Enquanto Salazar Dormia. Domingos Amaral. «… às vezes dá a outra metade, prometida. Então, nos dias seguintes, os criados de mesa dos hotéis telefonam…»
Mary
«(…) Vindo de Madrid, nos próximos dias chegaria a Lisboa um homem, de seu
nome Nubar Gulbenkian, filho de um milionário arménio. Ficaria instalado no
Aviz, o melhor hotel da cidade. O homem traria informações sobre dois pilotos
ingleses da RAF, que estavam a atravessar clandestinamente a Espanha. Mary
teria de os fazer entrar em Portugal, sem a PVDE notar, e de os fazer seguir
para Londres. Não posso ser eu a falar com o Nubar, explicou Mary. Isso seria
desmascará-lo. É um importante apoio nosso, mas tem de permanecer secreto. Se
os nazis o descobrem é um desastre. Porquê? Mary olhou para mim, como se a
calcular o quanto podia contar. O Nubar é um excêntrico. Passeia-se em Lisboa a
pé, com uma bengala, seguido uns metros atrás pelo seu Rolls Royce, que guarda
na garagem do Aviz. A sua excentricidade é um bom disfarce. Deu uma curta
gargalhada, e acendeu outro cigarro: sabes o que contam dele? Sempre que se senta
à mesa dos restaurantes dos hotéis, em Lisboa ou no Estoril, rasga uma nota ao
meio e dá metade ao criado que o está a servir, prometendo-lhe a outra metade
para o final da refeição, se considerar que foi bem servido.
Como é imprevisível, às vezes dá a outra metade, outras esquece-se, ou não
dá a metade prometida. Então, nos dias seguintes, os criados de mesa dos hotéis
telefonam uns para os outros, à procura da metade da nota que lhes falta, a ver
se algum dos outros a tem! Rimo-nos. Naquela época, Lisboa era também um porto
de abrigo de muitos milionários europeus, fugidos à guerra, e a cidade
fascinava-se com as características de tão ilustres visitantes. Como é que ele
sabe que pode confiar em mim?, perguntei. Mary enviaria a Nubar uma mensagem
através de um criado do Hotel Aviz. Era outra característica de Lisboa: os
criados dos hotéis eram verdadeiros pombos-correios, além de fontes preciosas
de informação. O problema era que alguns também trabalhavam para os nazis.
É um dos nossos, murmurou. Uma certa excitação invadira-me. Sentia-me a ser
posto à prova. Mary, contudo, tomou a emoção por receio. Não há perigo nenhum,
Jack Gil. É só entrares no hotel, pedires para falar com o homem, e depois
transmitires-me o que ele te disser. Não há pistolas fumegantes, nem nazis a
espreitar nos corredores. Foi a minha vez de dar uma gargalhada: és muito
persuasiva! Mirou-me através do seu copo de brandy, e a sua cara surgiu-me
deformada pelo vidro e pelas pedras de gelo: confio em ti, Jack Gil. Não sei
bem porquê. Ou talvez saiba... Talvez saibas? Desviou o copo, fazendo contacto
visual comigo: sabes segurar muito bem nas saias de uma mulher. E isso é razão
para confiares num homem? Mary levantou-se e caminhou pela sala na direcção da
janela. Lá fora, o ciclone aumentara de intensidade. As portadas exteriores das
janelas batiam com força contra a parede, produzindo um ruído desagradável.
Está feio, comentou Mary, observando a rua, e repetiu o que dissera horas
antes no carro. Deve ser por isso que hoje não há ninguém a ver ninguém. Era
como se o facto de não existir ninguém a observá-la a libertasse da opressão.
Foi talvez nesse momento que percebi que era muito infeliz em Lisboa. A sua
solidão comoveu-me. Com o passar dos meses viria a confirmar que, sem filhos e
com um casamento moribundo, Mary estava à beira de um colapso. Achas que
Salazar está a dormir?, perguntou ela, mudando de novo o rumo da conversa.
Passava da meia-noite. Dizia-se que Salazar dormia pouco, mas era provável que
àquela hora estivesse deitado. Acho que sim. Mary sorriu: um ditador nunca
dorme. Pode ser neutral, mas não dorme»» In Domingos Amaral, Enquanto
Salazar Dormia, 2006, Casa das Letras, 2013, ISBN 978-972-462-174-6.
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