quinta-feira, 7 de abril de 2022

Umberto Eco. Idade Média. «Quem se via embaraçado era Santo Agostinho, que tinha de enfrentar os pelagianos, que negavam a transmissão do pecado original. Por isso, ele apoiava…»

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«(…) Sabia-se perfeitamente o que era o bem e recomendava-se o bem, mas, confiando na indulgência divina, aceitava-se que a vida fosse outra coisa. No fundo, a Idade Média virava do avesso o dito de Marcial: Lasciva est nobis vita, pagina proba. É uma civilização que da crueldade, da luxúria e da impiedade fazia um espetáculo público e ao mesmo tempo vivia segundo um ritual de devoção, crendo firmemente em Deus, nos seus prémios e nos seus castigos e almejando ideais morais candidamente infringidos. No plano teórico, a Idade Média combatia o dualismo maniqueu e, teoricamente, excluía o mal do plano da criação. Mas, como o praticava e, em qualquer caso, o experimentava no dia a dia, tinha de entrar em compromisso com a sua presença acidental. Por isso até os monstros e os caprichos da natureza eram tidos por belos, pois estavam inseridos na sinfonia da criação do mesmo modo que as pausas e os silêncios que, exaltando a beleza dos sons, faziam deles emergir, por contraste, os aspectos positivos. Deste modo, era a época, e não o indivíduo isolado, que dava a impressão de estar em paz consigo mesma. Mas agrada-nos terminar estas páginas com, pelo menos, uma das representações que a cultura medieval, na sua distância em relação a nós, tem sempre capacidade de repor fazendo-nos acreditar que tratava dos nossos problemas. O autor é Tomás de Aquino, santo e doutor da Igreja. Se lhe perguntassem se era permitido abortar, responderia que não, evidentemente. E do mesmo modo responderia que não se lhe perguntassem se o mundo era eterno: era a terrível heresia averroísta, e também a nós nos parece que um mundo eterno é uma hipótese de absoluto materialismo. O cristão sabe pela sua fé que o mundo foi criado por Deus, mas por outro lado Tomás de Aquino tinha elaborado cinco maneiras de demonstrar que a fé num Deus criador não repugnava à Razão, antes era por ela confirmada. No entanto, quer na sua Summa contra Gentiles quer no seu opúsculo De Æternitate Mundi, Tomás apercebe-se de que não há argumentos racionais válidos para demonstrar que o mundo não é eterno. Mas, como acredita pela fé que o mundo foi criado por Deus, argumenta com vertiginosa subtileza para provar que a eternidade do mundo (coeterno com Deus) não contradiz que seja um acto criador da vontade divina.

Perante o problema da origem da vida, Tomás comportava-se com a mesma adamantina honestidade (sem, provavelmente, se interrogar quanto à importância do tema nas polémicas sobre o aborto). A discussão era antiquíssima e surgira com Orígenes, que afirmava que Deus criara as almas humanas logo nas origens. Esta opinião fora imediatamente contestada, e até à luz da expressão do Génesis segundo a qual o Senhor formou o homem com a poeira do chão, instilou-lhe no nariz um hálito de vida e o homem tornou-se uma alma viva. Portanto, segundo a Bíblia, Deus cria primeiro o corpo e insufla-lhe depois a alma. Mas esta posição suscitava problemas com a transmissão do pecado original. Tertuliano defendia que a alma do pai se transmite de pai para filho pelo sémen. Posição logo julgada herética, porque presumia uma origem material da alma.

Quem se via embaraçado era Santo Agostinho, que tinha de enfrentar os pelagianos, que negavam a transmissão do pecado original. Por isso, ele apoiava, por um lado, a doutrina criacionista (contra o traducianismo corporal) e, por outro, admitia uma espécie de traducianismo espiritual. Mas todos os comentadores acham bastante contorcida a sua posição. Tomás de Aquino será decididamente criacionista e resolverá a questão da culpa original de um modo muito elegante. O pecado original é transmitido pelo sémen como uma infecção natural. (Summa Theologica), mas isso nada tem que ver com a transmissão da alma racional. A alma é criada porque não pode depender da matéria corporal. Recordemos que, segundo a tradição aristotélica, Tomás entende que os vegetais têm alma vegetativa, que nos animais é absorvida pela alma sensitiva, enquanto nos seres humanos estas duas funções são absorvidas pela alma racional, que torna o homem dotado de inteligência e, portanto, de alma no sentido cristão do termo. Tomás tem uma visão muito biológica da formação do feto: Deus só introduz a alma no feto quando este adquire, gradualmente, primeiro, a alma vegetativa e, depois, a alma sensitiva. Só nessa altura, num corpo já formado, é criada a alma racional (Summa Theologica). A Summa contra Gentiles) diz que há uma gradação na geração por causa das formas intermédias de que o feto é dotado, desde o início até à forma final». In Umberto Eco, Idade Média, Bárbaros, Cristãos, Muçulmanos, Publicações dom Quixote, 2010-2011, ISBN 978-972-204-479-0.

Cortesia de PdQuixote/JDACT

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