domingo, 22 de dezembro de 2019

Nómada. Ayaan Hirsi Ali. «As cabines telefónicas e as placas do metro londrino eram britânicas, mas seria difícil acreditar que estávamos na Inglaterra. Senti o cheiro das lancheiras das minhas colegas na Escola Feminina de Ensino Fundamental Muçulmano em Nairóbi…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) O horário de visitas se aproximava. Logo a torrente de somalis sobre a qual Sahra me alertara começaria a chegar para ver meu pai, e eu não poderia suportar a ideia de um confronto. Assim, dolorosamente, despedi-me de abeh. Quando os homens da Scotland Yard me escoltaram para fora do hospital, eu me vi na Whitechapel Road, centro da maior população muçulmana do Reino Unido. Um ruidoso mercado coberto com uma lona ficava do outro lado da rua, repleto de barracas vendendo sáris de todos os tamanhos, cartões telefónicos internacionais e sanduíches de cordeiro picantes. Ao meu lado, na calçada, no ponto de autocarro perto da escadaria do hospital, havia um grupo de muçulmanas usando cada variedade imaginável de coberta islâmica, desde um lenço pastel sobre a cabeça até o espesso niqab preto que cobre o corpo completamente, com um véu de tecido também preto que esconde o rosto e os olhos. Eram mulheres jovens e fortes, e não velhas senis; algumas estavam grávidas, a maioria tinha muitas crianças pequenas, e estavam sob o sol na rua fazendo compras para a família. Muitas usavam uma variação que eu não conhecia: além de um longo roupão e de um lenço sobre a cabeça, elas tinham um véu extra para o rosto afixado com velcro, com duas tiras espessas de tecido preto presas de modo a deixar visível apenas cerca de dois centímetros, o suficiente para revelar os cílios.
As cabines telefónicas e as placas do metro londrino eram britânicas, mas seria difícil acreditar que estávamos na Inglaterra. Senti o cheiro das lancheiras das minhas colegas na Escola Feminina de Ensino Fundamental Muçulmano em Nairóbi, um embate de temperos e alimentos, e óleos perfumados para o cabelo. Aqui havia novamente a ruidosa agitação da rua e a mistura de pessoas, somalis e, imagino, paquistaneses e bengalis, que se amontoavam no mercado. Os simples odores me causaram uma pontada de saudades da inocência da juventude. Não sei se em outras culturas o sentimento de pertencer a uma comunidade é tão forte, mas para alguém que cresceu dentro de um clã, a sensação, o cheiro, da família é muito poderosa. E se alguém em meio a essa multidão me reconhecesse e decidisse comprar uma briga? Aos olhos de muitos deles, sou uma infiel e uma traidora, que anda por aí sem receber o devido castigo.
Eu e meus guarda-costas voltamos para o carro e dirigimos pela Whitechapel Road, lentamente, em meio ao tráfego pesado. Sentada do lado de fora de um fast-food halal, vi uma mulher pequena usando um longo roupão preto com um coque de tecido bordado sobre o nariz e a boca, ao estilo das argelinas. Duas crianças pequenas choravam no carrinho de bebé ao lado dela, que procurava animá-las e confortá-las enquanto erguia o tecido para tentar comer o quitute discretamente sob o véu. A criança mais velha também usava um véu. Não era um véu que cobria o rosto, e sim o cabelo e os ombros; era branco e folgado e possuía um elástico, fazendo com que se instalasse confortavelmente sobre a cabeça da criança. A menina não deveria ter mais do que três anos.
Um pouco mais adiante havia uma mesquita, a maior de Londres, de acordo com minha escolta. Uma pequena multidão de homens estava do lado de fora, todos usando roupas folgadas, barbas longas e chapéus brancos típicos. Todas aquelas pessoas tinham abandonado seus países de origem, indispostas a ou incapazes de deixar o passado para trás, apenas para se reunirem aqui, onde defendem a sua cultura com mais força do que em Nairóbi. Ali estava a mesquita, como um norte magnético simbólico, a força que levava as mulheres deles a se cobrir com tamanha ferocidade, para melhor separá-las da terrível influência da cultura e dos valores do país onde escolheram morar. Foi apenas um vislumbre, e ainda assim fui acometida por uma sensação instantânea de pânico e sufocamento. Eu estava de volta ao coração de tudo: dentro do mundo de véus e antolhos, do mundo em que as mulheres precisam esconder o cabelo e o corpo, precisam se encolher para comer em público, e precisam manter a distância de alguns passos quando acompanham o marido na rua. Uma teia de valores, de horror, de vergonha e de religião, ainda me enredava a todas aquelas mulheres no ponto de autocarro e a quase todas as mulheres que passavam pela Whitechapel Road naquela manhã. Estávamos todas muito longe de onde nasci, mas eu era a única que tinha deixado para trás aquela cultura. Elas trouxeram consigo a sua teia de valores, atravessando metade do mundo. Tive a sensação de ser a única verdadeira nómada.

A Minha meia-irmã
No caminho de volta até ao aeroporto de Heathrow, lembrei-me da primeira vez que encontrei a minha meia-irmã, Sahra, em 1992, na Etiópia. Ela tinha oito anos, e eu, com 22, tinha acabado de me casar e estava a caminho da Europa. Apelamos para a linguagem de sinais, sorrimos, ficamos de mãos dadas e falhando nas tentativas de compreender uma à outra. Sahra era uma criança adorável, com uma curiosidade luminosa e um jeito de demonstrar afeição fisicamente que herdara do meu pai. Ela corria pela casa com a mesma energia, entusiasmo e espírito brincalhão da minha irmã Haweya. Naquele dia, Sahra vestia um vestido sem mangas, rasgado e remendado em tantos pontos que não pude evitar de me sentir constrangida por não lhe ter trazido um novo». In Ayaan Hirsi Ali, Nomad, From Islam to America, Nómade, tradução de Augusto Calil, Companhia das Letras, 2010, ISBN 978-858-086-374-1 e / ou In Ayaan Hirsi Ali, Nómada, Galaxia Gutenberg, 2011, ISBN 978-848-109-928-7.
                                                                                                                            
Cortesia da CdasLetras/GGutenberg/JDACT