quarta-feira, 1 de abril de 2020

Festas que se fizeram pelo Casamento do rei Afonso VI. Ângela Barreto Xavier, Pedro Cardim, Fernando Bouza Álvarez. «… a Câmara de Lisboa supervisionara todo o empreendimento, realizando medições, previsões de custos, memórias descritivas, e ainda participando no desenho de algumas decorações…»

jdact

Reddit Quod Recipit. Imagens das Festas de Casamento de Afonso VI
«(…) É que, para além dos temas representados nessas pinturas, a sobrecarga e a densidade decorativa impressionavam, decerto, quem quer que naquela altura contemplasse os monumentos levantados para as festividades. Como se sabe, ao nível da decoração (pictórica, escultórica e literária) dos arcos era habitual apresentar, lado a lado, formas decorrentes de uma tradição hispânica, mais vernácula e pitoresca, e formas mais eruditas, que buscavam sobretudo a beleza nobre imitando modelos oriundos de além-Pirenéus, ou contidos em tratados de arquitectura. Para a fabricação de tais efeitos, os nossos artistas devem ter recorrido, como de costume, às diversas colecções manuscritas de provérbios que então circulavam, as quais serviam de inspiração para pinturas murais; para além dos livros de emblemas que também devem ter servido de inspiração para os gravadores, pintores e escultores que nos preparativos da festa participaram. O certo é que a decoração abundante estava decididamente em voga, destinada não só a adornar mas também a enriquecer e deleitar.
Tal sofisticação revela que os organizadores da festa tinham consciência do impacto que as imagens exerciam sobre o público que ia apreciar os arcos triunfais. E esta consciência era estruturante das festividades ligadas à realeza. Sousa Macedo, reputado erudito e político, não pode ter passado ao lado de tão poderoso instrumento de publicitação. O seu protagonismo na preparação da festa e na escolha da decoração constitui algo de bastante provável. Acerca disso é bem expressivo o seu comentário ....como se premeditou succedeu, tecido a propósito do resultado dos meios utilizados para acalmar os povos da cidade de Lisboa, quando dos distúrbios ocorridos nesta cidade depois da tomada de Évora. Nessa ocasião, os meios escolhidos tinham sido a realização de uma procissão (para entreter as mulheres) e a formação dos terços da cidade (para ocupar os homens) de modo a divertir os intentos violentos que então ocupavam a sua atenção. Lembre-se que já nessa altura Sousa Macedo servia como secretário de Estado e Castelo Melhor como escrivão da puridade.
Também o escrivão da puridade era, decerto, um dos que melhor dominava esta arte de mover e comover o vulgo. Mas é um problema imbricado, este o de deslindar as diversas autorias da festa: a programática mais geral e as autorias materiais. Sabe-se que João Nunes Tinoco teria desempenhado um papel importante, na parte da arquitectura. A ele teria cabido projectar, pelo menos, os palanques erigidos no Terreiro do Paço, e uma das máquinas de fogo, para as festas de Outubro. E é certo que, como acontecera em outras ocasiões, a Câmara de Lisboa supervisionara todo o empreendimento, realizando medições, previsões de custos, memórias descritivas, e ainda participando no desenho de algumas decorações suplementares, estabelecendo as condições de trabalho dos artistas escolhidos para realizar a obra. Em alguns casos, os oficiais da Câmara limitavam-se a reproduzir e a repetir soluções já encontradas para outras festividades anteriores, no início dessa mesma década Lisboa assistira a uma opulenta festa quando da partida da rainha dona Catarina para Inglaterra, durante a qual surgiram algumas das soluções decorativas que iremos encontrar um pouco mais tarde, em 1666.
Noutros casos o programa apresentava contornos inéditos, bem como soluções arquitectónicas e decorativas que, decerto, procuravam aproveitar o facto de a cidade possuir alguns espaços onde, desde há muito, era habitual realizarem-se festas e cerimónias, o Rossio e o Terreiro do Paço, sobretudo, certas ruas especialmente importantes para a vida dos lisboetas, como a Rua Nova ou a zona em torno da Sé. O tecido urbano foi desse modo aproveitado para estas festas, resultando uma especialização dos espaços; exemplar é o caso do Terreiro do Paço, uma praça que andava cada vez mais associada às festas e cerimónias que eram promovidas pelo Palácio Real, sobretudo porque possuía a largueza suficiente para conferir uma indispensável dimensão dramática às demonstrações de riqueza e de poder que marcavam tais festas em honra da monarquia e da família real». In Ângela Barreto Xavier, Pedro Cardim, Fernando Bouza Álvarez, Festas que se fizeram pelo Casamento do rei Afonso VI, Quetzal Editores, Lisboa, 1996, ISBN 972-564-268-6.

Cortesia de Quetzal/JDACT