terça-feira, 10 de dezembro de 2019

A sádica nostalgia das fogueiras do santo ofício: o processo judicial contra a Antologia de poesia portuguesa erótica e satírica. Francisco Topa. «A publicação do referido livro é uma empresa dolosa de todos os arguidos, principalmente da Natália Correia e do Bento Melo…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Nos seus contornos gerais, o modo de funcionamento e os efeitos da censura no período do Estado Novo português são bem conhecidos, o mesmo acontecendo com a sua repercussão sobre a criação literária. Apesar disso, continuam a faltar trabalhos aprofundados sobre casos concretos. É um pequeno contributo nesse sentido que este artigo procura dar, abordando o processo judicial que teve por base a Antologia de poesia portuguesa erótica e satírica (Correia, 1966), no qual figuraram como réus Natália Correia, a organizadora, Fernando Ribeiro Melo, o editor, e alguns dos poetas com textos incluídos no volume e que estavam vivos à época. Com efeito, há neste caso uma série de elementos ignorados e que vale a pena revelar e tomar como motivo de reflexão, numa época em que quase todos os protagonistas já desapareceram, e, em muitos casos, foram esquecidos, e em que outras formas de censura e de vigilância do pensamento se vão impondo. O primeiro aspecto menos conhecido tem a ver com a duração do processo: sete anos e meio, o tempo que separa a primeira peça, datada de 17-1-1966, da última, de 27-6-1973. Aquela é o despachobque manda instaurar procedimento criminal contra os responsáveis da Antologia, com o argumento de que se trata (…) em cada um dos seus escritos, especialmente dos inéditos da autora e de outros que ela divulgou, e no seu conjunto [de] um caso de evidente ultraje à moral pública. O último elemento é o Auto de Inutilização [pelo fogo] do Livro Denominado Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, em que foi oficiante o juiz corregedor João Sá Alves Cortez, que chegaria a juiz do Supremo Tribunal de Justiça em Setembro de 1984, e o adjunto do Procurador da República Carlos Manuel Costa Saraiva. Com a referência a este aspecto não quero sugerir apenas que a lentidão da máquina judicial não é exclusiva da democracia; quero sobretudo pôr em evidência uma das peripécias mais interessantes do processo, a existência de dois inquéritos e de duas acusações, devido a um erro na primeira fase, detectado e declarado pelo ajudante (termo da época) do Procurador da República no 4.º Juízo Criminal de Lisboa.
O segundo aspecto menos conhecido tem a ver com os elementos concretos da acusação. Depois de uma fase de interrogatório na subdirectoria da Polícia Judiciária de Lisboa, que começa a 18-1-1966 com Natália Correia, a acusação será feita a 9-7-1966, vindo assinada por Fernando Lopes Melo. No seu ponto 4, lê-se o seguinte:

A publicação do referido livro é uma empresa dolosa de todos os arguidos, principalmente da Natália Correia e do Bento Melo, com mero intuito de explorar a desmoralização (sobretudo da juventude) sob o disfarce de apologia da liberdade, boa-fé, consciência (sic) límpida, cultura, obra e erudição e de civismo.

Mais à frente, no ponto 12, acrescenta-se:

Os escritos e os desenhos do mencionado livro que, segundo o consenso da generalidade das pessoas, são pornográficos, torpes, obscenos e de linguagem despejada conscientemente ofenderam publicamente, e podem continuar a ofender, o pudor geral, a decência pública, os bons costumes, o pudor sexual, a moralidade pública, // revelando até um propósito ultrajante.

No ponto seguinte são apresentados exemplos de passagens dos textos antologiados que, na perspectiva do acusador, consubstanciam a afirmação anterior. A consideração do conjunto suscita várias observações, a começar pelo facto de os trechos apresentados, sendo numerosos, pertencerem a um leque relativamente pequeno de autores, de um modo geral próximos de nós no tempo. De facto, são apenas seis os poetas não contemporâneos, três do século XVIII (António Lobo Carvalho, com quatro exemplos, José Agostinho Macedo, com três, e Bocage, com nove) e três do século XIX ou que nesse século maioritariamente exerceram a sua actividade (Sebastião Xavier Botelho, com um trecho, José Anselmo Correia Henriques, com dois, e Guerra Junqueiro, com um). Os restantes cinco eram contemporâneos, do século XX, embora só os dois últimos estivessem vivos em 1966: Silva Tavares (†1963), com um exemplo; Carlos Queiroz (†1949), também com um; Francisco Eugénio Santos Tavares (†1963), com cinco; Natália Correia, com um; Luiz Pacheco (†2008), também com um. Olhando depois para os trechos citados pelo acusador, verifica-se que houve uma clara secundarização da vertente satírica, apesar do conteúdo sociopolítico que ela apresenta em alguns casos, valorizando-se quase que em exclusivo a dimensão erótica e, dentro desta, o uso do chamado palavrão, em particular o que designa órgãos e práticas sexuais (v.g. co…/co…, crica, cu, cagueiro, cara…, caral…, caralh…, porra, arquiporra, pica, piça, mangal…, col…, pentelho, fod…, fornic…, lang…, min…, cor…, pu…). A leitura parece pois ter sido feita em diagonal, de meio do volume para a frente (além dos poetas medievais, ficaram de fora vários clássicos), e com o mero objectivo de encontrar palavras e expressões que chocassem, quod erat demonstrandum». In Francisco Topa, A sádica nostalgia das fogueiras do santo ofício: o processo judicial contra a Antologia de poesia portuguesa erótica e satírica, See discussions, stats, and author profiles for this publication, https://www.researchgate.net/publication/318947457, Universidade do Porto, Academia, 2015-2017, Wikipedia.

Cortesia de Academia/UPorto/JDACT