sábado, 23 de março de 2019

A Verdadeira História. Margaret George. «Estupefacta, descobriu que os braços estavam cheios de arranhões, arranhões que constituíam uma espécie de desenho e doíam ao serem tocados»

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A Mulher que Amou Jesus
«(…) Ou será que o que conta é o que ele não disse, ou o que os outros não dizem sobre ele? Então, você mesma conversa com ele!, mandou Natã. É isso! Da próxima vez que ele estiver no armazém, você vai lá e fala com ele! E, no meio tempo, o que devo dizer-lhe? Diga..., diga-lhe que eu gostaria de saber sobre ele tanto quanto sei sobre o jumento da família... Não vou fazer isso! Você terá de se decidir!, disse o pai. Basta destas tolices. Você terá de decidir hoje. Não irá falar com ele. Se você falar com ele, vai assustá-lo! Pronto, agora ele tinha dito o que pensava. Estavam loucos para que ela casasse e ficaram delirantes de felicidade quando o homem de Naim pedira sua mão, pensou Maria. Tornara-se um estorvo, solteira, aos 16 anos. Essa poderia ser a sua última chance. Eu... Eu vou ter... Tenho de pensar sobre isso pelo menos até amanhã, disse. Façam-me esse favor. Afinal de contas, esperamos até mais quando compramos o... Basta de falar no jumento!, explodiu Natã.
A noite mal começara e o sono parecia chegar, sono que lhe faltara por tantas noites. Ao entardecer sucedeu-se logo a escuridão, com aquele cheiro peculiar do azeite queimando na lamparina, assinalando o cair da noite sobre a casa. Finalmente, chegara a hora de se deitar. Maria deitou-se na cama estreita do quarto frio, surpreendentemente frio, apesar do Inverno ainda não ter chegado. Puxou mais cobertas até à cabeça e fechou os olhos. Queria fugir do mundo real. Porém, o sono parecia agora deixá-la, por perversidade. Tinha plena consciência de cada uma das sombras no seu quarto, de cada som e da luz da lua brilhando num dos cantos, como o olho de um deus implacável, penetrante. O que se está passando comigo?, perguntou a si mesma numa vozinha submissa. Parece que não consigo mais pensar, nem pareço eu mesma. Quase via a sua respiração no quarto. Lentamente, expirou e, sim!, dava para ver uma nuvenzinha contra o luar. Era impossível. Estava mais quente lá fora. Não era possível que estivesse frio dentro de casa.
E a opressão na sua mente, como se alguém a estivesse empurrando para baixo, fazendo pressão sobre ela. E aquele homem..., Joel... Tente pensar em Joel, ordenou a si própria. Ele quer casar, levá-la para a casa dele. Imagine o seu rosto. Tentou pensar nele, invocar o seu rosto, mas não conseguia. Parecia ter sumido da sua memória. De repente, pensou ouvir um rangido dentro do quarto. Sentando-se, inteiramente acordada, esforçou-se para ver do que se tratava. A escuridão era total e ela não conseguia penetrá-la. Então, lentamente, algo pareceu tomar forma na escuridão, um pequeno baú. Que se mexia, fazendo um rangido ao se deslocar pelo chão de pedra. Olhou-o, com medo, enquanto o baú se deslocava para onde batia a luz do luar. Ou seria o luar que o movera? Queria orar, mas vinham aos seus lábios palavras sem sentido, confusas, que desconhecia. O que haveria no baú?, perguntou a si própria. Mas estava tão apavorada que não iria sair da sua cama para ver. Em vez disso, ficou olhando, ansiosa, para o baú.
Embora fosse forçada a ficar numa posição completamente rígida, na cama, acabou adormecendo, o que era estranho. Teve sonhos curiosos e detalhados: sonhou com cavernas negras, que ficavam na colina por trás da cidade, que se estendiam, profundas, e pareciam não ter fim. Pareciam a própria noite. Mas quando se anunciava a aurora e ela já ouvia os barulhos de passos, do lado de fora, e de pescadores remando seus barcos para começar o seu trabalho, ela saiu do seu sonho caverna e voltou para o seu quarto. Imediatamente, olhou para o chão para ver onde estava o baú. Sabia que tudo isso era só um sonho, um baú que se movia. Mas ele estava lá... Não exacztamente onde estava antes, mas também não estava no centro do quarto. Talvez sua mãe o tivesse trazido para lá e ela não tivesse reparado, ou então poderia tê-lo visto rapidamente, e depois sonhado com ele. Ou teria o baú tornado a mover-se depois que ela adormecera? Sem uma palavra, levantou-se. O quarto ainda estava muito frio. Pegou num xale, colocou-o em volta dos ombros e esfregou os braços, para aquecê-los. Estupefacta, descobriu que os braços estavam cheios de arranhões, arranhões que constituíam uma espécie de desenho e doíam ao serem tocados.
Quase deu um grito, mas conseguiu abafá-lo. Estendeu os braços e olhou para as marcas. Pareciam arranhões feitos com espinhos. Tentou relembrar tudo o que fizera no dia anterior. Seria possível que tivesse chegado perto de cardos? Ou teria ficado sonâmbula? Já tinha havido na cidade o caso de um menino que caminhava dormindo; saía andando, em plena noite, e na manhã seguinte não se lembrava de nada. Seus pais tiveram que amarrá-lo à cama para evitar que saísse para a rua. Ficava apavorada só de pensar que poderia ter saído de casa, desprevenida e exposta aos perigos. Abaixou-se junto ao baú e passou as mãos sobre a tampa, uma superfície lisa, construída pelo carpinteiro local, decorada com algumas tachas. Tocou-o com as pontas dos dedos. Não tinha rodas nem qualquer outra coisa que permitisse movê-lo com facilidade. Pelo contrário; os pinos fortes da base estavam solidamente grudados ao chão, tornando difícil deslocá-lo. Mas, e aí, a respiração pareceu parar, aqueles pinos fariam um ruído de rangido, se o baú fosse arrastado pelo soalho! E, na verdade, pequenos traços no chão, atrás do lugar onde o baú se encontrava, provavam que ele havia sido deslocado». In Margaret George, A Paixão de Maria Madalena, 2002, Saída de Emergência, Edições Fio de Navalha, 2005, ISBN 972-883-911-1.
                                       
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