sexta-feira, 10 de abril de 2020

O Pêndulo de Foucault. Umberto Eco.«Acreditar em duas coisas que não estejam juntas, com a ideia de que em alguma parte deve haver uma terceira, oculta, que as integra, é a boa imagem da credulidade. A incredulidade não exclui a curiosidade, corrobora-a»

Cortesia de wikipedia e jdact

Ficheiro: Abu
«(…) Aquela noite no periscópio eu não tinha nenhuma prova de que tudo o que me revelara a impressora fosse verdade. Podia ainda defender-me com a dúvida. Ao chegar à meia-noite talvez terei percebido que viera a Paris, que me havia escondido como um ladrão num inócuo museu da técnica, só por me haver metido estupidamente numa macumba organizada para turistas e me deixara prender pela hipnose dos perfumadores e o ritmo dos pontos... E minha memória tentava, um após outro, o desencanto, a piedade e a suspeita, a fim de recompor o mosaico, e aquele clima mental, aquela mesma oscilação entre ilusão fabulatória e pressentimento de um embuste, era tudo o que eu gostaria de conservar agora, quando de mente mais lúcida reflito sobre o que então pensava, recompondo os documentos lidos freneticamente um dia antes, de manhã no aeroporto e durante a minha viagem rumo a Paris. Procurava esclarecer para mim mesmo o modo irresponsável pelo qual eu, Belbo e Diotallevi havíamos chegado a reescrever o mundo e, Diotallevi mo teria dito, a redescobrir as partes do Livro que estavam incisas a fogo branco, nos interstícios deixados por aquelas inseridas a fogo negro que povoavam, e pareciam deixar explícita, a Torah. Aqui estou, agora, depois de haver readquirido, espero, a serenidade e o Amor Fati, para reproduzir a história que reconstituí, cheio de inquietação, e de esperança ainda que falsa, no periscópio, há duas noites, depois de havê-la lido dois dias antes no apartamento de Belbo e por havê-la vivido em parte sem dela ter consciência, nos últimos doze anos, entre o uísque do Pílades e a poeira da Garamond Editores.

Binah
Fazer um curso universitário depois de 68 é o mesmo que ser admitido na Academia de Saint-Cyr em 93. Tem-se a impressão de se haver enganado com o ano do nascimento. Por outro lado, Jacopo Belbo, que tinha pelo menos quinze anos mais que eu, convenceu-me mais tarde de que esta é uma sensação que todas as gerações experimentam. Nascemos sempre sob o signo errado e estarmos no mundo de maneira dignificante equivale a corrigirmos dia após dia o nosso horóscopo. Creio que nos tornamos naquilo que nossos pais nos ensinaram em tempos já idos, quando não se preocupavam em educar-nos. Formamo-nos por descartes de sabedoria. Eu tinha dez
anos e queria que eles me fizessem a assinatura de um certo semanário que publicava as obras-primas da literatura mundial em quadrinhos. Não por mesquinhez, mas por suspeitar da propriedade dos quadrinhos, meu pai tendia a esquivar-se. A finalidade desta revista, sentenciei então, citando a divisa da série, pois era um garoto astuto e persuasivo, é educar de maneira agradável. Meu pai, sem erguer os olhos do jornal, disse: a finalidade do teu jornal é a mesma de todos os jornais, ou seja, vender o máximo de exemplares possível. Comecei a partir daquele dia a me tornar incrédulo.
Ou seja, arrependia-me de ter sido crédulo. Havia-me deixado arrastar por uma paixão da mente. Eis a credulidade. Não é que o incrédulo não deva acreditar em nada. Não crê é em tudo. Crê numa coisa de cada vez, e numa segunda apenas se essa de certa maneira descende da primeira. Procede de maneira míope, metódica, não arrisca horizontes. Acreditar em duas coisas que não estejam juntas, com a ideia de que em alguma parte deve haver uma terceira, oculta, que as integra, é a boa imagem da credulidade. A incredulidade não exclui a curiosidade, corrobora-a. Diferente da cadeia das ideias, amava das ideias a polifonia. Basta não acreditar nelas, para que duas ideias, ambas falsas, possam colidir criando um bom intervalo ou um diabolus in musica. Não respeitava as ideias sobre as quais outros apostavam a vida, mas duas ou três ideias que eu não respeitava podiam criar melodia. Ou ritmo, melhor se jazz.
Mais tarde Lia me haveria de dizer: vives de superficialidades. Quando pareces profundo é porque consegues concentrar um grande número delas, dando-lhes a aparência de um sólido, um sólido que se fosse sólido não conseguiria manter-se em pé. Estás dizendo que sou superficial? Não, ter-me-ia respondido, aquilo que os outros chamam profundidade é apenas um tesseract, um cubo tetradimensional. Entras de um lado, sais do outro, e te encontras num universo que não pode coexistir com o teu. (Lia, não sei se voltarei a ver-te, agora que Eles entraram do lado errado e invadiram teu mundo, e por culpa minha: fiz-lhes acreditar que havia abismos, como eles queriam por fraqueza)». In Umberto Eco, O Pêndulo de Foucault, 1988, Sicidea, Difel, 2008, ISBN 978-846-125-726-3.

Cortesia de Sisidea/Difel/JDACT