segunda-feira, 6 de abril de 2020

Os Arquivos Secretos do Vaticano. Sérgio P. Couto. «O acusado na maldita Inquisição era responsabilizado por uma crise de fé, pela qual poderia, ou não, ter relação com fenómenos naturais como pestes, terramotos, doenças e miséria social»

Cortesia de wikipedia e jdact

As heresias
«(…) O termo também é usado para definir qualquer tipo de deturpação de sistemas filosóficos instituídos, bem como alterações observadas em ideologias políticas ou até mesmo em movimentos artísticos. O fundador de uma heresia, mesmo que não a considere como tal, passa a ser conhecido como heresiarca. O historiador José D’Assunção Barros, que também é musicólogo, coloca o termo herege como alguém, investido de poder eclesiástico e institucional que classificou a sua prática ou as suas ideias como destoantes e contrárias a uma ortodoxia oficial que se autopostula como o caminho correcto. É claro que, para quem não conhece, a associação entre heresia e religião, principalmente com a católica, é quase imediata. A própria ortodoxia religiosa define a heresia como desvio da verdade universal, de modo que mesmo se todos os seres humanos acreditarem num erro, ele não passará, por isso, a ser verdade, segundo Barros. Mas como surgiu esse termo? Pelos registos históricos, foi com os cristãos, que o usavam para nomear ideias que vinham de encontro às suas crenças, que eram catalogadas como falsas doutrinas. Assim, terminou por ser adoptado tanto pela Igreja Católica quanto pelas denominações protestantes, já que ambas afirmam que heresia é uma doutrina contrária à verdade que teria sido revelada por Jesus Cristo, ou seja, seria uma má interpretação da Bíblia, dos profetas e até do próprio Cristo, sem falar de uma deturpação dos conceitos aplicados quando uma pessoa se torna sacerdote, o que representaria risco para o próprio magistério. Isso tudo calcado na própria Bíblia, que alerta em Gálatas 5:20 sobre os perigos da existência de idolatria, feitiçaria, inimizades, porfias, emulações, iras, pelejas, dissensões, heresias.

No livro O Nome da Rosa, de Umberto Eco, a personagem principal, o monge franciscano Guilherme, oi William, de Baskerville é um ex-inquisidor que, cansado de pactuar com as atrocidades da maldita Inquisição, deixa o cargo. A acção passa-se durante uma série de assassinatos que acontecem na abadia onde ocorrerá um debate sobre uma questão teológica ligada à filosofia da Igreja, um inquisidor real chamado Bernardo Gui (1261/62-1331 chega para analisar a série de assassinatos. O inquisidor descobre um despenseiro que se envolve com bruxaria para atrair uma jovem camponesa para que faça sexo em troca de comida. Interessado em impor o poder da maldita Inquisição sobre os componentes da abadia, Bernardo Gui acusa outras personagens menores e os condena a serem queimados na fogueira. Para corroborar o seu veredicto, ele pede para que Guilherme o confirme. E o monge franciscano sabe o que acontece com quem contesta a opinião de um inquisidor, ele próprio poderia ser acusado de compactuar com os supostos heréticos e, assim, se tornar um deles por associação.

As acusações
O acusado na maldita Inquisição era responsabilizado por uma crise de fé, pela qual poderia, ou não, ter relação com fenómenos naturais como pestes, terramotos, doenças e miséria social. Ele era então preso e entregue às autoridades estatais para ser punido. As penas variavam de confisco de bens à pena de morte na fogueira. O uso do fogo foi o modo de punição mais famoso, embora outros meios fossem utilizados. Essas punições tinham um significado religioso, já que o fogo era o símbolo da purificação e materialização da desobediência a Deus, ou seja, do pecado e ilustração da imagem do inferno. As punições com fogo também envolviam autores de livros polémicos. Em 1756, em Londres, por exemplo, há o registo do que teria sido levado à execução um Cavaleiro de Oliveira, na verdade o escritor português Francisco Xavier Oliveira (1702-1783): a publicação da obra Discours pathetéque ou suget des calamites, publicado naquela cidade. Há duas versões para essa execução: numa delas, o cavaleiro foi queimado com o livro suspenso ao pescoço como herege convicto. Na segunda, o livro foi colocado numa estátua do escritor e então queimada.
É importante lembrar, entretanto, que os tribunais da Inquisição (maldita) não eram permanentes, e sim entravam em funcionamento em casos de heresia comprovada e depois eram desactivados. Quando houve a Reforma Protestante, no século XVI, foram instituídos outros métodos judiciários de combate à heresia. Neles o delator que apontava um herege garantia a sua própria fé em público e sua condição perante a sociedade. Basta lembrar que a caça às bruxas teve origem em países protestantes e não foi liderada pela Inquisição (maldita)».  In Sérgio P. Couto, Os Arquivos Secretos do Vaticano, Da Inquisição à renúncia de Bento XVI, Editora Gutenberg, 2013, ISBN 978-856-538-385-1.

Cortesia de EGutenberg/JDACT