quinta-feira, 25 de abril de 2013

Memorial do Convento. José Saramago. «Pregou frei João dos Mártires, provincial dos arrábidos, e certamente ninguém o estaria merecendo mais, se nos lembrarmos de que arrábido foi o frade cuja virtude Deus coroou engravidando a rainha, assim aproveite a prédica à salvação das almas como aproveitarão a dinastia e a ordem franciscana…»

jdact

«E sendo o calor tanto, vão-se refrescando os assistentes, com a conhecida limonada, o geral púcaro de água, a talhada de melancia, que não seria por irem morrer aqueles que se consumiriam estes. E se o estômago pede recheio mais substancial, não faltam aí os tremoços e os pinhões, as queijadas e as tâmaras. El-rei, com os infantes seus manos e suas manas infantas, jantará na Inquisição (maldita) depois de terminado o acto de fé, e estando já aliviado do seu incómodo honrará a mesa do inquisidor-mor, soberbíssima de tigelas de caldo de galinha, de perdigões, de peitos de vitela, de pastelões, de pastéis de carneiro com açúcar e canela, de cozido à castelhana com tudo quanto lhe compete, e açafroado, de manjar-branco, e enfim doces fritos e frutas do tempo. Mas é, tão sóbrio el-rei que não bebe vinho, e porque a melhor lição é sempre o bom exemplo, todos o tomam, o exemplo, o vinho não.
Outro exemplo, mais do proveito da alma, se o corpo tão repleto está, será dado hoje aqui. Começou a sair a procissão, vêm os dominicanos à frente, trazendo a bandeira de S. Domingos, e os inquisidores depois, todos em comprida fila, até aparecerem os sentenciados, foi já dito que cento e quatro, trazem círios na mão, ao lado os acompanhantes, e tudo são rezas e murmúrios, por diferenças de gorro e sambenito se conhece quem vai morrer e quem não, embora um outro sinal haja que não mente, que é ir o alçado crucifixo de costas voltadas para as mulheres que acabarão na fogueira, pelo contrário mostrando a sofredora e benigna face àqueles que desta escaparão com vida, maneiras simbólicas de se entenderem todos quanto àquilo que os espera, se não reparassem no que trazem vestido, e isso sim, é tradução visual da sentença, o sambenito amarelo com a cruz de Santo André a vermelho para os que não mereceram a morte, o outro com as chamas viradas para baixo, dito fogo revolto, se confessando as culpas a evitaram, e a samarra cinzenta, lúgubre cor, com o retrato do condenado cercado de diabos e labaredas, o que, passado a linguagem, significa que aquelas duas mulheres vão arder não tarda. Pregou frei João dos Mártires, provincial dos arrábidos, e certamente ninguém o estaria merecendo mais, se nos lembrarmos de que arrábido foi o frade cuja virtude Deus coroou engravidando a rainha, assim aproveite a prédica à salvação das almas como aproveitarão a dinastia e a ordem franciscana em sucessão assegurada e prometido convento.
Grita o povinho furiosos impropérios aos condenados, guincham as mulheres debruçadas dos peitoris, alanzoam os frades, a procissão é uma serpente enorme que não cabe direita no Rossio e por isso se vai curvando e recurvando como se determinasse chegar a toda a parte ou oferecer o espectáculo edificante a toda a cidade, aquele que ali vai é Simeão de Oliveira Sousa, sem mester nem benefício, mas que do Santo Ofício (maldito) declarava ser qualificador, e sendo secular dizia missa, confessava e pregava, e ao mesmo tempo que isto fazia proclamava ser herege e judeu, raro se viu confusão assim, e para ser ela maior tanto se chamava padre Teodoro Pereira de Sousa como frei Manuel da Conceição, ou frei Manuel da Graça, ou ainda Belchior Carneiro, ou Manuel Lencastre, quem sabe que outros nomes teria e todos verdadeiros, porque deveria ser um direito do homem escolher o seu próprio nome e mudá-lo cem vezes ao dia, um nome não é nada, e aquele é Domingos Afonso Lagareiro, natural e morador que foi em Portel, que fingia visões para ser tido por santo, e fazia curas usando de bênçãos, palavras e cruzes, e outras semelhantes superstições, imagine-se, como se tivesse sido ele o primeiro, e aquele é o padre António Teixeira Sousa, da ilha de S. Jorge, por culpas de solicitar mulheres, maneira canónica de dizer que as apalpava e fornicava, decerto começando na palavra do confessionário e terminando no acto recato da sacristia, enquanto não vai corporalmente acabar em Angola, para onde irá degredado por toda a vida, e esta sou eu, Sebastiana Maria de Jesus, um quarto de cristã-nova, que tenho visões e revelações, mas disseram-me no tribunal que era fingimento, que ouço vozes do céu, mas explicaram-me que era efeito demoníaco, que sei que posso ser santa como os santos o são, ou ainda melhor, pois não alcanço diferença entre mim e eles, mas repreenderam-me de que isso é presunção insuportável e orgulho monstruoso, desafio a Deus, aqui vou blasfema, herética, temerária, amordaçada para que não me ouçam as temeridades, as heresias e as blasfémias, condenada a ser açoitada em público e a oito anos de degredo no reino de Angola». In José Saramago, Memorial do Convento, Editorial Caminho, O Campo da Palavra, 27ª Edição, 1998, ISBN 972-21-0026-2.

Cortesia de Caminho/JDACT