segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

A Religiosa. Denis Diderot. «Deteve-se e, dirigindo-me um olhar terrível, disse-me: saia! Se ele fosse meu pai, não lhe teria obedecido, mas não era»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Nunca abusei das facilidades que me dá meu esposo, mas todos os dias guardo o que, de vez em quando, obtenho da sua largueza. Vendi as minhas jóias e ele deixou-me dispor, à minha vontade, do dinheiro que obtive com a venda. Gostava de jogar, mas já não jogo; gostava de espectáculos, e privei-me deles; gostava de companhia, e vivo retirada; gostava de luxo, e renunciei a ele. Se entrar para freira, como é minha vontade e do senhor Simonin, o seu dote será o fruto dos meus esforços quotidianos. Mas, mãe, disse-lhe eu, entra nesta casa muita gente de bem; talvez haja algum que, satisfeito comigo, não exija nem sequer as poupanças que fez para o meu dote. Não pense nisso. O escândalo perdeu-a. Não tem remédio o dano? Não, não tem. Mas, mesmo que não encontre marido, é necessário fecharem-me num convento?
A menos que queira perpetuar a minha dor e o meu remorso até que a morte me feche os olhos. Imagine: as suas irmãs, nesse momento, estarão à volta do meu leito; se a vejo entre elas, veja qual será o efeito da sua presença nesses últimos momentos! Minha filha, por muito que me pese, tenho de chamá-la assim porque o é, as suas irmãs têm, por lei, um nome que a si foi dado por um crime; não aflija uma mãe que está a morrer; deixe-a descer à sepultura em paz. Assim, pode dizer a si mesma, quando chegar a sua hora de comparecer perante o grande juiz, que reparou a falta quando lhe foi possível; que pode afirmar que depois da morte da sua mãe não levou a discórdia ao seu lar e que não reivindicou direitos que não tinha. Mãe, disse eu, não seja isso a preocupá-la. Chame um advogado e diga-lhe que lavre uma acta de renúncia. Eu assino tudo o que quiser. Isso não é possível: um filho não se deserda a si mesmo; castigam-no, assim, o pai ou a mãe quando justamente irritados. Se Deus quiser chamar-me amanhã, amanhã terei de chegar ao extremo de confessar tudo a meu marido, para que, de comum acordo, possamos tomar medidas. Não me exponha a uma indiscrição que me fará odiosa aos seus olhos, e cujas consequências a desonrariam a si. Se me sobrevivesse, ficaria sem nome, sem fortuna e sem estado. Diga-me, desgraçada, que vai ser de si? Que ideia quer que leve quando morrer? Teria de dizer ao seu pai... O quê? Que não é sua filha!... Minha filha, se atirando-me aos seus pés obtivesse de si... Mas não ouve nada. Tem a alma inflexível do seu pai...
Neste momento, entrou o senhor Simonin. Viu o transtorno em que estava a mulher. Amava-a e era violento. Deteve-se e, dirigindo-me um olhar terrível, disse-me: saia! Se ele fosse meu pai, não lhe teria obedecido, mas não era. E acrescentou, dirigindo-se à criada que me alumiava o caminho: diz-lhe que não volte a aparecer. Fechei-me, outra vez, na minha pequena prisão. Pensei no que a minha mãe me tinha dito. Ajoelhei-me e pedi a Deus que me inspirasse. Rezei durante muito tempo e permaneci com o rosto por terra. Quase nunca se invoca a voz do céu, só quando não se sabe o que decidir e é raro que, então, o céu não nos aconselhe a obedecer. Foi esse o partido que tomei. Querem que seja religiosa. Quem sabe se é essa, também, a vontade de Deus. Pois bem, sê-lo-ei. Já que tenho de ser desgraçada, não me importa onde vou sê-lo! Recomendei à minha criada para me avisar quando o meu pai saísse. No dia seguinte, pedi para ver minha mãe. Ela fez-me saber que tinha prometido o contrário ao senhor Simonin, mas podia escrever-lhe com o lápis que me tinham dado. Escrevi, pois, sobre um bocado de papel (esse papel fatal foi descoberto e utilizado contra mim): mãe, afligem-me muito todas as penas que lhe causei, e peço-lhe perdão por elas. Não desejo fazê-la sofrer mais. Ordene-me tudo quanto desejar. Se é sua vontade que entre num convento, desejo que seja, também, a vontade de Deus.
A criada pegou no papel e levou-o a minha mãe. Voltou a subir pouco depois e disse-me com certo arrebatamento: menina, se só era necessária uma palavra para fazer a felicidade do seu pai, da sua mãe e a sua, porque tardou tanto em dizê-la? O senhor e a senhora têm um ar que nunca lhes tinha visto desde que aqui estou. Discutiam constantemente por sua causa. Graças a Deus não voltará a acontecer... Enquanto me falava, pensei que tinha acabado de assinar a minha sentença de morte, e este pressentimento, se o senhor me abandonar, tornar-se-á realidade. Passaram alguns dias sem que tenha ouvido falar de nada». In Denis Diderot, A Religiosa, 1796, Editora Publicações Europa-América, 1973, ISBN: 978-972-101-915-7.

Cortesia de EPEuropa-América/JDACT