sexta-feira, 30 de setembro de 2016

Até que o Amor me Mate. Maria Lopo de Carvalho. «E assim me afeiçoei ao lugar gelado que encontrei dentro do coração. Não só eu, todas nós. Qual das minhas amigas ou das minhas damas de companhia pode dar-se ao luxo de guardar para si doces e quentes sentimentos?»

jdact

As Mulheres de Camões
Violante de Andrade. 1543
«(…) João III é de uma índole rara: mais quer assistir aos autos-de-fé
na varanda do Paço da Ribeira do que dançar num baile da corte; mais quer rezar do que receber os embaixadores; mais quer aos livros de deve e haver do que a obra de poeta ou cronista. Mas o que mais lhe apraz é inspeccionar com minúcia a quantidade de pimenta que entra e sai dos armazéns: cheira a mercadoria, confere as balanças e acode na compre e venda de escravos malabares e cafres com a mesma dedicação com que faz filhos à rainha. Tudo nele é um compra-e-vende. Reconheço-lhe algum engenho e aguda memória, mas sei que alcançou pouco nas letras e nunca aprendeu bem o latim. Talvez por isso se tenha empenhado tanto no ensino das artes. Nisso sim, admiro-o. Bastas vezes tenho sabido de mancebos que manda estudar para o estrangeiro, financiando-lhes o sustento. A verdade é que ousou transferir a universidade de Lisboa para Coimbra e que não se poupa a esforços para contratar lentes da Universidade de Paris. Porém, não posso deixar de me compadecer e de temer pelo futuro do reino. Dos nove filhos que lhe nasceram, só dois vingaram: o infante João Manuel, muito chegado ao meu Antoninho, e a infanta Maria Manuela, que a Espanha foi casar-se. Bofé! Agastou-me sobremaneira o sigilo à volta desse malfadado casamento da infanta com Filipe de Áustria, o filho de Carlos V que irá, por certo, ser o próximo rei. O sigilo foi tamanho, que nem ao senhor meu marido, no alto posto que representa, disseram água-vai. Uma afronta.
Não me falta ouro, nem jóias, nem pedras preciosas; não me faltam honrarias e deferências, não me faltam pajens, nem criados, nem escudeiros, mas falta-me por vezes paciência para cumprir os preceitos da minha condição. Habituaram-me a aceitá-los sem contestar e eu habituei-me a cumpri-los, a espartilhar o coração, sem me emocionar, sem pestanejar, sem me acalorar. E assim me afeiçoei ao lugar gelado que encontrei dentro do coração. Não só eu, todas nós. Qual das minhas amigas ou das minhas damas de companhia pode dar-se ao luxo de guardar para si doces e quentes sentimentos? Aquela que é espancada pelo seu marido e senhor? A que se ajunta com o copeiro quando o marido se ausenta? A que tem filhos bastardos e os dá à rocia sem sequer se confessar? A que oculta a entrada do amante no convento? Se entregam o coração denunciam-se. Tenho o casamento que meus pais ditaram e o que deve ser, com regalias, distinções e deveres para que as nossas casas, fortunas e filhos se guardem e medrem e hajam como Deus manda e a nobreza obriga: um casamento de linhagem e preceito que a tudo renuncia e que tudo denuncia. Não posso, pois, enjeitar o dever de denunciar quem vejo pecar, e faço-o de bom grado e com gosto perante o Tribunal da Santa Inquisição (maldito) ou logo ao irmão de el-rei, o cardeal-infante Henrique, inquisidor-gera1. Livro-me assim de suspeitas. Quereis ser santa? Juntai-vos a eles e pecai em silêncio. Neste reino, nesta corte e nesta casa mais vale parecer do que ser, pois que o que parece há-de ter a força do que é. Quero pois que as bruxas ardam todas na fogueira, bem como os que se negam a comer carne de porco e os que blasfemam contra Deus Pai Todo-Poderoso e renegam o Senhor Santo Cristo. Quero vê-los a todos a arder no fogo dos infernos, tal como os vi e extasiei no Terreiro do Paço, no primeiro auto-de-fé deste reino, no ano da graça de 1540». ???» In Maria João Lopo de Carvalho, Oficina do Livro, LeYa, 2016, ISBN -978-989-741-488-6.

Cortesia de Odo Livro/JDACT