terça-feira, 14 de maio de 2019

A Sádica Nostalgia das fogueiras do Santo Ofício (maldito): o processo judicial contra a Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica. Francisco Topa. «O terceiro aspecto menos conhecido do processo diz respeito aos arguidos, seus advogados e testemunhas arroladas»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) No ponto seguinte são apresentados exemplos de passagens dos textos antologiados que, na perspectiva do acusador, consubstanciam a afirmação anterior. A consideração do conjunto suscita várias observações, a começar pelo facto de os trechos apresentados, sendo numerosos (29), pertencerem a um leque relativamente pequeno de autores (11), de um modo geral próximos de nós no tempo. De facto, são apenas seis os poetas não contemporâneos, três do século XVIII (António Lobo Carvalho, com quatro exemplos, José Agostinho Macedo, com três, e Bocage, com nove) e três do século XIX ou que nesse século maioritariamente exerceram a sua actividade (Sebastião Xavier Botelho, com um trecho, José Anselmo Correia Henriques, com dois, e Guerra Junqueiro, com um). Os restantes cinco eram contemporâneos, do século XX, embora só os dois últimos estivessem vivos em 1966: Silva Tavares, faleceu em 1963, com um exemplo; Carlos Queiroz, faleceu em 1949, também com um; Francisco Eugénio Santos Tavares, faleceu em 1963, com cinco; Natália Correia, com um; Luiz Pacheco, morreu em 2008, também com um. Olhando depois para os trechos citados pelo acusador, verifica-se que houve uma clara secundarização da vertente satírica, apesar do conteúdo sociopolítico que ela apresenta em alguns casos, valorizando-se quase que em exclusivo a dimensão erótica e, dentro desta, o uso do chamado palavrão, em particular o que designa órgãos e práticas sexuais (v.g. co…/co…, crica, cu, cagueiro, ca…, ca…, car…, porra, arquipor…, pica, piça, mangalho, co…, pente…, fo…, forni…, lang…, mi…, cor…, pu…). A leitura parece pois ter sido feita em diagonal, de meio do volume para a frente (além dos poetas medievais, ficaram de fora vários clássicos), e com o mero objectivo de encontrar palavras e expressões que chocassem, quod erat demonstrandum.

O terceiro aspecto menos conhecido do processo diz respeito aos arguidos, seus advogados e testemunhas arroladas. Quanto aos primeiros, são bem sabidos os que acabaram por sair condenados: Natália Correia, o editor Fernando Ribeiro Melo e os poetas Mário Cesariny Vasconcelos (1923 - 2006), Luiz Pacheco, Ary dos Santos (1937 - -1984) e EM. Melo Castro (1932). Houve contudo mais dois arguidos: Geraldo Soares, jornalista de O Século, e Francisco Marques Esteves, empregado de escritório, que forneceram a Natália Correia inéditos de poetas contemporâneos já falecidos à época (como Silva Tavares, António Botto [1897 - 1959] ou Carlos Queiroz). O primeiro desses dois implicados virá a morrer no decurso do processo, a 1-IV-1967 (f. 166), vítima de tumor pulmonar, ao passo que o segundo será absolvido. Quanto aos advogados, podemos dizer que os arguidos, e depois acusados, foram representados pela fina-flor da advocacia da época que militava na oposição ao regime: Manuel João Palma Carlos (falecido em 2001, aos 86 anos, na sequência de um incêndio que atingiu o lar de idosos em que vivia e que vitimou mais cinco ocupantes), o qual defendeu Natália Correia, Ribeiro Melo e Francisco Marques Esteves; Fernando Luso Soares (morto em 2004 e que se destacou também como ficcionista, ensaísta e dramaturgo), advogado de Mário Cesariny; Francisco Salgado Zenha (desaparecido em 1993), que tinha como constituinte Melo Castro; José Vera Jardim (1939), que representou Ary dos Santos (embora a dada altura subestabeleça num colega); e ainda Francisco Vicente, que acompanhou Artur Geraldo Soares, e um advogado oficioso atribuído a Luiz Pacheco que seria mais tarde substituído por António Sousa. É curioso notar que dois dos elementos desta pequena lista viriam a ser ministros da justiça depois da Revolução dos Cravos (Salgado Zenha e Vera Jardim) e que um outro, Palma Carlos, teve o mesmo destino dos exemplares da Antologia apreendidos pela PIDE: a destruição pelo fogo. Sinais dos tempos, certamente, sobre os quais importa meditar». In Francisco José Jesus Topa, A Sádica Nostalgia das fogueiras do Santo Ofício: o processo judicial contra a Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, Revista Historiae, Universidade do Porto, Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada, Espólio de Natália Correia, Torre do Tombo, Tribunal de Comarca de Lisboa, 4.º Juízo Criminal, 2015.

Cortesia de RHistoriae/UdoPorto/TorredoTombo/JDACT