domingo, 26 de julho de 2020

Sonho Febril. George R.R. Martin. «O senhor quer entrar no negócio dos barcos a vapor, é isso?, disse ele, inclinando-se para a frente»

Cortesia de wikipedia e jdact

Saint Louis, Abril de 1857
«(…) Até cumprir o resto de seus dias, Abner Marsh relembraria aquele momento, aquela primeira vez em que olhou dentro dos olhos de Joshua York. Quaisquer que fossem seus pensamentos naquela hora, quaisquer que fossem os planos que tivesse feito, foram sugados pelo redemoinho dos olhos de York. Rapaz e senhor, dândi e estrangeiro, todos eles sumiram naquele instante, e sobrou York, o homem apenas, seu poder, seu sonho, sua intensidade. Os olhos de York eram cinza, impressionantemente escuros num rosto tão pálido. Suas pupilas eram pontas de alfinete, de um negro abrasador, e penetraram directo em Marsh como se avaliassem com minúcias a sua alma. O cinza em volta daquelas pupilas parecia vivo, móvel, como um sapo no rio numa noite escura, quando as margens ficam indistintas e as luzes somem, não havendo nada no mundo a não ser seu barco e o rio e a neblina. Naquelas névoas dos olhos de York, Abner Marsh viu coisas, vislumbres fugazes que logo se perdiam. Havia uma inteligência fria espreitando por aquelas névoas. Mas havia também uma fera, escura e assustadora, acorrentada e raivosa, irada em meio à neblina. Gargalhada, solidão, paixão cruel: York tinha tudo isso em seus olhos. Mas acima de tudo havia força neles, uma força terrível, uma intensidade tão inexorável e impiedosa como o gelo que esmagara os sonhos de Marsh. Em algum lugar daquela neblina, Marsh podia sentir o gelo se movimentando, lento, muito lento, e ouvir o assustador estilhaçar de seus barcos e de todas as suas esperanças.
Naquele dia, Abner Marsh superou muitos homens com seu olhar, e ficou encarando York o maior tempo possível, com a sua mão segurando a bengala com tanta força que teve medo de parti-la em duas. Mas finalmente teve que desviar os olhos. O homem na mesa afastou a sopa, gesticulou e disse: capitão Marsh. Estava aguardando-o. Por favor, acompanhe-me. Sua voz era jovial, educada, fluente. Sim, disse Marsh, baixinho demais. Puxou a cadeira em frente da de York e acomodou-se. Marsh era um homem grande, com mais de um metro e oitenta, e cento e trinta quilos. Tinha um rosto avermelhado, uma barba densa e preta, que ele usava para dissimular um nariz achatado, afundado, e uma profusão de verrugas no rosto, mas nem a barba ajudava muito. Comentavam que era o homem mais feio do rio, e ele sabia disso. No seu pesado casaco azul de capitão, com a sua fileira dupla de botões de metal, era uma figura bruta e imponente. Mas os olhos de York haviam drenado a sua petulância. O homem devia ser um fanático, concluiu Marsh. Já vira olhos como aqueles antes, em loucos, em pregadores religiosos agressivos e uma vez no rosto de um homem chamado John Brown, na sangrenta Kansas. Marsh não queria contacto com fanáticos, com pregadores ou abolicionistas, ou com gente fazendo campanhas de abstenção alcoólica. Mas, quando York falou, não pareceu um fanático. Meu nome é Joshua Anton York, capitão. J. A. York nos negócios, Joshua para os amigos. Espero que possamos ser não só parceiros nos negócios, mas amigos, com o tempo. Seu tom era cordial e razoável. Veremos, disse Marsh, indeciso. Agora, os olhos cinza à sua frente pareciam neutros e vagamente divertidos; seja lá o que tivesse visto neles, já se perdera. Sentiu-se confuso. Penso que recebeu a minha carta? Estou com ela aqui, disse Marsh, puxando o envelope dobrado do bolso de seu casaco. Quando a oferta chegou, parecera-lhe um impossível golpe de sorte, a salvação para tudo o que ele julgava perdido. Agora, porém, não tinha mais essa certeza. O senhor quer entrar no negócio dos barcos a vapor, é isso?, disse ele, inclinando-se para a frente.
Um garçom apareceu. O senhor vai comer com o senhor York, capitão? Por favor, acompanhe-me, York incentivou. Acho que sim, disse Marsh. York podia superá-lo encarando-o por mais tempo, mas ninguém no rio ganhava de Marsh na mesa. Vou tomar um pouco dessa sopa e também uma dúzia de ostras e uns dois frangos assados com batatas e tudo mais. Por favor, bem tostadas. E alguma coisa para beber. O que está tomando, senhor York? Borgonha. Óptimo, traga-me uma garrafa do mesmo. York olhou, divertindo-se. O senhor tem um apetite e tanto, capitão. Para combinar com uma cidade formidável, disse Marsh com cuidado, e um rio formidável, senhor York. A gente precisa manter a nossa força em dia. Isso aqui não é Nova York, tampouco Londres. Disso já estou suficientemente a par, disse York. Bem, espero que sim, já que está no negócio dos barcos a vapor. Trata-se da coisa mais formidável que existe.
Devemos entrar directo nos negócios, então? Bem, o senhor tem uma linha de barcos de passageiros. Quero comprar um barco e dividir meio a meio. Como o senhor veio até aqui, imagino que tem interesse na minha oferta. Estou razoavelmente interessado, Marsh concordou, e razoavelmente confuso também. O senhor parece um homem inteligente. Acho que deve ter-se informado a meu respeito antes de me escrever esta carta. Ele bateu na carta com o dedo. Talvez já saiba que esse último Inverno quase me arruinou.
York não disse nada, mas algo no seu rosto convidou Marsh a continuar. A Companhia Fevre de Vapores Fluviais, é isso o que eu sou, Marsh prosseguiu. Chamei-a assim por causa do lugar onde nasci, lá no alto do Fevre, perto de Galena, não porque trabalhe apenas nesse rio, pois não é assim. Tive seis barcos, operando principalmente no alto Mississippi, de St. Louis até St. Paul, com algumas viagens subindo o Fevre, o llinois e o Missouri. Estava indo muito bem, acrescentando um ou dois barcos novos a cada ano, pensando em entrar no negócio também em Ohio, ou talvez até em New Orleans. Mas em Julho, o meu Mary Clarke teve uma caldeira estourada e pegou fogo, perto de Dubuque; queimou até a linha d’água, com cem mortos. E este Inverno, foi um inverno terrível, fiquei com quatro de meus barcos estacionados aqui o inverno todo, em St. Louis. O Nicholas Perrot, o Dunleith, o Sweet Fevre e o meu Elizabeth A., novinho, apenas quatro meses de serviço e um barco muito bom também, quase trezentos pés de comprimento, com doze grandes caldeiras, rápido como qualquer barco a vapor no rio. Estava realmente orgulhoso da minha Lady Liz. Custou-me duzentos mil dólares, mas valeu cada centavo». In George R.R. Martin, Sonho Febril, 1982, Saída de Emergência, 2018, ISBN 978-989-773-091-7.

Cortesia SdeEmergência/JDACT