segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

A Mentira Sagrada. Luís Miguel Rocha. «Ao conhecimento do Reverendo Padre Hans Matthaus Schmidt que se registe a convocação para que o sujeito em epígrafe compareça na audiência ordinária a fim de esclarecer algumas dúvidas…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Vaticano. 19 de Abril de 2005
«(…) Não tomaria café quente desta vez, nem folhearia os livros na Thalia, tão-pouco os jornais. Limitar-se-ia a andar, a provar do novo frio que conquistava a cidade. O sol também já se rendera ao crepúsculo e chegara a vez de as pessoas se recolherem aos lares feitos e a desfazer-se, aos jantares, sorrisos, choros, aos convívios alegres e às solidões paranóicas, às surpresas e às depressões. Viena no final do dia, tão igual a qualquer cidade do mundo, no entanto, com um encanto tão peculiar. Hans quedar-se-ia mais um pouco a mirar a Ringstrasse, a olhar as montras e as janelas, as vidas que passavam, presas nelas próprias e em nada mais.
Esperava-o uma batalha difícil numa guerra perdida. Não tinha ilusões. A idade trouxera-lhe sabedoria e perspectiva. Não se sentia sozinho, apesar de não restar ninguém. Vivera bem e em paz, deu de si aos outros sem olhar a quem, não pediu nunca nada em troca, talvez por isso se sentisse com tanto. Nenhuma convocatória formal, enviada com mais de três meses de antecedência, escrita num tom intimidatório, o calaria.

Ao conhecimento do Reverendo Padre Hans Matthaus Schmidt
Que se registe a convocação para que o sujeito em epígrafe compareça
na audiência ordinária a fim de esclarecer algumas dúvidas
sobre os volumes da sua autoria O homem que nunca existiu e
Jesus é Vida, que, segundo um parecer preliminar da Congregação
para a Doutrina da Fé, contêm proposições erróneas e perigosas.
Roma, na sede da Congregação para a Doutrina da Fé, a 29 de
Junho de 2010, Dia dos mártires São Pedro e São Paulo.
Assina,
William Cardinal LEVADA
Prefeito

Luis E Ladaria S. I.
Arcebispo titular de Thibica
Secretário

Teve muito tempo para ler e reler o texto apático nestes 100 dias. E o dia escolhido para enviarem a epístola também não lhe parecia, de todo, inocente. Dia de São Pedro e São Paulo, só o mais importante, a seguir ao Natal, dia de Nosso Senhor Jesus Cristo, Senhor do Universo. Poderia ser uma mensagem encriptada ou paranóia dele. Hans retirou um envelope do bolso do casaco. Não se julgue, pela qualidade do papel, que se tratava da referida intimação. Essa já se encontrava na sua pasta, na residência, pronta para seguir viagem com ele. Esta tinha proveniência idêntica, da Santa Sé, mas em vez de um formal reconhecimento do expedidor, sem grandes parangonas, tinha um brasão com um fundo vermelho. Uma mitra de tríplice coroa, encimada por uma cruz em ouro, uma estola branca que descia do interior da coroa para se unir, abaixo, com duas chaves entrelaçadas, uma de prata e outra de ouro. As chaves que abriam o reino dos céus. Os versados nestas coisas de armas, brasões, símbolos, reconhecê-las-iam num piscar de olhos, pois eram as mais famosas a seguir às do próprio Sumo Pontífice. Tratava-se de um envelope da Secretária de Estado da Santa Sé.
Hans retirou o papel e releu-o. Fazia-o muito nestes tempos. Não levou muito tempo, era pouco extenso e assim que terminou percebeu a razão por que a Ringstrasse lhe parecia diferente. Dali a algumas horas tomaria o avião para Roma. No dia seguinte não estaria ali a admirar o movimento, a vida, as luzes, não tomaria um café quente no Café Schwartzenberg, o mais antigo de Viena, nem iria folhear os livros à Thalia. Não sentiria este frio que deixaria de ser uma novidade e não corromperia aquele ar com baforadas de vapor quente». In Luís Miguel Rocha, A Mentira Sagrada, Porto Editora, 2011, ISBN 978-972-004-325-2.

Cortesia de PEditora/JDACT