quarta-feira, 28 de outubro de 2020

O rei que esmorece e a rainha sanhuda: a crise dinástica de 1383-1385 através das emoções nas crónicas de Fernão Lopes. Inês Olaia. «O problema da ira régia exige, no entanto, um aprofundamento um pouco diferente»

Cortesia de wikipedia e jdact

Problemas e Conceitos

«(…) É igualmente no espaço emocional que se jogam as relações entre o vício e a virtude, e o modelo do rei deve ser exemplar nesse âmbito, em simultâneo um homem comum e extraordinário. O ponto essencial é sempre o do equilíbrio. Se a emoção do príncipe for orientada para a virtude, então a decisão consequente será positiva. Caso contrário, o resultado pode ser catastrófico. As emoções são a expressão tangível da persuasão e da acção política, interfaces entre a acção verbal, a acção corporal e a passagem ao acto. Veículo de comunicação, entre pessoas de poder, elas marcam as descontinuidades e os eventos políticos; a emoção principesca revela a iminência de um determinado acto.

A nossa análise revelará que, entre os mecanismos que justificam a transição para uma nova dinastia, nas crónicas de Fernão Lopes, contam-se as emoções como a sanha e o medo. O problema da ira régia exige, no entanto, um aprofundamento um pouco diferente. Foi alvo de um número mais amplo de estudos e a sua evolução deu origem inclusive a visões que parecem colidir. O monarca pode expressar a sua mercê e a sua graça através de uma multiplicidade de meios; a ira encontra os mesmos canais ou similares e faz parte da prática de governo (enquanto rulership, definido por Gerd Althoff nos termos de mecanismo pessoal de regulação, baseado num conjunto de leis não escritas). A ira também faz, no entanto, parte dos catálogos de pecados medievais, sendo mesmo um pecado mortal. A sua expressão está intrinsecamente ligada ao exercício do poder, porquanto este precisa do terror, do medo, para ser efectivo. Os usos da ira régia mostram, ainda para Althoff, como o ideal cristão de governante coincide ou não com a prática de governo. A paciência, a moderação e a capacidade de perdoar são definidas nos finais da Idade Média como características da própria natureza régia. A ira fornecerá, por fim, um meio de caracterizar monarcas injustos, funcionando como demonstrador da sua incapacidade para governar. Pode ainda ser diametralmente oposta à justiça, o que agrava a caracterização do monarca em causa. Com o correr dos séculos, a ira ganha uma outra conotação, cada vez mais frequente: a ira justa, ou seja, aplicar a ira para alcançar a justiça. A aplicação é possível porque a própria justiça se sobrepõe, em determinados contextos, à clemência. A mudança de paradigma consagra que, no final da Idade Média, a ira régia seja um tópico cada vez mais complexo, porque depende essencialmente do contexto em que é aplicada.

Por sua vez, para Stephen D. White, a ira, nas crónicas, tanto pode ser expressa verbalmente como indicada ou explicitamente mostrada através de acções físicas. É igualmente expressa de forma clara, pública e ritual, codificada para ser compreendida por todos os que a ela assistem. Não se trata, quando lidamos com estas emoções, de uma emoção expressa na intimidade ou vivida com o indivíduo, essa concepção seria um anacronismo. A expressão pública da ira é, normalmente, masculina e feita por aqueles que têm estatuto para tal: reis, nobres… Faz, da mesma forma, parte da acção política e tanto pode ser sua percursora quanto sua consequência; funciona como reconhecimento legal de determinada acção como reprovável ou injuriosa e aponta os seus autores. Da mesma maneira, a forma como a ira é atenuada tem uma conotação similar». In Inês Olaia, O rei que esmorece e a rainha sanhuda: a crise dinástica de 1383-1385 através das emoções nas crónicas de Fernão Lopes, Revista Medievalista nº  27, http://www2.fcsh.unl.pt/iem/medievalista/MEDIEVALISTA27/olaia2701.htmlJaneiro-Junho 2020, ISSN 1646-740X.

Cortesia de RMedievalista/JDACT

Inês Olaia, História, Caso de Estudo, Cultura e Conhecimento, Literatura,