segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

O Evangelho Segundo Jesus Cristo. José Saramago. «Em verdade, em verdade vos digo, não há limites para a malícia das mulheres, sobretudo as mais inocentes. Saíram pois os emissários, com José à frente, a indicar o caminho…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Quem acredita levianamente, tem um coração leviano, e ele, coitado, sem presença de espírito para retorquir, armado do mesmo Eclesiástico, e a propósito do sonho que o perseguira a noite inteira, O espelho e os sonhos são coisas semelhantes, é como a imagem do homem diante de si próprio. Terminado, pois, o relato, olharam os anciãos uns para os outros e depois todos juntos para José, e o mais velho deles, traduzindo numa pergunta directa a discreta suspicácia do conselho, disse, É verdade, inteira verdade e só verdade o que acabas de contar-nos, e o carpinteiro respondeu, Verdade, toda a verdade e nada mais que a verdade, seja o Senhor minha testemunha. Debateram os anciãos longamente entre eles, enquanto José esperava à parte, e ao fim chamaram-no para anunciar-lhe que, por via de diferenças que persistiam sobre os procedimentos mais convenientes, haviam decidido enviar três emissários a interrogar Maria, directamente, sobre os estranhos acontecimentos, averiguar quem era afinal esse pedinte que ninguém mais vira, a figura que tinha, que exactas palavras pronunciara, se aparecia regularmente por Nazaré a pedir esmola, apurando-se, de passagem, que outras notícias poderia dar a vizinhança acerca do misterioso personagem. Alegrou-se José em seu coração porque, não querendo confessá-lo, intimidava-o a ideia de ter de ir enfrentar-se sozinho com a mulher, por aquele seu modo particular de estar agora, de olhos baixos, é certo, segundo manda a discrição, mas também com uma indisfarçável expressão provocadora, a expressão de quem sabe mais do que tenciona dizer, mas quer que se note.
Em verdade, em verdade vos digo, não há limites para a malícia das mulheres, sobretudo as mais inocentes.
Saíram pois os emissários, com José à frente, a indicar o caminho, e eram eles Abiatar, Dotaim e Zaquias, nomes que aqui se deixam registados para estorvar qualquer suspeita de fraude histórica que possa, acaso, perdurar no espírito de todas aquelas pessoas que destes factos e suas versões tenham obtido conhecimento através doutras fontes, porventura mais acreditadas pela tradição, mas não por isso mais autênticas. Enunciados os nomes, provada a existência efectiva de personagens que os usaram, as dúvidas que restem perdem muito da sua força, embora não a legitimidade. Não sendo isto de todos os dias, saírem à rua três anciãos emissários, como se lhes descobria pela dignidade particular da marcha, com as túnicas e as barbas ao vento, em pouco se juntaram ao redor deles alguns garotos, que, cometendo os excessos próprios da sua idade, uns risos, uns gritos, umas correrias, acompanharam os delegados da sinagoga até à casa de José, a quem o ruidoso e denunciador cortejo muito viera enfadando. Atraídas pelo ruído, as mulheres das casas próximas apareceram às portas e, pressentindo novidade, disseram aos filhos que fossem ver que ajuntamento era aquele à porta da vizinha Maria.
Penas perdidas foram, que entraram só os homens. A porta fechou-se com autoridade, nenhuma curiosa mulher de Nazaré veio a saber o que em casa do carpinteiro José se passou, até aos dias de hoje. E, tendo de imaginar alguma coisa para alimento da curiosidade insatisfeita, vieram a fazer do mendigo, que nunca chegaram a ver, um ladrão de casas, grande injustiça foi, que o anjo, porém não digais a ninguém que o era, aquilo que comeu não roubou, e ainda deixou penhor sobrenatural. É que, enquanto os dois anciãos de mais idade continuavam a interrogar Maria, foi o menos velho dos três, Zaquias, pelas imediações a recolher lembranças de um mendigo assim assim, conforme os sinais dados pela mulher do carpinteiro, e nenhuma vizinha soube dar-lhe notícias, que não senhor, ontem não passou por cá nenhum pedinte, e se passou à minha porta não bateu, isso devia de ser ladrão em trânsito, que, encontrando a casa com gente, fingiu ser pobre de pedir e descampou para outra parte, é um truque conhecido desde que o mundo é mundo.
Voltou Zaquias sem novas do pedinte a casa de José ao tempo que Maria repetia pela terceira ou quarta vez o que já sabemos. Estavam todos no interior da casa, ela ali de pé, parecendo ré de um crime, a tigela no chão, e dentro, insistente, como um coração palpitando, a terra enigmática, a um lado José, e os anciãos sentados em frente, como juízes, e dizia Dotaim, o do meio em idade, Não é que não queiramos acreditar no que nos contas, mas repara que és a única pessoa que viu esse homem, se homem era, teu marido nada mais sabe dele que ter-lhe ouvido a voz, e agora aqui vem Zaquias dizer-nos que nenhuma das tuas vizinhas o viu, Serei testemunha diante do Senhor, ele sabe que a verdade fala pela minha boca, A verdade, sim, mas quem sabe se toda a verdade, Beberei a água da prova do Senhor e ele manifestará se sou culpada, A prova das águas amargas é para as mulheres suspeitas de infidelidade, não pudeste ser infiel a teu marido, não te dava o tempo, A mentira, diz-se, é o mesmo que infidelidade, Outra, não essa, A minha boca é tão fiel como eu sou. Tomou então a palavra Abiatar, o mais velho dos três anciãos, e disse, Não te perguntaremos mais, o Senhor te pagará sete vezes pela verdade que tiveres dito ou sete vezes sete cobrará de ti pela mentira com que nos tenhas enganado». In José Saramago, O Evangelho segundo Jesus Cristo, Editorial Caminho (o Campo da Palavra), Lisboa, 1991, ISBN 972-210-524-8.

Cortesia de Caminho/JDACT