sexta-feira, 30 de junho de 2023

Assim Começa o Mal. Javier Marías. «E a princípio, quando minha vista não sabia onde pousar, minha atenção dividida entre o olho vivo e marítimo e o tapa-olho morto e magnético, não via inconveniente…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Porém o que mais chamava a atenção de quem o via pela primeira vez ao vivo ou numa foto frontal na imprensa, muito escassas, era o tapa-olho que exibia na sua vista  direita, uma venda de caolho das mais clássicas, teatrais ou até cinematográficas, negra e avultada e bem cingida por um elástico fino da mesma cor que cruzava em diagonal a sua testa, e se ajustava sob o lóbulo da orelha esquerda. Sempre me perguntei por que esses tapa-olhos têm curvatura, não os que se limitam a tapar, de pano, mas os que ficam inamovíveis e como que encaixados e são de não sei que material rígido e compacto. (Parecia baquelite, e dava vontade de tamborilar nele com o rosado das unhas para saber como era o tacto, o que nunca ousei averiguar com o do meu empregador, lógico; soube em compensação, isso sim, como soava, pois às vezes, quando estava nervoso ou se irritava, e também quando parava para pensar antes de soltar uma frase ou uma fala, com o polegar sob a axila como se fosse o diminuto bastão de um militar ou de um cavaleiro passando em revista suas tropas ou suas cavalgaduras, Muriel fazia exactamente isso, tamborilava no tapa-olho duro com o branco ou com o filete das unhas da mão livre, como se invocasse em seu auxílio o globo ocular inexistente ou que não servia, devia gostar do som, e de facto era agradável, cric-cric-cric; no entanto, dava um certo arrepio vê-lo chamar assim por seu olho ausente, até se acostumar com esse gesto). Talvez aquele volume buscasse produzir a impressão de que debaixo há um olho, embora talvez não haja, e sim uma órbita vazia, um oco, uma fundura, um afundamento. Talvez esses tapa-olhos sejam convexos precisamente para desmentir a concavidade horrenda que ocultam em alguns casos; quem sabe não estão recheados com uma esfera acabada de vidro brando ou de mármore, com sua pupila e sua íris pintados com realismo ocioso, perfeitos, que nunca hão-de se ver, envolta em negro, ou que só seu dono verá, terminado o dia, ao destapá-la cansado diante do espelho, e quem sabe tirá-la.

E se isso inevitavelmente chamava a atenção, não atraía menos o olho útil e descoberto, o esquerdo, de um azul escuro e intenso, como de mar vespertino ou quase já anoitecido, e que, por ser somente um, parecia captar tudo e se dar conta de tudo, como se houvessem concentrado nele as capacidades próprias e as do outro, invisível e cego, ou como se a natureza quisesse compensar isso com um suplemento de penetração pela perda do seu par. Tantas eram a força e a rapidez desse olho que eu, gradativa e dissimuladamente, tentava me situar às vezes fora do seu alcance para que não me ferisse com seu olhar agudo, até Muriel me admoestar: Fique um pouco à direita, aí quase sai do meu campo de visão e me obriga a me contorcer, lembre-se que ele é mais limitado que o seu.

E a princípio, quando minha vista não sabia onde pousar, minha atenção dividida entre o olho vivo e marítimo e o tapa-olho morto e magnético, não via inconveniente em me chamar a atenção: Juan, estou te falando com o olho que enxerga, não com o defunto, de modo que faça o favor de me ouvir e não se distraia com o que não solta palavra. Muriel fazia aberta referência à sua visão dividida, ao contrário dos que estendem um incómodo véu de silêncio sobre qualquer defeito ou deficiência que possua, por mais visíveis e grandiosos que sejam: há manetas desde a altura do ombro que nunca reconhecem as dificuldades impostas pela manifesta falta de um membro e quase pretendem jogar malabares; pernetas que empreendem com uma muleta a escalada do Annapurna; cegos que continuamente vão ao cinema e criam alvoroço nos trechos sem diálogos, nos mais visuais, queixando-se de que está fora de foco; inválidos em cadeiras de rodas que fingem desconhecer esse veículo e se empenham em subir degraus desdenhando as numerosas rampas que lhes oferecem hoje em toda parte; carecas sem um fio de cabelo que fazem gestos de estarem se despenteando brutalmente, a imaginária cabeleira se endemoninhando, quando começa uma ventania. (Isso é com eles, são livres, não pretendo criticá-los)». In Javier Marías, Assim Começa o Mal, 2015, Alfaguara, ISBN 978-989-665-008-7.

Cortesia de Alfaguara/JDACT

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