sábado, 25 de maio de 2019

Rosa Brava. José Manuel Saraiva. «O próprio achacadiço, depois de ingerir dois vasos de chá quente de carqueja, levantou-se aliviado e, com os outros já prontos a partir, gracejou: ainda não foi desta que me fui!»

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«(…) E ainda que o conde de Barcelos e os amigos considerassem o jovem rei muito voluntarioso, nenhum, porém, deixou de fazer veladas críticas ao facto de ele nunca ouvir conselhos de quem quer que fosse, sendo até regra pessoal proceder ao contrário do que lhe era sugerido. Um exemplo desse péssimo hábito foi dado pelo alcaide de Castelo Branco, com o aval de todos, ao lembrar a simpatia com que o rei Fernando observava a entrada diária em Portugal de numerosos estrangeiros, rebeldes e tresloucados, mercadores e criminosos, sem atender ao protesto dos portugueses em geral, e à advertência dos conselheiros em particular, receando que a desajustada transmigração que se verificava viesse a constituir, mais cedo ou mais tarde, um sério perigo para a segurança de vilas e de cidades, de pessoas e de bens. Outro assunto igualmente discutido respeitou à ideia que todos tinham sobre a tentação mal disfarçada de o monarca se intrometer nos negócios políticos de Castela. Era um capricho antigo, um desejo obsessivo que o rei nunca escondeu desde que subira ao trono. Sobre este complexo problema, debatido com extraordinária paixão, a maioria considerava que, a materializar-se tal desígnio, Portugal e os portugueses poderiam vir um dia a pagar caro o preço da aventura. Opinião contrária foi no entanto defendida com fervor por João Afonso Telo e Gonçalo Teles. Até o lente Vicente Esteves, apesar de se mostrar mais interessado nos movimentos de Leonor do que nas discussões ali travadas, se manifestou de acordo com a tese de que o rei devia intervir nas lutas internas do país vizinho antes que alguém, designadamente o bastardo Henrique de Trastâmara, usurpasse o legítimo trono a Pedro de Castela. Só Leonor Teles, que passou o jantar a insinuar-se, a entrar e a sair da sala, passeando-se pela frente e por trás do professor, não participou na conversa. Nem o tio, de resto, lhe consentiria isso, porque o estatuto de uma mulher entre homens, mesmo que fosse nobre e bela, não chegava a tanto.

Ao queixar-se de que não dispunha em Coimbra de um espaço ideal de concentração para escrever um comentário jurídico aos nove primeiros livros do Corpus Juris Civilis e ao Digesto Velho, que lhe fora pedido pelo cónego Gonçalo Migueis, bacharel da Universidade, Vicente Esteves acabaria por ver realizado na mesma hora o desejo de ser convidado a regressar a Pombeiro e lá permanecer por tempo indeterminado. Foi o próprio João Lourenço Cunha que o desafiou a instalar-se em sua casa, considerando que o sossego e os ares da Beira o ajudariam no trabalho e na inspiração. A conversa sobre o assunto decorreu já ao fim do jantar na presença da mulher, que nada disse, e do conde, que de imediato apoiou a ideia sob o argumento de que melhor local do que aquele não havia para o fim pretendido pelo lente. Sensibilizado com o convite, Vicente Esteves curvou-se respeitosamente e, levando a mão ao peito, disse: se a minha presença não for desonrosa para o senhor João Lourenço e sua dilecta esposa, senhora Leonor Teles Menezes, aceitarei com todo o prazer o convite que me fazeis. Só terei de ir a Coimbra buscar o material de trabalho e regressar depois.
Para mim é que é uma honra a presença de tão ilustre lente de Coimbra em minha casa, respondeu o morgado numa linguagem desacertada, sem conseguir disfarçar o excesso de álcool que havia consumido. Leonor Teles, essa, lúcida e serena, apenas acrescentou: por quem sois, senhor.
Nesse momento, e quando já estavam todos prontos a regressar, João Afonso Telo foi vítima de um súbito achaque que só não o fez cair desamparado no lajedo da cozinha por que o sobrinho e o arcebispo de Viseu conseguiram segurar-lhe a tempo o pesado corpo. Arrastado para a sala e observado no mesmo instante pelo médico, concluiu-se que a indisposição terá sido causada pelos excessos do jantar. Nada de cuidados, portanto. O próprio achacadiço, depois de ingerir dois vasos de chá quente de carqueja, levantou-se aliviado e, com os outros já prontos a partir, gracejou: ainda não foi desta que me fui!
Nessa noite, na sua câmara solitária, Leonor Teles demorou a adormecer». In José Manuel Saraiva, Rosa Brava, Oficina do Livro, 2005, ISBN 978-989-555-113-2.
                                                                                                              
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