quinta-feira, 2 de julho de 2020

O Processo. Franz Kafka. «Ora, esta é muito boa!, exclamou K., saltando da cama para vestir rapidamente as calças. Verei que tipos de pessoas são as que estão na peça ao lado…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Um belo dia, Josef K., um bem-sucedido gerente bancário, é subitamente preso no seu próprio quarto, sem saber porquê nem por quem. Vê-se então envolvido num labiríntico e absurdo processo que decorre secretamente em obscuras secretarias instaladas em sótãos, conduzido por juízes menores que têm a mera incumbência de o inquirir. Concebido em 1914, o romance O Processo constitui para Kafka a forma ideal para expressar a fragmentação do mundo e da realidade em que vive o homem moderno. A presente tradução é de Álvaro Gonçalves, a primeira em Portugal a ser feita a partir da versão alemã baseada no manuscrito original de Kafka, que anula as alterações introduzidas pelo amigo e testamenteiro do autor, Max Brod, na sua primeira edição de 1925». In Sinopse

«Alguém devia ter caluniado Josef K., pois sem que ele tivesse feito qualquer mal foi detido certa manhã. A cozinheira da senhora Grubach, sua hospedeira, que todos os dias às oito horas lhe trazia o pequeno-almoço, não se apresentou no quarto de K. nessa manhã. Jamais acontecera isso. K. aguardou ainda um poucochinho, olhou, recostado no seu travesseiro, a anciã que morava em frente da sua casa e que o observava com uma curiosidade inteiramente fora do comum; depois, porém, sentindo-se ao mesmo tempo faminto e surpreso, fez soar a campainha. Imediatamente bateram na sua porta, e no dormitório entrou um homem ao qual K. jamais vira antes naquela casa. Era um tipo esbelto, porém de aspecto sólido, que vestia um traje negro e justo, o qual, semelhante a uma roupa de viagem, apresentava diversas pregas, bolsos, abas, botões e um cinto, que emprestavam à veste um ar estranhamente prático sem que, porém, pudesse estabelecer-se claramente para que serviriam todas aquelas coisas.
Quem é você?, perguntou K., erguendo-se a meio no leito. O homem, contudo, ignorou a pergunta, como se se devesse desculpar a sua aparição naquela casa, e limitou-se por sua vez a indagar: você chamou? Ana precisa trazer-me o pequeno-almoço, disse K., procurando estabelecer por conjectura, enquanto permanecia um momento em silêncio, quem seria aquele homem. Este, porém, não ficou muito tempo exposto aos olhares de K., mas, voltando-se para a porta, que entreabriu um pouco, disse a alguém que certamente estava por trás dela: quer que Ana lhe traga o pequeno-almoço. No quarto pegado seguiu-se a isto uma risota por cujo som não se poderia descobrir se correspondia a uma ou a diversas pessoas. Embora essa risota não tivesse dito ao estranho nada que ele ignorasse, este, contudo, disse a K., como um aviso: é impossível.
Ora, esta é muito boa!, exclamou K., saltando da cama para vestir rapidamente as calças. Verei que tipos de pessoas são as que estão na peça ao lado e como a senhora Grubach me explica esta intromissão. No mesmo instante, entretanto, ocorreu-lhe que não devia ter dito isso em voz alta porque assim reconhecia, de certo modo, o direito que o estranho tinha em vigiá-lo; no momento, porém, não deu importância ao facto. De todas as maneiras, o estranho já o entendera assim, pois lhe disse: não acha melhor ficar aqui? Não quero nem ficar aqui nem falar com você até que me diga quem é. Perguntei-lhe com boa intenção, disse o estranho, abrindo então a porta por iniciativa própria. A sala pegada, onde K. penetrou mais lentamente do que teria desejado, tinha à primeira vista quase o mesmo aspecto da noite anterior. Era o salão da senhora Grubach que talvez, com os seus móveis, tapetes, porcelanas, apresentava-se um tanto mais espaçoso que de costume; isso, porém, não se percebia de imediato, tanto mais que a modificação principal era a presença de um homem, sentado à janela, com um livro do qual afastou a vista quando K. se apresentou. Você deveria ter ficado em seu quarto. Franz não lhe disse? Sim, mas que deseja você?, indagou K., desviando o olhar do novo personagem para fixá-lo naquele a quem acabavam de chamar Franz, que permanecia de pé junto à porta, e para tornar a dirigi-lo por fim ao outro. Através da janela aberta tornava-se a ver a anciã vizinha que, apoiada na sua, contemplava a cena com curiosidade verdadeiramente senil, como se nada devesse perder dela». In Franz Kafka, O Processo1914-1925, Livros do Brasil, Colecção Dois Mundos, 2019, ISBN 978-972-382-928-0.

Cortesia de ELivrosdoBrasil/JDACT