uma queda desamparada, fingira-se abalado e dorido e apresentara a decisão de partida como inevitável. Por respeito, os companheiros aceitaram-na, crédulos como sempre. Ninguém desconfiara dele e, ao longo de seis anos, fizera por isso.
Alistara-se naquela Ordem a mando de Fernão Peres Trava, que era o seu senhor e lhe dera instruções para se manter vigilante em Soure. O Trava queria um homem da sua confiança integrado secretamente naquela congregação, para acompanhar a busca da relíquia sagrada trazida pelo conde Henrique da Terra Santa. Várias vezes por ano, os dois trocavam curtas mensagens, usando como cúmplice um ferreiro galego, à casa de quem o Velho se começou a dirigir. Porém, mal virou para a rua lateral à Sé, chocou com a princesa Zaida, que saía da biblioteca, muito apressada, e quase deu um trambolhão à sua frente. Desculpai-me, murmurou o Velho, atrapalhado.
A princesa endireitou-se, ajeitando as roupas e escondendo algo no regaço. Parecia claramente comprometida, como se estivesse a fazer o que não devia. A pergunta que lhe dirigiu foi mais uma tentativa de dissipar a desconfiança dele do que uma verdadeira preocupação com a sua saúde: estais bem? Pareceis doente... O Velho limitou-se a encolher os ombros: a velhice não tem cura». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, A Vitória do Imperador, Casa das Letras, LeYa, 2016, ISBN 978-989-741-461.

Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT

segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

Às Portas do Inferno. Domingos Amaral. «Ninguém sabia, mas o Velho disse que aqueles casebres, assim tão degradados, deviam estar abandonados há centenas de anos. Porque vieram até aqui os galegos?»

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Soure. Julho de 1132
«(…) Os templários de Soure benzeram-se e rezaram preces silenciosas. Depois de desmontarem, confirmaram que os mortos eram companheiros do primeiro sem cabeça, que devia ter sido enviado por Zhakaria como mensageiro da matança. Por respeito aos defuntos, cavaram uma cova, mas mesmo para homens habituados à guerra aquele foi um trabalho horrível. Os galegos haviam sido empalados vivos, tinham as lanças enfiadas pelos ânus acima, cortando os músculos e as entranhas enquanto eles morriam, o que se notava pela forma como se haviam contraído, explicou o Velho, dizendo que só depois os haviam degolado. Zhakaria está furioso. Esta violência não é hábito dele, concluiu o Rato, depois de sepultarem os galegos. Preocupado, Ramiro observou o rio Nabão e as ruínas. Alguém sabe corno se chama este sítio?
Ninguém sabia, mas o Velho disse que aqueles casebres, assim tão degradados, deviam estar abandonados há centenas de anos. Porque vieram até aqui os galegos?, interrogou-se Ramiro. Sem maneira de esclarecer o mistério, os templários decidiram regressar a Soure e montaram de novo os seus cavalos. O bastardo de Paio Soares foi o último a fazê-lo, mantendo-se algum tempo a examinar as redondezas. Pai, foi aqui que haveis vindo? Embora fosse de estatura média, Ramiro andava sempre muito direito, parecendo mais alto do que era. Tinha os ombros largos e as ancas sólidas e o Rato admirou-o, imaginando-o um comandante militar nobre, às portas da glória. Porém, espantou-se quando apenas ouviu Ramiro murmurar, para si próprio: pai, é aqui? Subitamente, ouviu-se um esgar, seguido de um ruído de alguém a tombar. Ramiro e o Rato voltaram-se para trás e viram o Velho no chão. Caíra do cavalo e parecia não só magoado, como deveras surpreendido, como se o corpo o tivesse traído. Com pena, Ramiro desmontou, correu para ele e percebeu o quanto a idade lhe pesava. Orgulhoso, o Velho afastou-o e tentou levantar-se sozinho, mas a sua perna direita cedeu e quase voltou a tombar, só não caindo desamparado porque Ramiro não deixou.
Preocupado, o Rato, que também acorrera, perguntou: companheiro, que se passa? O Velho fechou os olhos, estava com dores. Então, o Peida Gorda, apesar da sua lendária timidez, disse: é a minha vez de vos ajudar. Anos antes, o Velho sarara-lhe a ferida de uma flecha e o tempo da retribuição havia chegado. Aquele homem forte e grande, cujo rabo mais parecia um barril e cujo tronco tinha a largura de um penedo granítico, levantou o combalido e colocou-o a cavalo. Desconsolado, quase envergonhado, o Velho baixou os olhos. Chegou a minha hora. Declarou que a sua carreira de soldado estava no fim. Ninguém sabia quantos anos ele já vivera, mas Ramiro calculava que tivesse mais de oitenta invernos no lombo, pois combatera com El Cid, sessenta anos antes. Agora, dizia-se farto de piolhos e feridas, epidemias e casotas, empalados e decapitados». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, A Vitória do Imperador, Casa das Letras, LeYa, 2016, ISBN 978-989-741-461.

Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT

Um Milhão de Prazeres Proibidos. CL Parker. «Eu observava o meu pai todos os dias. Como a sua principal preocupação era a mulher, ele não cuidava de si mesmo e estava a emagrecer»

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Os sacrifícios que fazemos
Lanie
«Tens a certeza de que queres fazer isto?, perguntou-me a minha melhor amiga ninfomaníaca pela milésima vez desde que eu tinha atravessado as portas do clube nocturno onde ela trabalhava..., e actuava..., como acompanhante. Dez era o meu refúgio. Ela amparava-me quando a vida se tornava demasiado séria, e neste momento estava muito para lá de séria. Dez era o diminutivo de Desdemona, que, numa tradução livre, significava do diabo. Ela tinha mudado o nome no dia em que fizera 18 anos porque os pais se tinham recusado a autorizar a mudança antes. A sério, quando ela nascera os pais tinham-lhe chamado Princesa, mas se outra pessoa que não eles tentasse chamar-lhe aquilo seguia-se uma verdadeira luta de bar. Dez era linda de morrer, o tipo de miúda com seios generosos que é retratada em todos os romances: cabelos compridos pretos e sedosos figura de ampulheta, pernas que nunca mais acabavam e o rosto de uma deusa. O único problema é que se comportava como uma motard. E também gostava de fazer a rodagem a todos os modelos. Como eu disse uma ninfomaníaca. Mas eu amava-a como se ela fosse sangue do meu sangue. E, tendo em conta o que eu estava disposta a fazer pelo sangue do meu sangue, era dizer muito. Não, não tenho a certeza, Dez, mas tem de ser. Por isso, para de me perguntar antes que me faças mudar de ideia e eu saia daqui a correr como a gata assustada que ambas sabemos que sou, disse-lhe eu bruscamente.
Dez nunca dava muita importância ao meu drama, pois divertia-se o mais que podia. Céus, como se divertia. E não sentia um pingo de vergonha por isso. E estás mesmo disposta a entregar a tua virgindade a um perfeito desconhecido? Sem romance? Sem copos, sem jantar, sem 6…? As suas perguntas incessantes estavam a enervar-me, mas eu sabia que ela estava a fazer aquilo porque me amava e queria ter a certeza de que eu tinha ponderado tudo. Nós tínhamos analisado minuciosamente todos os prós e contras e eu estava convencida de que não nos tinha escapado nada. Porém, o que mais me preocupava era o facto de estar a mergulhar de cabeça numa situação completamente desconhecida. Em troca da vida da minha mãe? Sem pestanejar, respondi enquanto a seguia pelo corredor escuro que levava à cave do Foreplay, o clube nocturno onde ela trabalhava. Foreplay: o sítio onde a minha vida mudaria. O ponto de não retorno. Faye, a minha mãe, tinha uma doença terminal. Ela sempre tivera um coração fraco, mas o seu estado fora piorando progressivamente com o passar dos anos. Ela quase morrera durante o meu parto, mas conseguira recuperar disso e de inúmeras outras operações e tratamentos. Agora, não havia como recuperar. A sua luz estava a apagar-se depressa de mais.
Nesta fase o seu estado era tão fraco e frágil que ela estava acamada, mas não antes de ter estado internada em hospitais tantas vezes que o meu pai, Mack, tinha perdido o emprego. Ele recusara-se a deixá-la sozinha para ajudar uma estúpida fábrica a cumprir as suas metas de produção. Eu nunca o culpei por isso. Ela era a sua mulher, e ele levava muito a sério o seu dever de marido. Ele tinha de cuidar dela, como ela teria cuidado dele se os papéis estivessem invertidos. Mas o facto de ele ficar sem trabalho significou o fim do seguro de saúde. Também significou que fomos obrigados a mexer na pequena conta poupança que o meu pai tinha conseguido amealhar para a velhice. Logo, um seguro de saúde era um luxo que os meus pais não podiam pagar. Uma situação fantástica, não vos parece? E as coisas tinham piorado ainda mais. A doença de Faye tinha avançado até ao ponto em que ela precisaria de um transplante de coração para continuar a viver. Aquela notícia tinha-nos afectado a todos, mas foi Mack quem mais sofreu.
Eu observava o meu pai todos os dias. Como a sua principal preocupação era a mulher, ele não cuidava de si mesmo e estava a emagrecer. E as olheiras escuras e olhos vermelhos mostravam claramente que também não dormia tanto quanto deveria. Seja como for, ele fazia sempre boa cara quando estava com a minha mãe. Ela tinha aceitado a sua morte iminente, mas o meu pai..., ainda tinha esperança. O problema é que a esperança estava a diminuir. A sua alma estava a definhar ao ver a mulher morrer um pouco mais a cada dia que passava. Acho que um pedaço dele ia com cada pedaço dela. Uma noite, entrei no quarto depois de a minha mãe ter adormecido profundamente. Ele estava afundado na sua cadeira reclinável com a cabeça nas mãos e os seus ombros estremeciam enquanto soluçava desesperadamente. Ele não queria que ninguém o visse assim. Mas eu vi.
Nunca o tinha visto tão abatido e não consegui deixar de pensar que quando a minha mãe morresse ele não duraria muito tempo. Eu não tinha qualquer dúvida de que o meu pai ia morrer, literalmente, de desgosto. Eu tinha de fazer alguma coisa. Estava desesperada para melhorar a nossa situação. Para os pôr melhor. Dez era a minha melhor amiga. A melhor de todas. Desde sempre que eu partilhara tudo com ela, por isso ela estava a par de toda a situação. Tempos desesperados pediam medidas desesperadas, e ao ver como eu estava transtornada ela acabara por me falar sobre o negócio mais escandaloso que era feito em segredo no Foreplay». In CL Parker, Um Milhão de Prazeres Proibidos, Editora Lua de Papel, 2014, ISBN 978-989-232-806-5.

Cortesia de ELuadePapel/JDACT

Os Segredos Perdidos da Arca Sagrada. Laurence Gardner. «Construído sobre uma extensão de 230 pés (cerca de 70 metros), estendendo-se a partir de uma caverna escavada pelo homem, encontraram as ruínas de um antigo Templo…»

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«(…) A expedição de Petrie fora financiada pelo recentemente estabelecido Egypt Exploration Fund (actualmente a Egypt Exploration Society). Sua proposta era inspeccionar a antiga região mineira de cobre e turquesa da península do Sinai, entre os golfos de Suez e de Aqaba, acima do Mar Vermelho, a leste do Egipto. Era a terra da montanha bíblica de Moisés, a que o livro do Êxodo do Antigo Testamento (edição do rei Thiago) se refere como o Monte Horebe. O lugar estava mais correctamente representado como Monte Choreb na antiga Bíblia Septuaginta do século III a. C. Longe de serem aplicações nominais directas, as palavras Choreb e Horeb tinham grande significância nos dias de Moisés, como descobriremos logo.
Na sua forma original, o Antigo Testamento foi escrito num estilo hebreu que consistia apenas em consoantes. Paralelamente, surgiu uma tradução grega por volta de 270 a.C. devido ao crescente número de judeus helenistas falantes do grego. Ela se tornou conhecida como Septuaginta (do latim septuaginta, setenta) porque a tradução foi feita por 72 estudiosos. Alguns séculos depois, São Jerónimo elaborou uma versão latina da Bíblia, conhecida como Vulgata (por causa do seu uso vulgar ou comum), por volta do ano 385, para uso da Igreja Cristã (incluindo o Novo Testamento). Um Antigo Testamento hebraico revisto (no qual a Bíblia de hoje se baseia) foi introduzido por estudiosos masoréticos por volta de 900 d.C. Porém, foi a mais antiga e mais confiável Septuaginta utilizada para traduzir a versão autorizada de rei Thiago em língua inglesa, lançada em 1611.
Antes da incumbência de Petrie, a dificuldade que havia para se determinar a posição exacta do Monte Horebe era a extensão da cordilheira do Sinai e a pouca familiaridade dos habitantes locais (mesmo quando se preocupavam com história antiga) com a região elevada. No século IV d.C., uma ordem de monges cristãos fundara a missão do Monastério de Santa Catarina numa montanha voltada para o sul do Sinai e nomeara o lugar Gebel Musa (Monte de Moisés). Era, evidentemente, uma conclusão pouco acurada, uma vez que não correspondia às referências geográficas bíblicas. O Livro do Êxodo explica a rota tomada por Moisés e os Israelitas por volta de 1330 a.C., quando partiram da região de Goshen, no Delta Egípcio, tendo atravessado o Mar Vermelho em direcção à terra de Midiã (norte da actual Jordânia). Seguindo essa linha pelas regiões desérticas de Shur e Paran, a montanha sagrada de Moisés é encontrada erguendo-se a mais de 790 metros num alto planalto de arenito acima da Planície de Paran. Hoje ela é conhecida como Serâbit el Khâdim (a Proeminência do Khâdim); a expedição de Petrie escalou essa rugosa elevação. Não tinham expectativas particulares quanto ao lugar, mas era parte da inspecção, e eles subiram ao cume onde, para seu espanto, fizeram uma descoberta monumental.
Construído sobre uma extensão de 230 pés (cerca de 70 metros), estendendo-se a partir de uma caverna escavada pelo homem, encontraram as ruínas de um antigo Templo, com inscrições que o remetiam ao faraó da 4ª. Dinastia Sneferu, que reinara por volta de 2600 a.C.. Subsequentemente, Petrie escreveu: estava completamente enterrado e ninguém tomara conhecimento dele até que limpássemos o sítio. Talvez não tivessem ficado surpreendidos se encontrassem um altar semítico de pedra, mas tratava-se de um enorme Templo egípcio que, obviamente, tinha alguma importância. Na primeira vez em que discuti essa expedição, há alguns anos, não fazia ideia do interesse que ela provocaria em novos aventureiros. Desde aquela época, muitos leitores me escreveram após a cansativa subida, contando as suas visitas, ilustradas com maravilhosas fotografias das suas aventuras. A esse respeito, conquanto ninguém haja mencionado o facto na sua correspondência, talvez eu devesse ter esclarecido que, embora os vestígios do Templo ainda estejam acessíveis e impressionem pela sua localização incomum, muitos dos artefactos específicos, retratados nas fotografias e escritos de Petrie, não estão mais ali». In Laurence Gardner, Os Segredos Perdidos da Arca Sagrada, Editora Madras, 2004, ISBN-978-857-374-901-4.

Cortesia de EMadas/JDACT

domingo, 29 de dezembro de 2019

Um Amor Feliz. David Mourão-Ferreira. «Também conheço algumas mulheres, providas de útero e de nádegas, que não passam de nuvens. De tudo isto o mais feio é só a palavra nádegas»

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«(…) Veio depois o Natal; e você publicou, nessa altura, o seu primeiro livro de poemas. Precisamente na antevéspera de Natal encontrei aqui o exemplar que me enviou, só para mim, com a sibilina dedicatória que se impunha. Porque será que apenas agora, quase à beira de outro Natal, com o seu livro de novo aqui à mão e tendo-o já relido por várias vezes, me renasce o desejo de dizer-lhe o que logo nessa ocasião me apetecia ter dito? Não aprecio por aí além, e isso já não é novidade para si, o título que você lhe deu: parece-me, por um lado, inutilmente provocatório e, por outro, injustamente limitativo, como se os seus versos apenas valessem por essa estéril coragem d’épater le bourgeois. O burguês, hoje em dia, já mal existe; e, quando existe, não se escandaliza com coisa alguma: nem com o que a Igreja ainda lhe proíbe nem com o que os sex-shops passaram a fornecer-lhe. Quem é que você escandaliza, a não ser talvez o seu marido, ao comparar-se à Tera que se masturba / debaixo da chuva ou à praia que se vem com o Sol / enquanto o Mar se vem com a Lua? Que almas sensíveis, a não ser porventura a já aludida, julga você ter melindrado ao confessar que lhe falta a experiência de ser igual a uma barca, / no mar alto, / ao mesmo tempo enfiada / por três mastros? E que defuntas pudicícias pensa você ter ofendido ao engastar, nos seus versos, inúmeros termos anatómicos que já são hoje do conhecimento das criancinhas da instrução primária?
A respeito de alguns poemas, mais longos, tenho às vezes pena de que não sejam menos longos: fosse eu entendido em poesia, gostaria de lhe poder explicar porquê. Mas, voltando aos outros, há pelo menos um, que me parece aliás encontrar-se a meio caminho entre os que são somente provocatórios e os que já são um tanto mais que provocatórios, em relação ao qual sinto simultaneamente uma certa frustração e uma espécie de fascínio, de perturbado fascínio. É aquele em que você colocou uma epígrafe do Vinícius de Moraes:

Julguei felizes as nuvens por não terem útero,
até me darem lástima por não terem nádegas.
Não quero dizer com isto que não tenham
muitas vezes a forma de um útero,
o volume de nádegas.

Também conheço algumas mulheres,
providas de útero e de nádegas,
que não passam de nuvens.

De tudo isto o mais feio
é só a palavra nádegas.

Só a palavra.

Falo por mim, e de mim, é claro.

Sabe você o que me apeteceu, assim que li estes versos pela primeira vez? Não, não lhe digo. Mas até cheguei a desejar que se anunciasse, em semelhante período, uma daquelas pediátricas reuniões que inevitavelmente nos aproximariam. Infelizmente não aconteceu. Por mais estranho ou paradoxal que pareça, também a Pediatria entra em férias durante o Natal. E soube, a seguir, que vocês tinham ido para o Douro, lá para casa dos seus sogros. E a minha mulher, prometendo a si própria um novo e ainda mais rigoroso regime de emagrecimento para depois das festas, sucumbia entretanto a variadíssimas tentações de broas e de filhoses, de bolo-rei e de rabanadas, de doces de chila e de lampreias de ovos, ora junto da minha mãe, sempre contemplada, no chamado lar a que recolheu, com duas visitas durante esta época, ora, mais amiúde, junto de três tias sobreviventes, ainda com boa dentição, por cujas velhas casas, respectivamente na Lapa, nas Amoreiras e na Estrela, generosamente se repartia, no louvável esforço de uma vez por ano reforçar, em relação à Terceira Idade, a atenção que mais assiduamente concede à Primeira». In David Mourão-Ferreira, Um Amor Feliz, Editorial Presença, Lisboa, 1986, Depósito Legal nº 10705/85.

Cortesia EPresença/JDACT

sábado, 28 de dezembro de 2019

Os Segredos Perdidos da Arca Sagrada. Laurence Gardner. «A nossa história inicia-se no início do século passado, em Março de 1904, com o rei Eduardo VII na Grã-Bretanha e Theodore Roosevelt nomeado como presidente dos Estados Unidos da América»

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«Durante o século passado, (século XX) especialmente desde os dias de Albert Einstein, os cientistas têm procurado o Santo Graal da física moderna, que eles classificam como a teoria unificada do todo. Essa busca levou a algumas descobertas surpreendentes e à emergência de uma nova linguagem, que inclui supercordas, quarks e supercondutividade, junto com a consciência de planos de existência até então desconhecidos além de nosso familiar espaço-tempo. No campo da mecânica quântica, os cientistas recentemente confirmaram que a matéria pode, na verdade, estar em dois lugares ao mesmo tempo. Já se estabeleceu que, por meio do enredamento quântico, partículas separadas por milhões de anos-luz podem estar conectadas sem contacto físico. O espaço-tempo pode agora ser manipulado; o teletransporte está-se tornando uma realidade; anuncia-se o material anti gravitacional para o transporte aéreo e a ciência virtual levou à maior compreensão de ambientes hiperdimensionais. Ao discutir os atributos do ouro e da platina monoatómicos em Génesis of the Grail Kings, notei que não demoraria muito até que o potencial desses metais nobres fosse anunciado para células de combustível favoráveis ao ambiente. Sugeri que elas substituiriam o combustível fóssil para o transporte e outros fins práticos. Ao mesmo tempo, tratei do seu uso futuro na área médica, particularmente no campo do tratamento do cancro. Mais especialmente, consideramos os atributos anti gravitacionais dessas substâncias exóticas e as suas capacidades para superconduzir e literalmente atar o espaço-tempo.
Esses anúncios, por mais breves que tenham sido, consequentemente causaram maior interesse dos leitores e mais perguntas em entrevistas que qualquer outro assunto de minhas obras. Consequentemente, o tema pôde ganhar um livro para si. O facto verdadeiramente espantoso acerca do enigmático pó branco dos grupos metálicos do ouro e da platina de alto spin é que essa não é, na verdade, uma descoberta recente. Os antigos mesopotâmicos chamavam-no shem-an-na e os egípcios o descreviam como mfkzt, enquanto os alexandrinos e, mais tarde, químicos como Nicolau Flamel o veneraram como um dom do Paraíso, chamando-o de Pedra Filosofal. Em todas as fases da história, o pó de projecção sagrado teve reconhecido os seus extraordinários poderes de levitação, transmutação e teletransporte. Dizem que produzia luz brilhante e raios mortais, sendo ao mesmo tempo uma chave para a longevidade física activa. No mundo de hoje, o Instituto de Estudos Avançados descreve a substância como matéria exótica e seus poderes super-condutivos eram, segundo o Centro de Estudos Avançados, a mais notável propriedade física do Universo.
Fica evidente, porém, a partir dos indícios documentais da Antiguidade, que os atributos dos supercondutores e o desafio à gravidade eram conhecidos, se não compreendidos, num mundo distante de levitação sacerdotal, comunicação com os deuses e o fenomenal poder do electrikus. Na mitologia grega, a busca pelo segredo dessa substância estava no coração da lenda do Velo de Ouro, enquanto, em termos bíblicos, era o reino místico da Arca da Aliança, o baú dourado que Moisés trouxe do Sinai e que mais tarde foi abrigado no Templo de Jerusalém. Para nossa investigação pormenorizada do fenómeno do pó branco, a Arca da Aliança tem o melhor catalisador para relatar a história, uma vez que sua própria trajectória está intrinsecamente relacionada a ele. Segredos Perdidos da Arca Sagrada não se limita, porém, à demanda da Arca, embora tente determinar seu provável paradeiro. Mais precisamente, trata das funções e operações da Arca desde o período mosaico, passando pelos Templários, até à redescoberta de sua ciência sagrada em anos recentes, com comentários das principais academias científicas do mundo.

A Casa do Ouro. A Montanha Sagrada
A nossa história inicia-se no início do século passado, em Março de 1904, com o rei Eduardo VII na Grã-Bretanha e Theodore Roosevelt nomeado como presidente dos Estados Unidos da América. A Grande Guerra (1914-1918) era uma perspectiva futura ainda desconhecida; era uma época entusiástica de aventura e exploração. O capitão Robert Scott e a população de seu Discoverry estavam de volta à Inglaterra, vindos da Antártida, enquanto o arqueólogo britânico, sir WM. Flinders Petrie, e a sua equipa trabalhavam num platô rochoso e ventoso no deserto do Sinai». In Laurence Gardner, Os Segredos Perdidos da Arca Sagrada, Editora Madras, 2004, ISBN-978-857-374-901-4.

Cortesia de EMadas/JDACT

Um Amor Feliz. David Mourão-Ferreira. «O fulgor dos seus joelhos, que a despeito das meias azuis-escuras se pressentiam ainda bem queimados pelo sol, irradiava em torno uma luzinha pestanejada, como que vinda de um calorífero meio escondido»

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«(…) Em vez de logo a convidar a visitar o meu atelier (o que sem dúvida teria feito se ela fosse apenas bonita) ou de piedosamente a convencer de que não era nada ignorante (o que decerto teria tentado se fosse um estafermo), surpreendi-me, de repente, como nem tendo ouvido o que acabava de ouvir, a encetar um requisitório, meio amargo, meio irónico, contra o carácter fictício de semelhantes reuniões. Foi então que pela primeira vez exprimi em voz alta, falando com ela, tudo quanto acabava de descobrir em matéria de alegorias; e devo tê-lo feito com alguma vivacidade, já que a presença de mulheres belas, ou mesmo nem tanto, continua a produzir em mim, quer nas palavras quer nos gestos, certo estado de efervescência a que a minha mãe sempre se declarou alérgica, mas a que as damas pedantes chamam brilhante, e que a minha pediatra, bastante mais sóbria, rotula apenas de clownesco. Desta vez nem era bem disso que se tratava. Qualquer coisa de mais espontâneo: uma simples necessidade de manifestar o que nesse instante estava a sentir; e de manifestá-lo, precisamente, à única pessoa que ali me parecia feita da matéria dos deuses e se me afigurava também um completo ser humano.
Tínhamo-nos entretanto sentado, a um canto da sala, em duas poltronas muito próximas. O fulgor dos seus joelhos, que a despeito das meias azuis-escuras se pressentiam ainda bem queimados pelo sol, irradiava em torno uma luzinha pestanejada, como que vinda de um calorífero meio escondido. Quase no canto oposto, conversando não sei se com a Magistratura se com o Ensino, a minha mulher, estoicamente de pé, em obediência a um teórico regime de emagrecimento de que nunca mais se vislumbram resultados animadores, lançava-me de quando em quando uns complacentes olhares, mais de nurse que de pediatra, assim vigiando o meu comportamento perante o sumptuoso brinquedo de empréstimo com que estava entretido. Às vezes até sorria, orgulhosa decerto por me ver tão ajuizado. Parecendo menos alta do que já foi, mas ainda imponente, e com o perímetro das suas ancas triplicado desde que há trinta anos nos casámos, mostrava-se mais sólida e inspirava maior confiança que todos ou quase todos esses bonifrates ali à nossa roda. O marido da Y, ao fundo, dialogando com a Diplomacia, mantinha-se negligentemente de costas para nós. E principiáramos a vogar, não sei como, através de uma conversa sobre viagens.
Vendo bem, a Itália, que a Y conhece como os seus dedos, só seria tangencialmente a Itália através de cujos caminhos rompi as solas de alguns sapatos, e onde estive mesmo à beira de romper outras coisas. Vendo bem, os Estados Unidos, aonde vai com frequência, não teriam muito em comum com o que dos Estados Unidos salteadamente conheço. Mas o que me surpreendia era a extrema gentileza, envolvente e receptiva, da atenção com que me escutava. E, ambos estávamos de acordo sobre o ponto mais importante: que apenas em Roma ou em Nova Iorque, para não falarmos senão de grandes cidades, nos agradaria viver por muito tempo. Roma? Sim, claro que sim, pensava eu. Mesmo apesar de certos brados de indignação, no mais puro linguajar carioca, que ainda hoje devem atroar a superfície de uns tantos muros da Via Giulia; mesmo a despeito de certo momento que foi tão difícil de passar junto a uma fonte da Piazza Navona... Ah, só alguém com estes olhos mais que verdes, mais que azuis, conseguiria definitivamente varrer, de tais lugares e da minha memória, a acusadora imagem de outros olhos também claros mas de nenhuma tranquilidade. Principalmente em Roma..., acrescentou a Y. Roma, então... para sempre. Mas eu senti que seria ridículo dizer o mesmo, já que o meu sempre teria decerto um horizonte mais limitado». In David Mourão-Ferreira, Um Amor Feliz, Editorial Presença, Lisboa, 1986, Depósito Legal nº 10705/85.

Cortesia EPresença/JDACT

sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

Monacato Feminino e Domínio Rural. O Património do Mosteiro de Santa Maria de Almoster no século XIV. José Manuel H Varandas. «O processo de criação de um mosteiro cisterciense desenvolve-se de forma extremamente complexa»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Mas, importa sublinhá-lo, as nossas fontes assentam essencialmente no espólio do cartório de Almoster. Esta especificidade que, ainda por cima, incide num processo conjuntural de grande crise a nível geral, correspondente a uma época de grande convulsão e de decadência dos padrões tradicionais do modelo medieval, faz com que a nossa visão corra o risco de se tornar unilateral, face à complexidade da sociedade portuguesa dos finais da Idade Média.

A FUNDAÇÃO DE SANTA MARIA DE ALMOSTER
A Ordem
O processo de criação de um mosteiro cisterciense desenvolve-se de forma extremamente complexa. Embora o convento de Almoster seja de constituição tardia, e na sua composição inicial possamos encontrar alterações às regras iniciais, não podia deixar de cumprir algumas disposições fundamentais que, a não serem seguidas, podiam impedir que os agentes fundadores recebessem a autorização necessária. A Ordem de Cister, fundada em 1098, assentava a sua existência e a sua força na conjunção de dois factores: uma forte autonomia e uma ainda mais poderosa centralização. Pedro Gomes Barbosa refere a existência de uma teia de ligações entre todas as casas de monges bernardos que acabavam por entroncar na primitiva casa, onde tudo se tinha iniciado: Cister.
Tal estrutura obrigava a que todos os abades se deslocassem aos Capítulos Gerais da Ordem, local onde eram apresentados e resolvidos casos específicos de cada uma das abadias espalhadas por toda a Europa, e de onde saíam as linhas orientadoras para toda a comunidade cisterciense. Ali se firmavam a força e a independência desta Ordem, expressas através de uma feroz disciplina regrante, que conferia aos abades com responsabilidade regional o direito e o poder de fiscalização sobre outros mosteiros (de criação mais recente que deles dependessem), controlando localmente a vida cenobítica dessas novas casas. Nenhuma nova fundação podia ser sancionada apenas pelo responsável regional. Qualquer nova casa que se pretendesse criar, ou mesmo a filiação de mosteiros já existentes, que seguiam outras regras, não se podia fazer sem o consentimento do Capítulo Geral. Só nesse espaço privilegiado, em reunião periódica das elites da Ordem, poderia ser dada autorização para o aparecimento de novas instituições.
A fundação de uma abadia cisterciense não era algo passível de ser constituído somente a partir de uma forte inspiração do sagrado que, momentaneamente, surgia numa dada região. Cister, embora contaminada e envolvida pelo processo da Reconquista e da luta contra o infiel, não embarca em aventuras de resultado final duvidoso. O Capítulo Geral da Ordem impunha que qualquer fundação reunisse um conjunto mínimo de condições:

Um conjunto de terras doadas que possibilitassem a manutenção e subsistência de um número mínimo de monges;
Condições específicas de habitabilidade que incluíam proximidade de linhas de água, de acesso a vias de escoamento e um isolamento (razoável) em relação a comunidades profanas;
Existência de condições locais que possibilitassem a continuidade, no futuro, do número de irmãos.

Tais eram as condições que os abades inquiridores procuravam levantar no local. Após o relatório apresentado cabia ao Capítulo Geral tomar a decisão final. O outro aspecto relevante desta Ordem monástica que tanto sucesso alcançou na Europa cristã ao longo dos séculos XII e XIII relaciona-se com a autonomia que cada mosteiro tinha. Esta autonomia verifica-se sobretudo numa forte capacidade de organização e auto-gestão económica. Cada comunidade geria os seus próprios bens, procurando aumentá-los constantemente através de fenómenos de aquisição específicos, como compras ou doacções. Esta intencionalidade investidora, no plano económico, era suportada
por um modelo de gestão centralizador. Cada comunidade procurava constantemente expandir o seu património, mas não de forma anárquica». In José Manuel H Varandas, Monacato Feminino e Domínio Rural, O Património do Mosteiro de Santa Maria de Almoster no século XIV, 1995, Faculdade de Letras, Universidade de Lisboa, Wikipédia.

Cortesia de FLetras/ULisboa/JDACT

quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

A Caminho de Jerusalém. Jan Guillou. «Sigrid olhava fixa e exaustivamente, de olhos arregalados, para o lugar onde acontecia o milagre, e escutava com todo o seu ser, com todo o seu corpo, de tal maneira que entrou em transe…»

Cortesia de wikipedia jdact

«(…) Deixar de comparecer à grande inauguração da catedral encomendada pelo rei para agradar a Deus poderia gerar mal-entendidos. Se o homem ou a mulher desagrada a Deus, eventualmente a coisa pode ser resolvida directo com Ele. Já contrariar o rei seria para Sigrid muito pior. Mas, lá pela terceira hora, começaram as tonturas na cabeça de Sigrid, e cada vez a situação piorava, na decorrência do eterno exercício de cair de joelhos e levantar-se, com a criança dentro dela, chutando-a e se mexendo cada vez mais, como se quisesse protestar. Ela teve a sensação de que o chão de lajes amarelo-claras e polidas começava a balançar sob os seus pés, e que começava a rachar, como se quisesse abrir-se e, de repente, sugá-la. Foi então que ela fez algo nunca visto nem contado. Partiu resoluta, com as sedas farfalhando, e sentou-se num pequeno banco lá longe na nave lateral. Todos viram o acontecido, o rei também. Justo no momento em que ela, aliviada, se deixou cair no pequeno banco de pedra junto da parede da igreja, entraram em procissão na igreja os monges de Lurõ. Sigrid enxugou o suor na testa e no rosto com um lencinho de linho e fez para seu filho, que estava lá longe com Sot, um aceno estimulante. Então, os monges começaram a cantar. Tinham avançado por toda a nave central, de cabeça baixa, como se estivessem em oração, e foram colocar-se bem lá na frente junto ao altar, de onde os bispos e seus ajudantes estavam se retirando. Primeiro, escutou-se apenas algo como um murmúrio, fraco e surdo, e depois, de repente, vozes agudas juvenis; isso mesmo, uma parte dos monges de Lurõ tinha capas marrons e não brancas, e era claramente bem entendido que se tratava de rapazes de pouca idade e as suas vozes subiam como se fossem pássaros brancos esvoaçando em direcção ao enorme tecto da nave, e quando as vozes alcançaram seu ponto mais elevado, enchendo toda a grande nave surgiram as vozes graves e adultas dos próprios monges que cantavam ora em compasso ora em descompasso. Sigrid já tinha escutado cantos em duas ou três vozes, mas neste caso o canto estava sendo apresentado em pelo menos oito vozes. Parecia um milagre, uma coisa que não poderia acontecer, uma vez que três vozes já era muito difícil de conceber.
Sigrid olhava fixa e exaustivamente, de olhos arregalados, para o lugar onde acontecia o milagre, e escutava com todo o seu ser, com todo o seu corpo, de tal maneira que entrou em transe, estremecendo de tensão, e então ficou tudo escuro diante dos seus olhos e ela não mais podia ver, apenas escutar, como se os ouvidos tirassem dos olhos a potência toda para só escutar. Era como se ela tivesse desaparecido, como se se tivesse  transformado em sons e em parte de toda a música sagrada, mais bonita do que qualquer outra melodia apresentada nesta vida. Um momento depois, ela voltou aos seus sentidos normais pelo facto de algo ter tocado sua mão, e quando levantou os olhos descobriu que era o próprio rei Sverker. Este dava uns tapinhas delicados na sua mão e agradecia a ela, ironicamente, porque ele, de facto, era bem idoso, e bem precisado estava que uma mulher em estado interessante se antecipasse a ele e se sentasse. Se uma mulher abençoada podia sentar-se, também o rei podia, queria ele dizer. Mas, se a ordem dos acontecimentos fosse inversa, isso, claro, já não iria parecer tão bem. Sigrid conteve decididamente a intenção de contar aquilo que o Espírito Santo lhe tinha acabado de falar. É que, pensou, se contasse a história, poderia parecer que ela estava se fazendo de importante. Os reis passam o tempo todo ouvindo essas coisas, até que alguém corta a cabeça deles. Em vez disso, ela contou-lhe em voz baixa e de maneira rápida a conclusão a que tinha chegado. Era a respeito, como certamente o rei já sabia, da controvérsia relativa à sua herança de Varnhem. Sua parente Kristina, que acabara de se casar com um tal de Erik Jedvardsson, um homem ambicioso, reclamara metade da propriedade. Mas acontece que os monges em Lurõ precisavam de um lugar com invernos menos rigorosos. Uma grande parte do que plantavam acabava se perdendo, isso todos sabiam. E não fizera nenhum mal à grande generosidade do rei Sverker ter oferecido Lurõ aos monges. E se ela, Sigrid, desse agora Varnhem para os cistercienses, o rei precisaria abençoar a dádiva e declará-la legalizada e, então, todo o problema estaria resolvido. Todos iriam ganhar com a solução. Ela havia falado rápido e em voz
baixa e ficou ofegante, o coração continuando a bater forte, tal como no momento em que escutava a música celestial e a escuridão se transformou em luz». In Jan Guillou, A Caminho de Jerusalém, As Cruzadas, Bertrand Brasil, 2002, ISBN 978-852-860-896-0.

Cortesia de BertrandB/JDACT

A Caminho de Jerusalém. Jan Guillou. «Meu Deus, Tu que invisivelmente cuidas de tudo, mas que para salvação das pessoas fazes o Teu poder visível, assume esta Tua casa e domina neste templo»

Cortesia de wikipedia jdact

«O Ano da Graça de 1150, quando os hereges sarracenos, a escória da terra e a guarda avançada tio Anticristo infligiam aos nossos muitas derrotas na Terra Santa, o Espírito Santo desceu sobre a senhora Sigrid e deu-lhe a ela uma revelação que mudou a sua vida. Talvez se possa dizer, também, que essa revelação conduziu a uma situação que encurtou sua vida. Com certeza sabemos que ela jamais voltou a ser a mesma. Menos certo é aquilo que o monge Thibaud escreveu muito mais tarde, de que, no momento em que o Espírito Santo apareceu diante de Sigrid, surgiu na realidade o que seria o início de um novo reino na Escandinávia, ao norte da Europa, reino que mais tarde viria a se chamar Suécia. Tudo aconteceu durante a Festa de São Tibúrcio, em meados de Abril, num dia que passou a ser considerado como o primeiro dia de Verão e em que o gelo começava a derreter na província de Götaland Ocidental. Nunca antes se juntou tanta gente num dia como esse em Skara, isso porque a missa não era uma missa comum, mas a que iria assinalar, finalmente, a inauguração da nova catedral. As cerimónias já decorriam na sua segunda hora. A procissão já dera três voltas à igreja, num ritmo infinitamente lento, pelo facto de o bispo Õdgrim ser muito velho e se arrastar, como se cada passo fosse o seu último. Além disso, ele parecia um pouco confuso, pois leu a primeira oração em linguagem popular em vez de em latim:

Meu Deus, Tu que invisivelmente cuidas de tudo, mas que para salvação das pessoas fazes o Teu poder visível, assume esta Tua casa e domina neste templo, assim, todos aqueles que se reúnem aqui para rezar vão poder receber o Teu conforto e ajuda.

E naquele momento, sem dúvida, Deus fez visível Seu poder, quer tenha sido para gáudio das gentes ou por qualquer outro motivo. Foi um espectáculo que ninguém jamais vira em toda a Götaland Ocidental, foram as cores brilhantes da roupagem dos bispos, em seda vermelho-escura, com listas douradas e azul-claras, foram os aromas estonteantes dos incensórios à volta dos quais os cachorros giravam, e como eles balançavam, e foi a música tão celestial que nenhum ser na Götaland Ocidental podia ter ouvido antes coisa semelhante. E ao olhar para cima era como se a gente visse o céu, se bem que estávamos sob o tecto da igreja. Era incompreensível que até mesmo os construtores borgonheses e ingleses pudessem ter erguido claustros tão elevados sem que tudo não caísse de uma vez, se não por outro motivo, por Deus ter ficado zangado diante da pretensão de tentar construir qualquer coisa até lá em cima, até Ele. A senhora Sigrid era uma mulher prática. Alguns, por isso mesmo, achavam que ela era durona. Ela não teve nem um pouco de vontade de se meter a caminho e fazer a difícil viagem para Skara, porque a Primavera chegara cedo e os caminhos ficaram um lamaçal só e ela se preocupou diante da ideia de se sentar numa carruagem, balançando de um lado para o outro, no abençoado estado em que estava. Mais do que qualquer outra coisa na vida terrena, ela receava o nascimento para breve da sua segunda criança. E sabia muito bem que, tratando-se da inauguração de uma catedral, isso significaria ficar de pé no chão de pedra e, de vez em quando, ajoelhar-se para rezar, o que para ela, no seu estado, seria uma tortura. Ela era bem versada, certamente melhor do que a maioria dos fidalgos e das filhas deles à sua volta nesse momento, no que dizia respeito às muitas regras da vida religiosa. Essa capacidade, ela não tinha obtido pela fé ou por vontade própria. Mas, quando tinha dezasseis anos, seu pai, não sem uma boa razão, chegou à conclusão de que ela nutria um interesse exagerado por um parente da Noruega, de berço excessivamente menor, um interesse que só poderia resultar em casamento. Foi assim que, severamente, seu pai encarou o problema. E assim ela foi mandada durante cinco anos para um mosteiro na Noruega, e teria ficado por lá para sempre se não tivesse recebido de uma tia sem filhos uma herança na província de Götaland Oriental e, por essa razão, ter-se transformado em alguém que podia casar, não importando com quem, de preferência a ficar enclausurada num convento.
Ela sabia, portanto, quando devia ficar em pé e quando devia ajoelhar-se, quando devia balbuciar com os outros o padre-nosso e a ave-maria, sempre que algum dos bispos, lá na frente, indicava e quando as pessoas deviam fazer suas próprias orações. Todas as vezes que ela fazia as suas orações silenciosamente, pedia por sua vida. Deus lhe dera um filho três anos antes. E ela demorara dois dias para dar à luz esse filho. Por duas vezes o sol nasceu e se pôs, enquanto ela ficava banhada em suor, em angústia e em dores. Foi então que soube que iria morrer, e todas as boas mulheres que a ajudaram, no final, também sabiam que isso iria acontecer. Foram elas que mandaram chamar o padre lá em Forshem, e foi ele que lhe deu a absolvição por todos os pecados e a extrema-unção. Nunca mais, esperava ela. Nunca mais aquela dor, nunca mais aquele pânico da morte, pediu ela em sua oração. Mas essa era uma maneira egoísta de pensar, isso ela sabia muito bem. Era bem comum as mulheres morrerem na cama ao dar à luz. E ela sabia que os seres humanos teriam que nascer na dor. Mas cometeu o erro de rezar para a Virgem Maria para que a poupasse, justo ela, e ela tentaria cumprir seus deveres matrimoniais de forma que isso não conduzisse a uma nova gravidez. O filho deles, Eskil, sobrevivera e era uma criancinha bem constituída e esperta, com todas as qualidades que qualquer criança deve ter.
A Virgem Maria, certamente, a havia punido. O dever das pessoas era encher o planeta, portanto, como é que se poderia esperar que a sua prece fosse atendida quando ela pretendia escapar dessa responsabilidade? E, assim, ela esperava novas dores, isso era certo. E ainda, mais uma vez, muitas vezes, ela pediu para que mais uma vez sobrevivesse sem graves consequências. Para escapar, pelo menos, à tortura muito menor, mas incómoda, de, por muitas horas, ficar em pé e se ajoelhar, levantar-se e logo se ajoelhar novamente, ela deixou que Sot, a sua criada, fosse baptizada para que pudesse ir com ela e entrar na casa de Deus, ficar com ela a seu lado para lhe dar apoio na hora de abaixar-se e levantar-se. Os olhos grandes e negros de Sot ficaram paralisados, como se fossem os olhos amedrontados de um cavalo, por tudo o que ela pôde ver, e se ela antes não era cristã de verdade, então, agora, devia passar a ser. Três metros à frente de Sigrid, estavam o rei Sverker e a rainha Ulvhild. Ambos eram muito pesados pela idade e, assim, tinham muito mais dificuldades para, sem excessivos gemidos ou ruídos impróprios saídos pelo traseiro, levantar-se e cair de joelhos. No entanto, foi por eles e não por Deus que Sigrid se encontrava na catedral. O rei Sverker não considerava muito bem os ancestrais noruegueses ou da Götaland Ocidental dela, nem os do seu marido. E, agora, já bastante idoso, o rei ficou tão desconfiado quanto preocupado com sua vida depois da morte». In Jan Guillou, A Caminho de Jerusalém, As Cruzadas, Bertrand Brasil, 2002, ISBN 978-852-860-896-0.

Cortesia de BertrandB/JDACT

quarta-feira, 25 de dezembro de 2019

O Último Cabalista de Lisboa. Richard Zimler. «Quando Adão e Eva nasceram no Éden tinham o corpo, dos pés à cabeça, protegido por uma carapaça, como uma armadura, disse ele. Agora, as unhas são tudo o que nos resta dessa protecção original»

jdact

A descoberta do manuscrito de Berequias Zarco
«(…) O padre persignou-se com a mão tremente. No intuito de aplacar meu tio, num tosco esforço para fazer uma graça, replicou: os seus bruxedos cabalísticos não me assustam... O meu mestre pôs-se em pé num salto, fitando frei Carlos. Todos os movimentos na sala pareciam suspensos da sua cólera. Nunca pratiquei magia!, disse, recorrendo ao termo hebraico kabbalah ma@sit, a cabala prática, para designar estas práticas proibidas, E o meu amigo bem o deve saber. Referia-se a uma ocasião em que frei Carlos lhe tinha pedido um amuleto para matar um caluniador que andava a espalhar boatos sobre a fidelidade do padre à fé de Moisés. Meu tio tinha recusado, como é evidente, mas tinha recorrido pessoalmente ao rabi Abraão Zacuto, o astrónomo do rei, para ver se não seria possível calar o celerado. Meu tio avançou para a lareira e ficou a observar as unhas contra o lume. O anel de topázio com o sinete em forma de íbis, símbolo do divino escriba, faiscou com um brilho interior.
Quando Adão e Eva nasceram no Éden tinham o corpo, dos pés à cabeça, protegido por uma carapaça, como uma armadura, disse ele. Agora, as unhas são tudo o que nos resta dessa protecção original. Uma ponta insignificante, não acha? De pouco vale contra as armas da Igreja, acrescentou, voltando-se para frei Carlos. O padre encolheu os ombros, sacudindo a insinuação, e baixou os olhos. De nada lhe servirão se eles vêm a saber da safira. - Preciso dela, disse frei Carlos, com uma nota de tristeza na voz Estou certo que me compreende. É a última... As palavras foram-se diluindo. Levantando-se, acrescentou secamente. Tenho de me ir preparar para a missa. Ah, bastardo!, gritou-lhe meu tio A ficar com uma safira que há-de fazer falta a nossos filhos! Quando voltou a muralha das suas costas a frei Carlos, o padre baixou a cabeça como que a pedir o perdão dos restantes e saiu. Também podia ser mais compreensivo, disse a meu tio, ele repeliu a censura e então acrescentei: porque estavam a falar em código? Não era possível que Dona Meneses nos ouvisse lá atrás. Além do mais, ela deve saber muito bem que continuamos a praticar o judaísmo. Se isso a incomodasse, há muito que nos tinha denunciado às autoridades. O frade não confia em ninguém. Até os mortos usam máscara, diz ele. E pelo meu lado, quanto mais aprendo, mais acho que ele tem razão, coçou a cabeça e franziu o sobrolho Vou apresentar os meus cumprimentos a Dona Meneses. Lançou-me um olhar imperativo e saiu. As pessoas esquecem muito depressa,- suspirou tia Ester.
Que quer dizer com isso? Aspergiu o pescoço com água de rosas, atando-lhe depois em torno um lenço de linho. A peste. Desaparece por uns anos e as pessoas já imaginam que é qualquer nova maldição do Demónio, passou a mão tremente pela fronte e pareceu meditar nas suas palavras Talvez seja uma benção o podermos esquecer. Imagina se ... Eu não esqueço! Nem uma palavra, nem um gesto, nem uma única ferida! O rosto de tia Ester contraiu-se; sabia que me referia a meu pai e a meu irmão mais velho, Mardoqueu. No Inverno de 5263, pouco mais que três anos antes, a faca da peste tinha-lhes arrancado a pele, deixando-os expostos aos ventos húmidos de Kislev. Meu pai, agonizando cheio de feridas e pústulas abertas, tiritava de morte no sexto dia de Hanukkab. Passado um mês, o esqueleto vivo que tinha sido Mardoqueu morria-me nos braços. Ficámos em silêncio, minha tia e eu. Instantes depois, dona Meneses deixava a nossa casa com o habitual cesto de fruta que sempre levava destas visitas. Vou ver se Cinfa precisa de ajuda na loja, disse tia Ester, e saiu da sala no seu passo rígido, ligeiramente inclinada para diante. Fiquei a observar Judas que brincava na entrada com o pião até que meu tio se voltou para mim e me disse: preciso da tua ajuda na cave. Passando o alçapão, descemos os cinco degraus de pedra grosseira, um por cada livro da Tora, até um pequeno patamar com uma menora de mosaicos verdes e amarelos no meio. Depois de outra passagem, descemos ainda doze pequenos degraus de alvenaria, um por cada livro dos profetas. Desde o encerramento forçado da nossa sinagoga no ano cristão de 1497, tínhamos aqui o nosso templo. Ao descermos, tirei de uma prateleira um kipá azul e pu-lo na cabeça. Meu tio puxou dos ombros o seu xaile ritual e cobriu a cabeça com ele, formando um capuz. Juntos entoámos um cântico: pela Tua infinita misericórdia, entrarei em Tua casa.
Era uma cave baixa, com um pavimento de cinco passos de largo e o dobro de comprido, revestido com as mesmas toscas lajes de xisto da entrada. Poderia testemunhar pelo menos mil anos de cânticos e no ar gélido e bafiento, hermeticamente contido naquelas paredes onde mal se vislumbravam os azulejos com formas entrelaçadas em azul e amarelo, parecia pairar o perfume de memórias antigas». In Richard Zimler, O Último Cabalista de Lisboa, 1996, Quetzal Editores, Lisboa, ISBN 978-972-004-491-4.
                                                                                                                                 
Cortesia de QuetzalE/JDACT

terça-feira, 24 de dezembro de 2019

Xeque-mate da Rainha. Elizabeth Fremantle. «Katherine sente o rubor subindo e procura uma resposta, mas só consegue murmurar algumas palavras de gratidão. E quem é esta?»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Uma lufada de hálito fétido a engolfa e ela se esforça ao extremo para não apanhar o saché de ervas aromáticas que leva pendurado no cinto. Não estou me escondendo, majestade, só impressionada. Ela mantém o olhar no peito dele. O seu gibão branco e preto intricadamente bordado, que de perto se nota ser incrustado de pérolas, parece mantê-lo unido, as dobras nas beiradas dando a impressão de que se ele o despisse perderia completamente a forma. Oferecemos nossas condolências pelo falecimento de seu marido, ele diz, estendendo a mão para ela beijar o anel, que está encravado na carne de seu dedo do meio. É muita bondade, majestade. Katherine ousa olhar de relance para o rosto do rei, redondo e massudo, os olhos de passas afundados no meio, e pergunta-se o que aconteceu com o homem magnífico que foi um dia. Disseram-me que cuidou bem dele. Todos conhecem sua habilidade para cuidar de enfermos. Um homem velho precisa de cuidados. Em seguida, antes que tivesse chance de responder, ele se inclina para perto da sua orelha, próximo o suficiente para ela ouvir o chiado da sua respiração e sentir uma lufada de colónia. É bom vê-la de volta à corte. Parece apetitosa mesmo vestida de luto.
Katherine sente o rubor subindo e procura uma resposta, mas só consegue murmurar algumas palavras de gratidão. E quem é esta?, ele diz com estrondo, felizmente pondo fim ao momento de intimidade. Está acenando na direcção de Meg, que se abaixa fazendo uma profunda cortesia. É minha enteada, Margaret Neville, anuncia Katherine. Levante-se, garota, diz o rei. Queremos vê-la direito. Meg obedece. Katherine percebe o tremor nas suas mãos. E dê uma volta, ordena ele. Depois de Meg girar para ele como uma égua em leilão, o rei grita BU!, fazendo-a saltar para trás, aterrorizada. Coisinha nervosa, não é?, ele ri. Ela não está acostumada com a corte, majestade, Katherine responde.
Precisa de um companheiro que quebre a sua resistência, ele afirma, depois pergunta a Meg: alguém aqui a atrai? Seymour está por perto e Meg olha brevemente na sua direcção. Ah! Vemos que está de olho em Seymour, exclama o rei. Um belo
tipo, não acha? N-n-não, gagueja Meg. Katherine lhe dá um chute na canela. Acho que o que ela está querendo dizer é que Seymour não é nada quando comparado a vossa majestade, intervém, a voz lisa como óleo, mal acreditando que tais coisas possam sair tão facilmente de sua boca. Mas falam dele como o homem mais bonito da corte, responde o rei. Hummm, diz Katherine, a cabeça pendendo para um lado, pensando na melhor maneira de responder. É uma questão de opinião. Alguns preferem a maturidade. O rei emite uma gargalhada ruidosa e diz: acho que vamos arranjar um casamento entre a sua Margaret Neville e Thomas Seymour. Meu cunhado com a sua enteada… soa bem.
Segurando ambas pelo cotovelo, ele as dirige para uma mesa de jogos na outra ponta da sala. Katherine não consegue pensar numa maneira de desencorajar o casamento educadamente, então permanece calada. Duas cadeiras são trazidas às pressas pelos criados e o rei se senta com esforço em uma delas, fazendo sinal para Katherine se sentar na outra. Um tabuleiro de xadrez aparece magicamente do nada e o rei pede a Seymour que disponha as peças. Katherine não ousa sequer olhar de relance na direcção dele, por medo de que a confusão de sentimentos que se contorce dentro dela chegue à superfície. Está ciente do olhar afiado de Lady Lisle, ao lado da filha; quase pode ouvir os pensamentos da mulher maquinando como promover a sua garota, educá-la, treiná-la, para apanhar os maiores peixes no mar. Deve estar feliz com o facto de Katherine, duas vezes viúva e com mais de trinta anos, não ter como competir com Anne no completo vigor da juventude. Se ele quer filhos vai escolher Anne Bassett ou uma menina como ela. E ele quer filhos, todo mundo sabe. Katherine faz a sua jogada. Gambito de dama aceito, diz o rei, apanhando o peão branco e rolando-o entre os dedos gordos. V. quer me atrair para o meio do tabuleiro. Ele olha para ela, os olhos encovados dardejando, a respiração chiando como se não houvesse espaço para ar dentro dele. Movimentam-se para a frente e para trás, rapidamente e em silêncio». In Elizabeth Fremantle, Xeque-mate da Rainha, 2013, Editora Paralela, Editora Schwarcz, 2016, ISBN 978-858-439-003-8.
               
Cortesia de EParalele/ESchwarcz/JDACT

segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

Desejos Ocultos. Anne Stuart. «A meus aposentos. Quando chegarmos, poderá retornar aos seus, onde passará mais uma casta noite sob o tecto de seu pai antes de desperdiçar sua vida no convento»


Cortesia de wikipedia e jdact


«(…) Em todo caso, era duvidoso que estivesse correndo perigo. O príncipe William era um libertino experiente e acostumado a mulheres bonitas, e não se sentiria atraído por alguém como ela. Como não tinha tempo de lhe administrar à infusão a base de ervas que preparava para seu pai, era uma sorte que estivesse a salvo de qualquer pensamento libidinoso que pudesse ter o filho do rei. Um príncipe merece a companhia da filha do senhor do castelo, disse ele, enquanto ficava em pé. Era um homem alto, e embora não fosse tão corpulento como alguns dos soldados de seu pai, era esbelto e elegante. Depois de rodear a mesa, segurou-a pela mão e disse com voz firme: venha, minha senhora. Enquanto suporta a minha companhia, pode-me falar dos passatempos que há neste lugar incivilizado. O pai de Elizabeth estava olhando-os atónito. Nem sequer tinha conseguido levantar-se quando seu convidado de honra o tinha feito, e permanecia imóvel e com a boca aberta. Elizabeth se surpreendeu ao notar como a mão do príncipe era calejada, porque tinha dado por feito que tivesse a pele suave como a de um bebê. Embora tivesse ouvido que além de estar versado nas artes amorosas também era um soldado experiente, e sem dúvida as longas horas de treinamento com as armas o tinham curtido. Certamente, não lhe faltava força. Antes que seu pai pudesse protestar…, ou dizer que ela devia satisfazer a seu convidado de honra, o príncipe a afastou da fumaça e do calor do grande salão ao conduzi-la para um corredor deserto e mal iluminado. Por onde temos que ir?, perguntou ele com calma. Aonde devo levá-lo?
A Elizabeth pareceu um milagre que sua voz não tremesse, porque estava a ponto de deixar-se arrastar pelo pânico. Aquele homem era mais corpulento e forte que ela, e a sua brutalidade era de domínio público. Não estava interessada em deitar-se com um homem terno, mas muito menos com um monstro.
A meus aposentos. Quando chegarmos, poderá retornar aos seus, onde passará mais uma casta noite sob o tecto de seu pai antes de desperdiçar sua vida no convento. Não vou fazer-lhe nenhum mal, lady Elizabeth. Ela até teria acreditado, se não fosse pela ironia que notou em sua voz. Observou-o sob a luz tênue das tochas, e tentou ler sua expressão. As sombras que banhavam seu rosto faziam que parecesse tão perigoso como diziam que era, e não pôde evitar sentir-se ainda mais inquieta. Nesse momento não podia fazer nada. Ele continuava segurando-a pela mão com firmeza, assim não tinha opção a não ser levá-lo para seus aposentos e rezar para que algo o distraísse pelo caminho. É obvio meu senhor, disse com fingida submissão. Pôs-se a andar imediatamente, mas por culpa do nervosismo se esqueceu de avançar com os passos curtos que eram considerados adequados para uma mulher. Ele a seguiu sem dificuldade, com uma graça quase indolente.
Elizabeth sabia que sem dúvida o tinham instalado nos melhores aposentos do castelo, que estavam situadas no quente recinto da torre sul, e em pouco tempo percorreram os longos corredores. Não se cruzaram com ninguém… Não viram nem as criadas, nem a um dos seus irmãos, nem a algum monge que os olhasse com desaprovação. Enquanto avançavam pelos corredores desertos, deu-se conta de que só contava com o seu cérebro, porque ninguém ia resgatá-la. Embora parecesse bastante improvável que realmente estivesse correndo perigo. A porta do recinto estava fechada para mantê-lo aquecido, e quando chegaram se deteve em seco enquanto pensava a toda velocidade. Se fingisse um desmaio, William teria bastante dificuldade de levantá-la do chão apesar de sua altura. Embora fosse um príncipe, sem dúvida não demoraria a encontrar alguém que o ajudasse, apesar de que o título lhe era outorgado por pura cortesia.
Também lhe podia dar um bom chuto na canela. Soltaria asua mão com o susto, e poderia aproveitar a oportunidade para sair correndo; apesar de que ele devesse ser mais veloz, ela contava com a vantagem de conhecer bem o terreno e de saber onde havia esconderijos nos quais poderia passar o resto da sua vida. Embora também pudesse aceitar sua recusa sem discutir. Muitas mulheres tinham suportado coisas assim durante séculos, e havia incontáveis mártires que tinham sido desonradas e assassinadas. Talvez fosse transformar-se noutra vítima daquele príncipe depravado, de modo que alcançaria a santidade directamente e sem ter que passar antes pelo convento». In Anne Stuart, Desejos Ocultos, Harlequin, Harper Collins Ibérica, 2014, ISBN: 978-846-875-034-7.

Cortesia de Harlequin/Harper Collins Ibérica/JDACT