sábado, 15 de maio de 2021

Rosa Brava. José Manuel Saraiva. «Deslocada do sereno ambiente onde nasceu, cresceu e foi educada, Maria Teles, irmã da senhora do morgado de Pombeiro, começava a sentir cada vez mais e maiores dificuldades de adaptação a Lisboa e ao movimento da corte»

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«(…) Apesar do pouco tempo que dom Fernando levava de reinado, começavam portanto a ser já muitas as críticas da nobreza e do clero, sobretudo do alto clero, ao comportamento irresponsável, mandrião e mulherengo do monarca; mas mais e pior do que essas eram as que, embora por motivos diferentes, provinham da arraia-miúda, de cujo universo faziam parte a peonagem, os rendeiros, os colonos, os servos, os assalariados rurais, os mesteirais, os mercadores-ambulantes e os pobretões. Na realidade, era o povo a principal vítima dos medonhos abusos de poder e jurisdição dos grandes senhores; era ele que por não ter ninguém que o protegesse chegava a clamar pela sua própria venda aos mouros para não continuar na sujeição a que se via obrigado. Alarmado com a perspectiva do desastre para o país no caso de as notícias sobre a hipotética aliança do monarca com a infanta se confirmarem, João Lourenço Cunha soltou a certa altura em voz alta, de si para si, um sofrido desabafo: isto vai mal! Claro que não era o eventual casamento de dom Fernando que o inquietava, pela absoluta certeza de que a cada homem cabia a liberdade da escolha ou o desígnio da imposição, sobretudo se fosse rei, mas sim as consequências decorrentes do consórcio dos dois irmãos. Quanto ao resto, mais propriamente sobre as queixas do povo que se ouviam por toda a parte, não se ralava. Pelo contrário. Considerava até que dom Fernando estava a ser demasiado brando com a plebe, improcedendo assim as políticas de rigor e autoridade dos antecessores Afonso IV, seu avô, e dom Pedro, seu pai. Para o morgado, ambos tinham dado um excelente exemplo de governação ao associarem novas disposições legais aos regulamentos já subscritos pelos monarcas anteriores, permitindo a sacerdotes e a magistrados que, a coberto do poder das suas vestes talares, negras e medonhas, aplicassem severas medidas sentenciais como a decapitação pela espada, a amputação dos pés, das mãos, do nariz e das orelhas, o britamento dos dentes, a extracção da língua ou mesmo a combustão. No seu desvairado entendimento, tornava-se indispensável frenar o povo, moderar-lhe os impulsos, mantê-lo no lugar onde por alguma razão Deus o pusera, e dar-se continuidade à escola de dom Pedro, esse bem-aventurado Justiceiro que nunca abriu brechas na sociedade ao não consentir quaisquer fidúcias à arraia-miúda nem deixar o alto e baixo cleros arrogarem-se uma autoridade para além da que lhes era admitida.

Foi, pois, a pensar em tudo isto, sobre o que lhe disseram em Coimbra acerca do rei dom Fernando e sobre o que sabia do modo como o rei dom Pedro exercera anteriormente o seu poder, severo e nivelador, punindo com as próprias mãos os desmandos de ricos e pobres, plebeus e poderosos, nobres e clérigos, judeus e vagabundos, almirantes e bispos, que João Lourenço Cunha adormeceu, por fim, no banco defronte à lareira já quase em extinção, ausente da mulher e cansado da viagem. E nem o lúgubre piar dos mochos e das corujas, que naquela noite de vento lhe rondavam a casa como anúncio de morte ou de tragédia, o despertou do sono profundo em que caíra.

Deslocada do sereno ambiente onde nasceu, cresceu e foi educada, Maria Teles, irmã da senhora do morgado de Pombeiro, começava a sentir cada vez mais e maiores dificuldades de adaptação a Lisboa e ao movimento da corte. Tinham passado cinco meses apenas sobre o dia em que deixou Barcelos, mas ainda assim um longo período para uma mulher habituada a ser servida, e nunca a servir os outros. É certo que se afeiçoara a dona Beatriz, de quem era camareira e se tornara entretanto moderada confidente, mas as saudades da Beira e a nostalgia do passado excediam em tudo o que a surpreendia e se lhe revelava. No Paço ou nas residências reais da alcáçova e de Santo Elói já ela havia visto muita gente venerável, lentes, magistrados, arcebispos, donzelas de linhagem e fidalgos de valia, e conhecido pessoalmente até o execrável Diogo Lopes Pacheco, um dos assassinos de Inês de Castro, frequentador assíduo da corte, senhor de Trancoso e um dos mais notáveis políticos do reino, Álvaro Pais, vedor-mor da chancelaria, dom Martinho, bispo de Lisboa, o enfezado Nun'Álvares Pereira, e três dos quatro irmãos do monarca: dom Afonso, dom Dinis e o bastardo dom João, mestre de Aviz. Faltava-lhe conhecer apenas dom João Castro». In José Manuel Saraiva, Rosa Brava, Oficina do Livro, 2005, ISBN 978-989-555-113-2.

Cortesia de OdoLivro/JDACT

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