quarta-feira, 14 de setembro de 2016

A Biblioteca Desaparecida. Luciano Canfora. «… mulheres tão numerosas e belas que não resta margem de dúvidas quanto ao recreativo emprego do tempo desse marido distante, que há dez meses não envia notícias»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Teu marido está no Egipto. A velha alcoviteira atormentava, por encargo de um apaixonado, o sossego de uma jovem, bela e temporariamente única senhora de Cós, e não encontrava melhor arma do que acenar-lhe a imagem do país mais tentacular do mundo: Egipto!, espicaçava ela, não há no mundo coisa que não esteja entre os tesouros daquele país: ginásios, espectáculos, filósofos, dinheiro, rapazes, o recinto sagrado dos deuses irmãos, o rei, homem muito generoso, e mais o Museu, vinho, e toda a abundância que se pode desejar, e mulheres, mais numerosas do que as estrelas que estão no céu, e belas, belas como as deusas que foram a Paris para o famoso julgamento. Antes de citar o último e decisivo factor, aquele que deveria vencer as resistências e induzir a mulher a se entregar, ela também, a uma distracção, a vulgar alcoviteira parece perder-se numa enumeração quase desvairada, apenas aqui e ali pontilhada de elementos alarmantes: assim, dos ginásios passa para os filósofos e, logo a seguir, consequência quase natural após ter nomeado esses ambíguos frequentadores de adolescentes, menciona os rapazes; mas depois passa, divagando, para o templo de Ptolomeu e Arsinoé, para o rei Ptolomeu, até o Museu, para assestar, por fim, o golpe que crê definitivo: o vinho e as mulheres; mulheres tão numerosas e belas que não resta margem de dúvidas quanto ao recreativo emprego do tempo desse marido distante, que há dez meses não envia notícias. Nas festas de Adónis, em Alexandria, abria-se ao público o palácio real e uma torrente humana era admitida em alguns parques do imenso bairro. E os cantos que as mulheres, naquela ocasião, entoavam em honra a Adónis, com as cabeleiras soltas, as vestes desalinhadas e os seios descobertos, levá-lo-emos às ondas que espumam na praia, se conhecidos pela senhora de Cós, talvez a tivessem preocupado ainda mais. Aquela festa era uma das raras ocasiões em que se abria o palácio. A cidade tem a forma de uma clâmide, dizem os antigos viajantes a respeito de Alexandria. Nesse rectângulo quase perfeito, entre o mar e o lago Mareótis, o bairro do palácio ocupa um quarto, talvez até um terço, do total. É um palácio que veio se ampliando com o tempo: já Alexandre o quisera grandioso, e, a seguir, cada soberano lhe acrescentou um novo edifício ou um novo monumento. Todo o bairro de Brúquion foi progressivamente ocupado pelo palácio em expansão. O palácio se projectava sobre o mar, protegido por um dique. Era uma autêntica fortaleza, concebida também como defesa extrema em casos de excepcional perigo. Foi o que se viu na guerra de Alexandria, quando César, com poucos homens, por vários dias, conseguiu resistir ao assédio das armadas egípcias, entrincheirado no palácio. O modelo persa do palácio inacessível (excepto, por privilégio hereditário, aos descendentes das sete famílias que haviam vencido a conjura dos magos) passara, através de Alexandre, para a realeza helénica. No Egipto, na corte ptolomaica, a ele se somava o remoto modelo faraónico. O que quer que houvesse nos palácios do bairro real devia ser vagamente conhecido no exterior. Por exemplo, sabia-se que lá também devia estar o Museu, arrolado pela alcoviteira de Cós entre as maravilhas de Alexandria, talvez ignorando o que seria ele. Lá ainda se encontravam preciosas colecções de livros de propriedade do rei, os livros régios, como os chamava Aristeu, um escritor judeu com uma certa familiaridade com o palácio e a biblioteca». In Luciano Canfora, A Biblioteca Desaparecida, 1986, Companhia das Letras, 1989, ISBN 978-857-164-051-1.

Cortesia da CdasLetras/JDACT