segunda-feira, 5 de setembro de 2016

Em Teu Ventre. José Luís Peixoto. «Tão fresca é esta brisa depois de um dia inteiro, tão leve é o seu toque nas cores por fim brandas, desnecessária a urgência por fim. Esta brisa atravessa o ar limpo»

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«Não são as palavras que distorcem o mundo, é o medo e a vontade. As palavras são corpos transparentes, à espera de uma cor. O medo é a lembrança de uma dor do passado. A vontade é a crença num sonho do futuro. Não são as palavras que distorcem o mundo, é a maneira como entendemos o tempo, somos nós».

«Tudo começa pela esperança. Antes dos objectos estão os gestos que lhes dão forma, antes dos gestos estão as ideias, a antes das ideias estão as emoções, antes das emoções estão os sentidos, antes dos sentidos está a existência nua, contemplação cega, memória cega, antes da existência está a esperança. Sou eu quem o diz. Se há proposta de vida, essa certeza contém esperança. Sem esperança, há apenas morte: no presente e no futuro. Quando criei a natureza, a primeira regra que determinei foi: negar esperança é uma acção contra a natureza. Todos os seres, principalmente os que possuem pele, têm o direito inequívoco a alguma esperança. O uso que lhe dão é a sua individualidade. Falo de quando criei a natureza, como se esse trabalho estivesse acabado. As palavras são imperfeitas quando tentam dizer aquilo que é maior do que elas. São imperfeitas também quando tentam dizer aquilo que parece ínfimo, dependendo da proporção. Nesse caso, as palavras são dedos que tentam apanhar uma migalha, fazem a forma de beliscá-la, mas deixam-na lá, como se fossem inúteis.
Deus continua a falar, mas não faz questão de que o escutemos, prefere que reparemos numa casa de paredes mal pintadas. E, mesmo através da neblina, talvez a madrugada esteja a ponto de nascer, consegue distinguir-se a cal a escamar. São as noites, Invernos e Verões, que arrancam aquelas lascas de cal; é o pó da rua que se levanta com aragens, carroças, desinquietação de crianças, e se cola às paredes conforme se cola ao interior dos pulmões. Não se vê ninguém, as pessoas e os animais foram subtraídos a esta imagem. A fachada da casa tem uma barra pintada, nivela o chão, tem duas janelas bambas e, ao centro, uma porta de madeira velha, com um postigo à altura do rosto dos donos; é uma porta cansada, a desfazer-se por baixo. É preciso subir quatro degraus de pedra para chegar a essa porta que nunca está fechada ao trinco. A casa tem um telhado, sozinho contra o tempo, tem uma chaminé quase torta e mais nada. No entanto, é uma casa que os olhos podem ver de muitos modos. À frente, sem pertencer à casa, mas pertencendo, há uma eira, limpa e lisa, pronta a malhar, disposta a todos os usos. Por detrás, está um quintal extremado por um muro de pedras empilhadas, sebe que não passa a altura do joelho, linha que não exclui, tudo é terra que os vizinhos aproveitam com adequação. Lá ao fundo, depois de uma ribanceira que desce, está o poço, tapado por uma superfície de lajes, remendos sobre terra ferida. As oliveiras inclinam-se para o poço como corcundas, como a desgraça, os anos castigaram-nas e até os ramos novos, coitados, nasceram com os nós torcidos por artroses, vítimas. Ainda assim, são árvores, pertencem à natureza, recebem notícias das outras oliveiras que se estendem na lonjura daqueles campos, onde também há muitas ervas secas, cardos e calhaus.
A criação da natureza é um trabalho de todos os instantes. Só a perfeição está concluída e, mesmo essa, tem de aceitar a imperfeição inacabada quando lida com aquilo que é incompleto, com palavras ou sombras, com natureza, instinto, gente, a com a emanação invisível de um passado mais remoto do que o próprio começo de tudo: a esperança. Tudo começa pela esperança. Fui eu que escolhi esta palavra: tudo. Sou eu que estou a dizê-la. Tudo termina pela esperança. 
Tão fresca é esta brisa depois de um dia inteiro, tão leve é o seu toque nas cores por fim brandas, desnecessária a urgência por fim. Esta brisa atravessa o ar limpo, faz tremer as folhas prateadas das oliveiras, acende pontos de brilho no granito e passa pelas faces suaves de Lúcia. Está agachada perante uma sombra de terra limpa, quase arrumada ao muro breve do quintal. Há galinhas que se habituaram à presença da menina, aos seus movimentos repetidos. Lúcia joga com pedras. Esses gestos súbitos não perturbam as galinhas, que debicam torrões de terra e se queixam umas às outras com vogais que arredondam na garganta». In José Luís Peixoto, Em Teu Ventre, Quetzal Editores, Lisboa, 2015, ISBN 978-989-722-257-3.

Cortesia de QuetzalE/JDACT