sexta-feira, 16 de setembro de 2016

Veneza. Jan Morris. «Ao longo do recife oriental, perdem‑se fiadas de aldeias piscatórias, vazias e desmazeladas. Os baixios estão juncados de confusas paliçadas de ramos e cestaria que se vão arrastando»

jdact e wikipedia

«É quase escandaloso, a haver ainda escândalo editorial, ser esta a primeira vez que o leitor tem a oportunidade de encontrar o nome de Jan Morris nas estantes das livrarias portuguesas. O atraso é considerável, mas não chega a ser surpreendente. A atenção ao mundo, a que chamamos cosmopolitismo, há muito deixou de ser uma qualidade nacional, por maiores que sejam as doses de orgulho pátrio destiladas na incessante ladainha de uma já remota grandeza quinhentista. Jan Morris é hoje o nome mais importante de entre os autores vivos de literatura de viagens. Dito de outro modo, nas palavras de Paul Theroux, outro dos grandes escritores viajantes do nosso tempo, Jan Morris é uma das maiores escritoras descritivas da língua inglesa. De hoje e de sempre, depreendese. Por isso ele lhe chama também um génio da viagem a travelling genius. O livro que tem nas mãos, é já um clássico. Publicado originalmente há meio século, é muitas vezes referido como o livro sobre Veneza. Nele, Jan Morris entrelaça o H grande da História com um apuradíssimo sentido de observação para o h pequeno das histórias do quotidiano. É assim, para dar apenas um exemplo comezinho, que ficamos a saber porque há tantos gatos e porque deixou de haver cavalos em Veneza. O mais provável é que mesmo aqueles que já visitaram a cidade várias vezes não se tenham dado conta de particularidades como estas. Jan Morris observa-as, investiga-as e revela-as com uma minúcia digna de Canalleto e por vezes com um sentido de humor desconcertante, como quando decide inquirir, a partir da lista telefónica, quantos habitantes ainda existem na cidade com o apelido de cada um dos doges que durante séculos a governaram.
A acrescentar à notável obra literária que construiu nos mais de 30 títulos publicados, Jan Morris é uma figura extraordinária também por razões biográficas. Seria impossível falar deste livro sem o referir. A edição original de Veneza, em 1960, trazia na capa o nome de James Morris. Foi, aliás, ainda como oficial do Exército britânico que Morris viveu em Veneza pela primeira vez, no final da Segunda Guerra Mundial. Veneza estava semideserta, semimorta talvez, explicará 30 anos depois, em Conundrum, a autobiografia onde conta, com uma secura e elegância exemplares, o processo pelo qual decide mudar de sexo depois de se ter descoberto, ainda na infância, uma mulher aprisionada num corpo de homem. De todos quantos escreveram livros em inglês sobre Veneza, penso que ninguém terá tido uma introdução à cidade como a minha. No final dos anos 50, Morris viveu durante um ano em Veneza, onde diz nunca ter deixado de se sentir estrangeira, apesar de acrescentar paradoxalmente que desde muito cedo senti a cidade como minha. É dessa experiência que nasce este livro. Morris era já um nome reconhecido quando o publicou, sobretudo depois de ter acompanhado, para o jornal The Times, a primeira expedição britânica ao cume do Evereste, liderada por John Hunt. Seria, escreveu algumas décadas mais tarde, em A Writers World, a última grande façanha do Império britânico. A reportagem de Morris, um scoop, foi publicada em Londres a 2 de Junho de 1953, precisamente no dia em que Isabel II foi coroada. Daí em diante, Morris dedicar-se-á à escrita a tempo inteiro. Interessam-lhe em particular as cidades: Sidney, Oxford, Manhattan, Hong Kong ou Casablanca, onde, no início dos anos 70, faz a operação que transforma James em Jan. É nessa permanente inquietação da viagem que Jan Morris, percorrendo o mundo para o interpretar, tenta revelar o enigma dos lugares que visita tal como se propõe desvendar o seu próprio enigma conundrum interior. Por vezes, rio abaixo, quase penso que o consigo; mas então a luz muda, o vento vira, uma nuvem atravessa-se à frente do sol e o significado de tudo isto volta uma vez mais a escapar-me» In Prefácio de Carlos Vaz Marques

A 45º 14’N, 12º 18’E, o navegador que vá subindo ao longo da costa adriática de Itália encontra uma abertura na extensa linha baixa da praia: e virando para oeste, com a ajuda da maré, entra numa laguna. De súbito, desaparece o vigor tempestuoso do mar. A água em volta é baixa mas opaca, a atmosfera curiosamente translúcida, as cores são pálidas, e sobre toda a extensão da bacia de lama e água pesa uma sugestão de melancolia. É como que uma laguna albina. A laguna está rodeada de reflexos ilusórios, como miragens no deserto, árvores ondeantes e cerros indistintos, navios sem casco, pântanos imaginários: e por entre estas alucinações, a água estendese numa espécie de transe. Ao longo do recife oriental, perdemse fiadas de aldeias piscatórias, vazias e desmazeladas. Os baixios estão juncados de confusas paliçadas de ramos e cestaria que se vão arrastando, e lá no meio estão homens solitários, enfiados até aos joelhos em lodo e água, procurando bivalves na lama. Um barco a motor passa a zoar, deixando um fedor a peixe ou a gasóleo. Na margem, uma mulher grita para um amigo, e a voz perdese estranhamente em remoinhos, abafada e distorcida por sobre a planura». In Jan Morris, Veneza, 1993, Edições Tinta da China, Lisboa, 2009, ISBN 978-989-671-000-2.

Cortesia da ETdaChina/JDACT